A gênese da violência colombiana

Escrito en NOTÍCIAS el

Apesar de não ser – ou não dever ser – comum em uma nação democrática, já estávamos de certa forma acostumados com o grande contingente militar fazendo as funções de polícia ostensiva nas ruas de Bogotá. Em cada esquina do centro, na frente dos hotéis e bancos, há sempre soldados de uniformes camuflados e empunhando fuzis de assalto M16. Mas em nenhuma de nossas viagens anteriores à Colômbia havía­mos sido escoltados por batedores em motocicletas em qualquer pequeno percurso urbano.
Diante de nosso espanto com a situação, o assessor do senador Alexander López Maya, Alberto Bejarano, justificou as medidas de segurança. “Vocês precisam compreender o nível de atenção que pode chamar a presença de delegações de países como Venezuela, Equador, Bolívia e Cuba que vêm para falar no Senado, com transmissão pela televisão. Na Colômbia, as questões político-ideo­lógicas incluem sempre um certo risco e ainda mais nesse momento de relações tensas com os vizinhos.” De fato, o histórico de violência política no país é ainda maior do que em nações que passaram por fortes ditaduras de direita e que recentemente elegeram democraticamente governos mais alinhados à esquerda, como o Chile, a Argentina e, mais recentemente, o Paraguai. Lá, conceitos como esquerda e direita não estão ultrapassados, como gostaria a mídia brasileira, e adjetivos como comunista ou socialista podem realmente levar à morte.
O cenário político da Colômbia atual teve sua gênese há exatos 60 anos, quando em 9 de abril de 1948 um desempregado de temperamento fechado e poucos amigos chamado Juan Roa Sierra supostamente matou com três tiros nas costas o candidato do Partido Liberal à presidência da República, Jorge Eliécer Gaitán. De grande apelo populista, o advogado Gaitán tinha um discurso inflamado contra as oligarquias e o alinhamento automático à política dos EUA, que haviam invadido no início do século a província colombiana do Panamá e declarado a “independência” do país. Tudo em troca da concessão de uso e controle sobre o canal, onde os estadunidenses mantêm uma base com 12 mil soldados.
Ainda hoje há controvérsias sobre quem teria encomendado o assassinato e se realmente foi Sierra, linchado pela população logo após a morte de Gaitán, o autor dos tiros que o vitimaram. As acusações vão desde um complô comunista-soviético até um plano imperialista orquestrado pela CIA. E a “coincidência” da IX Conferência Pan-Americana, onde foi fundada a Organização dos Estados Americanos, ocorrer em Bogotá no mês seguinte, em plena atmosfera de criação da Guerra Fria, estimula ainda mais as teorias conspiratórias.
“A morte de Gaitán não foi apenas a morte de um homem, mas de um projeto de nação completamente diferente da que temos hoje”, afirma o senador Maya. Mal comparando, o desaparecimento do líder populista no auge de sua trajetória política foi para os colombianos o que teria sido para os brasileiros o assassinato de Getúlio Vargas antes de ter assumido a presidência do Brasil pelo voto direto em 1951, ou para os argentinos o homicídio de Juan Domingo Perón às vésperas de sua reeleição. Ou ainda, mais recentemente, para os venezuelanos, se Hugo Chávez tivesse sido executado após o golpe de Estado impetrado contra ele em 2002. Com o magnicídio de Gaitán, a polícia de Bogotá, leal a ele, distribuiu armas à população, que enfrentou nas ruas o exército, controlado pelo Partido Conservador. Foi o chamado “Bogotazo”, que incendiou boa parte da cidade e levou à morte um número imenso de pessoas, cuja cifra final permanece desconhecida. A conflagração geral se espalhou pelo país, dando início ao período intitulado “La Violencia”, que teria ceifado entre 250 mil e 300 mil vidas nos dez anos seguintes.
Foi inspirado nos discursos de Gaitán contra as oligarquias em 1948 e no que viu nas ruas de Bogotá após a sua morte que Fidel Castro começou a arquitetar a Revolução Cubana. O camponês Manuel “Tirofijo” Marulanda, o mítico líder das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc, também deu os primeiros passos de sua luta contra os latifundiários durante La Violencia, apesar de fundar oficialmente o grupo guerrilheiro somente em 1964. A outra grande guerrilha colombiana, o Exército de Liberação Nacional (ELN), surge no mesmo ano do 1964, como reflexo da Revolução Cubana e, ao mesmo tempo, mecanismo de autoproteção contra os assassinatos de guerrilheiros independentes que aceitaram a “anistia” oferecida pelo general Gustavo Rojas Pinilla, empossado por um golpe militar em 1953, e que teriam sido executados pelo Serviço de Inteligência Colombiano (SIC).

Crimes políticos e a sombra de Gaitán
Estimativas conservadoras falam em cerca de meio milhão de assassinatos políticos, das mais diversas correntes ideológicas, na Colômbia, desde 1948. Depois do genocídio dos gaitanistas na década de 1950, isso voltaria a se repetir entre os anos 1980 e 1990. Logo após os primeiros acordos de paz com as Farc, em maio de 1985, conduzidos pelo então presidente Belisário Betancur Cuartas, os membros do partido União Patriótica (UP) começaram a ser sistematicamente assassinados. O partido contava, além de efetivos das Farc – que depois se retirariam da legenda para voltar à luta armada em 1989 –, com representantes de movimentos sociais e egressos do Partido Comunista Colombiano.
Até os primeiros anos do governo de Álvaro Uribe Velez, foram mais de 5 mil mortes, incluindo dois candidatos presidenciais da UP, três senadores eleitos e dezenas de deputados, vereadores e prefeitos da legenda. Os desaparecimentos em que comprovadamente houve participação do governo ou dos paramilitares somam 30 mil desde 1985. Do outro lado, também se contam aos milhares os representantes da direita assassinados pelas guerrilhas, paramilitares, narcotraficantes ou em disputas políticas dentro dos próprios partidos. Até mesmo o pai do atual presidente colombiano, Alberto Uribe Sierra, que teria fortes ligações com o cartel de Medellín de Pablo Escobar, foi morto em 1983 numa tentativa de seqüestro pela Frente Quinta das Farc.

A íntegra dessa matéria está na edição impressa. Reserve com seu jornaleiro!