A cadeia sem maquiagem

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“O ser humano é falho e naquele momento fui falha. Eu via as coisas que as minhas amigas tinham e que eu não podia comprar trabalhando, aí de certa forma eu me deixei influenciar por pessoas que também estão na cadeia... Vim parar atrás das grades e aqui você é um peixe fora d’água que tem que aprender a nadar sozinho. Eu, que sempre fui uma pessoa doce e carinhosa, agora não sei mais o que é dar um carinho ao próximo, vejo maldade em tudo e em todos, se alguém sorri pra mim, penso duas vezes antes de retribuir o sorriso”. Riba é uma das milhares de criminosas que cumprem pena hoje no Brasil. Condenada por assalto a mão armada, ela convive há oito anos com um sistema prisional que não foi preparado para receber as mulheres.

No começo do ano de 2002, comecei a pesquisar sobre a mulher criminosa. Em pouco tempo, constatei a escassez de dados nacionais sobre o perfil das detentas. Nem ao menos o Estado de São Paulo, que abriga praticamente metade das criminosas brasileiras, possuía um levantamento confiável sobre elas. Descobri então que o único caminho possível para a investigação do universo prisional feminino seria o contato direto com as presas.

Esbarrei em inúmeras dificuldades para ter acesso aos presídios. Quando não negavam o acesso por insegurança, alegavam que elas estavam “de castigo’’. Quando não era essa a desculpa, inventavam alguma rebelião iminente. Por fim, consegui conhecer algumas detentas por meio da Funap, Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso, órgão vinculado à Secretaria de Administração Penitenciária, que realiza um trabalho de reinserção profissional do preso dentro e fora da cadeia.

Acompanhei a rotina de trabalho das internas na sede da Funap e ganhei a confiança delas, depois de longas conversas. A partir dessa relação, finalmente consegui visitá-las dentro da Penitenciária Feminina do Butantã, a mais temida pelas presas, entre as três unidades femininas que funcionam na cidade de São Paulo. O local é um dos que ainda não permitem visita íntima, não têm área de convivência para mãe e recém-nascido e é um dos que punem mais severamente comportamentos considerados “reprováveis”. Dentro desse universo, conheci mais profundamente as histórias de Riba, Vic, Gema e Mari, nomes fictícios. Mulheres que tinham muito mais a contar sobre a realidade prisional do que os números do 1o Censo Penitenciário, realizado em 2002, única referência científica sobre o perfil das presas do Estado de São Paulo.

Vic era ajudante de cozinha antes de ser presa em 99 como cúmplice de estelionato. “A colega que morava comigo fazia furtos para comprar droga e levava pra dentro de casa. Foram buscar ela lá e me entreguei no lugar dela, pois, como a gente era bem diferente, achava que não ia ser reconhecida. De fato não fui, não me pegaram com nada, mas o juiz me deu um castigo de 5 anos e 4 meses.” Vic perdeu o contato com a família, não recebe visitas e há pouco tempo soube que sua amiga foi assassinada enquanto fazia um assalto. Quando fala no assunto, a jovem de 25 anos não consegue esconder a emoção. “É triste, você assume uma coisa pra pessoa ficar livre e de repente, se ela tivesse sido presa, podia estar viva.”

A ex-dona de casa Gema também vive a dor do abandono. Casada e mãe de um filho adolescente, ela conta: “Eu me envolvi com pessoas que cometiam erros e me empolguei, passei a agir por impulso e acabei presa. Quando cai a ficha e a gente tá na cadeia, percebe que está sozinha. Aqui é nós. Eu já vi muito casamento acabar. O marido vem uma vez, duas, depois nunca mais. Foi o meu caso”.

Esse drama é um fantasma comum entre as detentas. Normalmente, elas acabam presas como cúmplices ou no lugar dos companheiros, depois são abandonadas por eles e pela família. O censo penitenciário revela que quase 40% delas não recebem visita alguma e que apenas 18% são procuradas pelos companheiros, realidade bem diferente da masculina, em que 65% são visitados pelas companheiras.

O dia-a-dia na cadeia é especialmente difícil para as mulheres. Além das dificuldades de adaptação normais à vida na prisão, elas sofrem com os problemas estruturais de um sistema prisional em que as instalações e as normas foram feitas especificamente para os homens. Muitas das casas de detenção que abrigam as mulheres não foram construídas com esse objetivo e acabaram sendo remanejadas às pressas com o crescimento da demanda. Até os anos 80, a falta de estrutura era tão grande que a maioria das penitenciárias femininas funcionava em mosteiros e conventos.

Sexo e saúde A Constituição Federal determina tratamento especial às mulheres e condições de respeito à sua condição específica de sexo. A Lei de Execução Penal prevê que todas as penitenciárias femininas do país tenham seções especiais para a gestante e também para que a mãe acompanhe o filho até a idade escolar, bem como garante o direito da presa à visita íntima. Mais de 65% das mulheres que cumprem pena no Estado não têm ensino fundamental completo, e conhecem muito pouco sobre seus direitos. As estatísticas do censo mostram que quase a totalidade das detentas (99,8%) não sabe nem ao menos o tempo de sua pena. A partir desses dados, é possível imaginar o tamanho do abismo que separa a lei da realidade vivida nos presídios.

Algo que chama a atenção, além da falta de informação das internas sobre suas próprias perspectivas dentro do sistema, é a fragilidade física delas. Recebi muitas reclamações de maus-tratos, punições severas e de falta de assistência médica. Mari, uma das com quem mais conversei, surpreendeu-me mostrando uma enorme cicatriz no abdômen, de uma operação de apendicite. Segundo ela, o atendimento demorou a ser prestado e, quando feito, deixou muito a desejar: “Estava com dores fazia dois dias, reclamava e não conseguia trabalhar direito. Fui ao médico e ele me deu a receita ‘cura-tudo’, que é um remédio para cólica. Eles acham que tudo é cólica, se você está com gripe, vai lá e ele te dá esses remedinhos. Se está com dor de cabeça, a mesma coisa, é assim que funciona. Só foram me atender quando eu não agüentava mais a dor. Então, apaguei”.

A coordenadora das unidades de Saúde Penitenciária do Estado, Maria Eli Celloca, confirma que a questão é delicada e que muitas vezes é difícil fazer um diagnóstico preciso. “As mulheres têm aspectos biológicos muito particulares. Elas somatizam mais as doenças, sofrem mais com a solidão, com problemas hormonais e psicológicos. Mas a prática tem mostrado que não é o atendimento psicológico que elas procuram. Querem mesmo é ver um médico e se não saem do consultório com algum tipo de medicação não se sentem atendidas”, explica.

Dados da Secretaria de Administração Penitenciária confirmam o relato da coordenadora. Mostram que as mulheres fazem quatro vezes mais solicitações de atendimento do que os homens e, na maioria dos casos, os problemas são mesmo de origem emocional. De acordo com Maria Eli, depois de algumas tentativas frustradas, não existem mais programas de apoio psicológico específico para amenizar as enfermidades somatizadas pelas detentas. “Por mais que já tenha se tentado um trabalho psicológico, elas querem mesmo é ver um médico quando têm algum problema. O que nós buscamos é incentivar o trabalho para que elas ocupem o seu tempo e durmam melhor, bem como tomar medidas concretas para resolver o problema da falta de visita íntima”, explica a coordenadora.

Embora uma portaria baixada em 2001 tenha garantido formalmente o direito das mulheres à visita íntima, só a partir do ano seguinte ela começou a ser gradualmente implantada no Estado de São Paulo. Um processo que, embora lento, tem sido acompanhado por uma campanha de planejamento familiar eficaz. Depois de um ano de implantação, só um caso de gravidez foi registrado entre as mulheres que utilizam o benefício. Mas, apesar do sucesso relativo, a maior parte das penitenciárias femininas ainda não adaptou suas dependências para viabilizar a visita. É o caso do Butantã. Esse é um problema complexo que se desdobra em uma série de outras questões, como o aumento da agressividade, o lesbianismo circunstancial e a disseminação do vírus da Aids. A ONG paulista Coletivo de Feministas Lésbicas fez recentemente uma pesquisa em penitenciárias da capital e constatou que o número de mulheres que se declaravam lésbicas sobe de 4% entre as mulheres que chegam ao presídio para 27% entre aquelas que cumprem pena há mais de quatro anos. Vic conhece na prática esses números e suas implicações. “Eu sempre digo que briga de cadeia é caso. Você chega na cadeia, cola com a pessoa, amanhã você diz que não quer, aí você é obrigada a ficar. Aí já rola água quente, facada, isso acontece muito. A mulher ou abandona o marido quando chega na cadeia ou quando ele vem ela já fala que está casada aqui dentro, aí o cara pára de vir”, confidencia.

Essas relações, em um ambiente hostil, acabam levando a outros problemas. Riba reclama da violência das colegas e da perseguição das agentes de segurança. “Às vezes você está na cela há um tempão, aí elas colocam um ‘exu’ bravo junto com você e ela acaba com tudo, com o seu sono, com a sua privacidade. Já no pátio, você não pode nem rir para uma outra presa que já é punida, porque elas acham que você está com lesbianismo. Aí elas te mandam pra cela individual, depois dão bonde, transferem uma das duas de presídio.”

Dados levantados pela Funap indicam que quase 7% das internas têm o HIV, mais do que o dobro do percentual de presos infectados e 20 vezes mais do que o de mulheres brasileiras, que é de 0,35%. Isso revela que, embora as campanhas de contracepção da Secretaria de Administração Penitenciária tenham conseguido um resultado eficaz junto às presas que têm direito à visita íntima, por outro lado, além da repressão às práticas homossexuais, nada tem sido feito para prevenir a transmissão do vírus entre as internas. A coordenadora de Saúde Penitenciária tenta explicar. “Não existem estudos científicos que provem que elas contraiam o vírus dentro da cadeia. Esse é um assunto muito delicado para ser tratado por agentes de saúde, assim como o problema do uso compartilhado de seringas. É preciso tempo e preparo para que possamos pesquisar as causas do problema.” Enquanto isso, não há nenhum tipo de ação educativa que trate de sexo seguro entre mulheres, do uso de drogas injetáveis, ou mesmo campanhas de distribuição de seringas e preservativos dentro dos presídios.

A falta de dados A ação do Estado em relação ao problema das mulheres no sistema prisional quase não existe e a falta de informações precisas é um dos principais problemas. Fora o censo, não existem levantamentos concretos sobre quem são e como vivem as mais de 12.500 mulheres que cumprem pena nos distritos e penitenciárias do país. Além disso, há um problema ainda mais grave que é a inexistência de análises que investiguem as causas e os aspectos específicos do comportamento criminoso feminino. O que se sabe é que, até os anos 60, o número de infrações praticadas por mulheres era tão inexpressivo que nem aparecia nas estatísticas. Os poucos crimes praticados eram considerados “tipicamente femininos”, tais como o aborto, o infanticídio e o homicídio passional. Os eventos eram vistos como casos isolados e interpretados como ações movidas por surtos neuróticos, ou qualquer outro tipo de desequilíbrio psíquico.

A partir da década de 70, as mulheres começaram a praticar outros tipos de crime e com mais freqüência. Hoje, já são responsáveis por 6% dos delitos cometidos no país, representando 4,5% do total da população carcerária brasileira. Segundo informações do Departamento Penitenciário Nacional, os crimes mais comuns são os relacionados ao tráfico de drogas (44%) e os praticados contra o patrimônio (40%). Em algumas das poucas análises existentes, os crimes cometidos por mulheres são vistos sob a mesma perspectiva daqueles praticados pelos homens, desprezando-se fatores biológicos e traços culturais específicos. Outra corrente, aparentemente mais elaborada, atribui o aumento dos índices de criminalidade entre as mulheres às conquistas dos movimentos feministas nos anos 70. A luta pela igualdade de direitos, que possibilitou o aumento da atuação da mulher em todas as áreas profissionais, teria ampliado também a participação delas nas atividades criminosas.

No entanto, as duas correntes de pensamento ainda deixam questões essenciais em aberto. A que se deve atribuir, por exemplo, a capacidade da mulher de resistir mais do que os homens às pressões biológicas e sociais que levam o ser humano a cometer crimes? Por que o número de infratoras, apesar de crescente, ainda é tão desproporcional ao de infratores, já que as mulheres teriam conquistado o mesmo nível de possibilidades e direitos que os homens? Estas e outras tantas perguntas não terão resposta tão cedo. Enquanto isso, milhares de mulheres se acumulam nos presídios e distritos, sem acesso a seus direitos básicos específicos, garantidos por uma lei que parece não existir por trás das grades.

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