A guerra, a falsa paz e as crianças à venda

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Capítulo 1 – A guerra

Guatemala, 1944. O país cansado das oligarquias fundiárias e da discriminação contra a maioria indígena começa a Revolução. Após o sucesso da empreitada, Waldemar Barrios Klee, chefe do Departamento Agrário Nacional, ajuda a distribuir as terras da monocultura cafeeira e da Unit Fruits Co. aos campesinos. Um sexto da população foi beneficiada pela reforma agrária. No contexto entusiasta da democracia, vivida pela primeira vez no país, nasce sua filha Walda Barrios.
Aos três anos, em 1954, a garota assiste a um golpe de Estado patrocinado e pensado pela CIA. O governo revolucionário é substituído por militares e Waldemar foge do país e se asila no México com a família. “Aprendi a cantar o hino mexicano antes do guatemalteco”, conta Walda. Com um cenário mais tranqüilo, ela voltou para seu país e começou a dar aulas na Universidade San Carlos, a única pública da Guatemala.
O regime durou 36 anos, deslocou 1,5 milhão de guatemaltecos e matou cerca de 200 mil pessoas, em um dos mais cruéis genocídios realizados contra a população indígena. Mais de 80% dos mortos eram campesinos descendentes dos maias. Em paralelo à matança no campo, o regime começou a acirrar seus ataques contra sindicalistas, estudantes e professores. “Eles começaram a matar em cotas, eram dez da Psicologia nesta semana, na outra, dez da Medicina. Primeiro eles matavam os que tinham envolvimento mais forte com o comunismo e depois completavam a cota de qualquer jeito. Era um clima horrível, a gente ficava imaginando qual seria a próxima faculdade atacada”, recorda.
Um dia, 14 de julho de 1980, chegando ao trabalho Walda presenciou, protegida debaixo do motor de seu carro, o fuzilamento de quem descia do ônibus e entendeu que era hora de ir, outra vez. Com o marido e dois filhos rumou para Chiapas. O estado mexicano que sempre assistiu ao fluxo sazonal de migrantes nas colheitas de café da costa caribenha recebia agora uma enxurrada de campesinos e pessoas da classe média intelectual e sindical em suas montanhas. “Para os maias, que não respeitavam as fronteiras nem falavam espanhol, a noção de nacionalidade começa a se formar quando eles cruzam para o México e já não são assassinados. A princípio, os mexicanos os deportavam, mas logo, com a quantidade que começou a cruzar a fronteira, o país vizinho notou que havia algum problema sério do lado de cá”, explica Irene Palma, pesquisadora do Incedes. Ela, em 1985, entrou para o grupo de mais de 200 mil guatemaltecos que buscaram asilo no México entre os anos 1981 e 1994. Aproximadamente 46 mil deles foram documentados e autorizados a permanecer em acampamentos ou comunidades. “No começo, eles colocavam todo mundo em campos, campos de concentração mesmo, em que se vivia de ajuda, de comida e terra dada”, recorda Walda.
A migração daqueles tempos de guerra e a atual pouco se assemelham. “Hoje em dia saem da Guatemala jovens entre 18 e 35 anos, 80% deles homens. Nos anos 70 e 80 a migração era de mulheres, crianças e gente mais velha, muitos de movimentos sindicais, partidos e estudantes. Ou seja, eram trabalhadores, técnicos e intelectuais que já exerciam suas funções”, aponta Ubaldo Villatoro, Coordenador Executivo da Mesa Nacional para as Migrações na Guatemala (Menamig). “A migração nos tempos do conflito civil era uma tentativa de salvar a vida. Hoje em dia ela acaba colocando a vida do migrante em risco, no caminho para o norte”, complementa Walda. Embora sem estatísticas, todos os estudiosos consultados afirmaram que a migração atual rumo aos Estados Unidos é mais numerosa nas “vilas dos retornados”, dos ex-exilados políticos. As remessas que enviam beneficiam 24% da população do país.
Irene Palma destaca as diferenças das duas migrações do ponto de vista político. “Hoje assistimos a um sistema capitalista de concentração de renda que, em última instância, gera fome e tira a capacidade de muitos de viver e por isso as pessoas vão. Mas as coisas não são tão claras, por exemplo, ter um carrão, uma casa grande e empregadas não traz associada a idéia de que por isso tem gente sem o mínimo para viver. Na guerra, a coisa era intencional e clara: matava-se, chacinava-se e se queimava casa, roça, tudo. Como nos desastres naturais, as pessoas ficavam sem condições mínimas para a sobrevivência.”

Uma paz ilusória
Nos tempos de medo, do lado de lá da fronteira mexicana, ser guatemalteco não era boa coisa. Assim, os refugiados que já chegavam sem documentos – depois de assistir a massacres de suas vilas, chacinas de seus povos e incêndio de suas casas – foram abandonando aos poucos as roupas típicas e suas línguas. “A maioria dos campos era formada por crianças e a gente lutava por escolas. Uma das grandes dificuldades era nos entendermos porque cada um falava sua própria língua e muitas vezes não sabiam espanhol”, comenta Walda, que em paralelo com as aulas que dava na Universidade Autônoma de Chiapas trabalhava nas comunidades de refugiados. “Mas havia muita solidariedade”, recorda.
Seus filhos, a princípio, estudaram de graça em uma escola de monges. “Assim que comecei a receber salário comecei a pagar mensalidade para que outras crianças também pudessem estudar.” Foi no país vizinho que Yadira, a filha de Walda que estudou até a quarta série primária na Guatemala, se formou. Quando assinaram o acordo de paz em 1996, ela se negou a voltar ao país. “Não há segurança. Antes se matava por alguma causa política e hoje se mata por um celular; por isso que ela não quer voltar”, explica Walda.
O fim da guerra não resolveu as causas que a deflagraram. Assim, quando a paz foi assinada, 44,9% dos guatemaltecos eram analfabetos. O país é dono da pior divisão de terras da América Latina, 54% do total de fazendas ocupa apenas 4% da superfície total de terras agrícolas enquanto 2,6% das maiores propriedades ocupam dois terços da superfície total. A violência se incrementou na última década: em três dos meus últimos dias de Cidade da Guatemala assisti a um roubo de celular em um ônibus (o meu companheiro de banco assaltou o passageiro atrás de mim) e me roubaram um MP3 dois dias depois numa das avenidas mais chiques da cidade.
Mas o problema não se limita aos furtos. “Temos uma média de 17 assassinatos por dia. De janeiro a agosto deste ano, 331 mulheres foram assassinadas e somente 3% dos casos estão em processo”, exemplifica José Alberto Flores, pesquisador da Comissão de Direitos Humanos da Guatemala (CDHG) destacando que a impunidade é outra das violências sofridas. Os órgãos que pesquisam e divulgam estudos relacionados com a guerra e com os direitos humanos continuam sendo foco de ameaças e perseguições. A discriminação contra os povos indígenas é outra constante e se reflete em sua posição social: 82% dos indígenas são de classes sociais baixas (contra 61% dos não indígenas).
Mas há também o lado bom do acordo de paz. “Se há um saldo positivo na guerra civil é na temática dos direitos humanos e da participação política. O Estado passa a permitir a pluralidade. O Partido Comunista, que era proibido desde 1957, passou a ser permitido. Observa-se ainda a necessidade de promoção dos idiomas maias. Apesar de isto não vir acompanhado por um processo de educação bilíngüe, em 2004 tivemos a primeira lei de idiomas”, continua Flores. Um pequeno passo para a pluralidade e a democracia. Mas fundamental para o futuro de um país.

Capítulo 2 – Bebês adotados ou vendidos?

Quando voltou do exílio, Walda recomeçou a dar aulas na universidade em que trabalhava nos 80 e se deparou com um quadro de professores conservadores. “Quem era de esquerda ou foi assassinado ou fugiu”, lamenta. “Até hoje não foram feitos os devidos estudos para analisar o que passou na Universidade San Carlos”, completa. Ela recomeçou suas lutas pelas causas das mulheres, se candidatou à vice-presidência da República e hoje defende a descriminalização do aborto e dos direitos reprodutivos femininos. “Mas vivemos em um país muito machista. Com as altas taxas de mortalidade por parto que temos, assistimos ao Congresso assinando o chamado ‘livro da vida’.” O livro foi assinado em agosto de 2008 e é uma defesa da vida do feto e, portanto, um “não” enfático ao direito de aborto no país que, de acordo com a Unicef, tem uma das taxas de nascimento mais altas do mundo, de 32 a 58 nascimentos por grupos de 1 mil. Quase metade das jovens do país (44%) são mães antes dos 20 anos e metade destas não contou com assistência médica profissional em seus partos. Vale destacar também que um estudo da Universidade de San Carlos mostra que 8% das mulheres entre 18 e 25 anos que participaram da pesquisa informaram que sua primeira relação sexual foi um estupro.
De forma indireta, o veto ao aborto mantém um grande negócio que se desenvolveu nos tempos da guerra e cresceu no período de paz e livre comércio, a exportação de crianças. No início dos anos 80, os órfãos, perdidos ou abandonados, foram dados em adoção. Calcula-se que 5 mil crianças desapareceram, foram separadas ou adotadas durante o conflito. Logo se formou uma rede que até o ano passado contava com 1.607 “trabalhadores da adoção”. Beneficiados pela lei de 1977 que desatrelava o processo do Estado, adotar uma criança na Guatemala se resumia a pagar um advogado, aguardar a assinatura de uma escritura pública por um notário e desembolsar em torno de US$ 25 mil.
Assim, nos dez primeiros anos de paz, 30.634 crianças foram “exportadas”, sendo que 53% delas eram meninas. Nos últimos anos entraram no país cerca de US$ 100 a 150 milhões/ano como pagamento pela adoção das crianças.
O processo normalmente era iniciado com o feto ainda no ventre e encerrado com a emigração do recém-nascido. Nos classificados, liam-se anúncios buscando crianças, e nas páginas de internet se ofereciam informações sobre o bom negócio e as facilidades de se comprar um filho na Guatemala. Nos sites dos hotéis até hoje há um link especial ao lado do pacote business ou lua de mel: o “pacote adoção”, que inclui instalações especiais para os novos papais, como microondas para esquentar as mamadeiras no quarto.
Até 31 de dezembro do ano passado, dia em que o país passou a fazer parte do Convênio Relativo à Proteção da Criança e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional, a Guatemala era o quarto maior exportador de crianças do mundo, perdendo apenas para Rússia, China e Coréia do Sul. Em termos relativos, o país era o número um no envio de filhos para o exterior. Em 2006, 1% dos niños nascidos no país foram dados em adoção. Da forma como era feito o livre comércio de pessoas, não é possível estimar quantas destas crianças foram de fato fazer parte de um lar feliz e quantas foram desviadas para trabalhos escravos, prostituição infantil e venda de órgãos.

Uma mãe entre tantas
Matilde é dessas mulheres cujo olhar doce luta contra a vida inteira. Cercada por quatro filhos, ela me conta que não conseguia trabalho em La Maquina, interior da Guatemala, e que por isso aceitou o convite da irmã de ir para Tecun Uman, fronteira do país com o México. Ali, começou a trabalhar num “inferninho” onde ganhava R$ 10 por programa. “Mas eu não dei certo lá não. Para minha irmã parece que é fácil, ela é boa. Mas ela bebe muito e eu não gosto de vê-la assim. Ela fala para eu beber, mas tenho os meus filhos. Se fico bêbada este aqui vai chorar, fazer o que for e eu não vou escutar”, conta, olhando para Fernando que saboreia, virando os olhos, uma mamadeira no colo de Matilde. Há nove anos, quando Matilde tinha 24 e uma única filha, então com cinco, a vida também não era fácil na capital do país. Mãe solteira e sem trabalho, ela aceitou a proposta de uma mulher.
“Ela disse que ia cuidar de minha filha, que a vida dela ia ser melhor.” Matilde então assinou os papéis, foi à embaixada estadunidense e respondeu a perguntas de advogados dos direitos humanos. Mas depois Matilde se arrependeu. “Tentei voltar atrás, fui ao juiz: lá minha filha disse que eu a maltratava e eu perdi.” A pequena passou dois anos albergada numa das casas especializadas em cuidar de crianças em tramitação até sair da Guatemala. Quando estava para se mudar, pediu para ligar para a mãe biológica: “Ela me disse: agora a gente está se separando, mas pode ser que um dia a gente se encontre de novo ou que um dia a gente se esqueça uma da outra. Respondi: mas eu sou sua mãe, nunca vou te esquecer. E hoje fico pensando se um dia ainda vou encontrar minha filha... Será que a minha filha está viva?”, pergunta.
O estudo Adopciones en Guatemala: proteción o mercado?, assinado pelo próprio governo, destaca que “quando as crianças estão entre seis e dez anos, elas podem estar sendo utilizadas para trabalhos domésticos, trabalho forçado, venda de mercadorias e inclusive pornografia infantil. Enquanto os adolecentes de 11 a 17 anos poderiam estar sendo incorporados ao negócio da prostituição e a participar de material pornográfico”. No começo, Matilde sonhava todo o dia com a primogênita. Continuou sonhando quando nasceu a segunda filha, hoje com 11 anos. Depois engravidou de Matilde Abigail, filha de um pai casado com outra.
A gravidez foi ajudada pela mesma mulher que levou sua primogênita. Ela dava casa, comida e pagou o parto. Depois, levou a recém-nascida para a adoção: “Falaram que iam tirar o ‘Matilde’ e deixar o ‘Abigail’ no nome. Como esta era pequena, eu nem me apeguei muito”, confessa.
Aproximadamente 86% das crianças adotadas na Guatemala eram bebês de até um ano, sendo que 48% destes tinham entre zero e seis meses, como Abigail. Isto significa que os trâmites de adoção estão sendo ofertados antes do nascimento, se considerarmos que os procedimentos normais duram nove meses. A situação fere o artigo 4 do Convênio de La Haya. Assinado por 192 países, há apenas duas nações que não participam, Somália e Estados Unidos. Depois do boicote europeu aos filhos da Guatemala – pela forma das adoções ferirem os acordos internacionais e os direitos humanos – os Estados Unidos se tornaram destino de 94% dos adotados guatemaltecos. “Eu tinha escutado falar que faziam coisas ruins com estas crianças, mas a mulher me mostrou fotos de muitas crianças que eles tinham ajudado, em uma pasta bem grande. Aí eu acreditei. Ela me prometeu que ia me mandar foto dela todo ano, mas é mentira”, relata Matilde.
Sem fotos de uma ou de outra filha, as falas de Matilde, normalmente anestesiadas e com um olhar perdido, eram cortadas por desabafos. “Mas eu fico pensando: será que a minha filha (a primogênita) está viva?”, repetia. Depois de Abigail, nasceu Melissa, agora com dois anos. Quando ainda era um bebê, Melissa ficou doente. O pai da pequena estava nos Estados Unidos e parou de mandar dinheiro regularmente para a filha. Sem condições de levá-la ao médico ou comprar remédios, Matilde aceitou a ajuda do vizinho que pagou a consulta e medicamentos. Para retribuir o favor, Matilde lhe prestou serviços sexuais duas vezes e engravidou. “Era muito azar… Fiz aquilo para salvar minha filha, não era justo.” A história da adoção quase se repetiu pela terceira vez.
As mulheres que entregam seus filhos em adoção são normalmente ou mães solteiras; ou namoradas de criminosos ou homens casados; ou os filhos são produtos de violação ou incestos. Assim sendo, Matilde com seus quase três filhos exportados cumpre com todas as possibilidades de perfil. Com Fernando na barriga, a mesma mulher que a “ajudou” com as outras duas filhas convidou Matilde para morar em sua casa, pagando seus gastos, comida e futuro parto. “Mas depois eu fui me arrependendo. As pessoas diziam que aqueles bebês eram para vender. Que vendiam para matar. Aí a mãe dela (da mulher que queria o bebê) me disse que faziam coisas ruins. Mas elas já não me deixavam sair.”
O engano e o seqüestro são as duas principais formas encontradas pelas redes para que as mães que não doaram/venderam seus filhos de forma voluntária entreguem a criança. Mas desta vez Matilde entendeu que talvez o futuro do pequeno não seria assim tão brilhante quanto se dizia e conseguiu fugir. “E aí eu tive este aqui”, conta, trocando o olhar frio e mirando com expressão de mãe para Fernando com sua mamadeira. F