A guerra que não deu certo

Escrito en NOTÍCIAS el

As metas estabelecidas pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas sobre Drogas, em 1998, eram ambiciosas e partiam de um pressuposto que foi levado às últimas conseqüências pelo governo dos Estados Unidos: eliminar ou reduzir significativamente o cultivo ilícito de folha de coca, de cannabis e da semente de papoula, base para a produção do ópio e da heroína. Na mesma ocasião, se estabeleceram um processo de avaliação dos resultados da política para dali a dez anos e uma nova reunião com todos os países-membros para 2009, coincidentemente quando se completam 100 anos do início das políticas de combate às drogas.
Foi em 1909 que diversos paí­ses compuseram a Comissão do Ópio de Xangai, que marca o início de ações internacionais no combate às drogas. Até então a substância era negociada internacionalmente representando importantes divisas para a China. Com a proibição, os chineses levariam quatro décadas para conseguir diminuir efetivamente o consumo, o que só ocorreria depois da revolução comunista. O uso tradicional do fumo de ópio tinha como principal função aproveitar o caráter analgésico e anestésico da substância, mais barata e eficiente do que qualquer medicamento acessível à massa da população chinesa à época (ver quadro).
Mas a realidade mostra que as políticas praticadas desde então têm fracassado. Nos últimos dez anos, por todo o mundo, aumentou a produção dos três alvos estabelecidos pela ONU para a área. Substâncias sintéticas crescem desde a década de 1970, quando tiveram o primeiro avanço significativo e alcançaram um número de usuários estimados equivalente ao total de pessoas que consomem cocaína e variações do ópio. A estratégia de combate a plantações teve conseqüências drásticas, como uma maior articulação do crime organizado, além de deixar agricultores desprovidos de alternativas econômicas e usuários sendo tratados como criminosos.
A agência da ONU para Drogas e Crime (Unodc) estima que 200 milhões de pessoas, 3% da população mundial (ver mapa na página 16), façam uso de drogas ilegais, e 200 mil morram em decorrência delas anualmente. Isso significa reconhecer o fracasso das metas e inclui cada vez mais outras linhas de ação que antes eram rejeitadas, como redução de danos e tratamento diferenciado para usuários e traficantes, encarados do ponto de vista da saúde.
Para o psiquiatra Fredrick Polak, do comitê da Coalizão Européia para Políticas de Drogas Justas e Efetivas (Encod, na sigla em inglês), a influên¬cia dos Estados Unidos permanece pendendo para uma linha que tem algo como “um mundo sem drogas” como objetivo, ainda que esse tipo de visão tenha perdido espaço. “Na próxima reunião da Comissão de Entorpecentes, em março de 2009, espero que questões como redução de danos e direitos humanos sejam intensamente discutidos, como conseqüência da Declaração e Recomendações do Fórum Global de ONGs Além de 2009”, aposta Polak.
O encontro preparatório de entidades da sociedade civil para o debate na ONU a que o ativista se refere ocorreu em Viena, na Áustria, em julho deste ano e desenhou uma posição de relativo consenso (ver quadro). No entanto, países como os Estados Unidos mantêm uma posição de fortalecimento da chamada “guerra contra as drogas”. Foi assim na discussão deste ano da Comissão de Entorpecentes, quando as representações de Uruguai e Chile defenderam que os direitos humanos prevalecessem sobre qualquer medida antidrogas, o que, mesmo com a resistência dos enviados da Casa Branca, assim como da China, acabou incluída. Esse é um dos indícios de que a política pode mudar.
“Pela primeira vez há centenas, senão milhares, de representantes de organizações pró-reforma e redução de danos, que exercem influ¬ê­n¬cia crescente para moldar as definições da ONU”, comemora Ethan Nadelmann, da rede Drug Policy. “O diretor da Unodc fala em estratégias de contenção, que são essencialmente o reconhecimento de que as políticas do passado falharam e uma ação mais pragmática é necessária”, defende.

Contra a Lei Seca
A política da ONU, que tem como ponta de lança a guerra às drogas do governo estadunidense, desperta críticas de diversos grupos, e não somente de usuários. Jack Cole é diretor-executivo da Força da Lei Contra a Proibição (Leap, na sigla em inglês), uma rede internacional de delegados, policiais, juízes e promotores públicos que defendem políticas alternativas para as drogas. A comparação que Cole mais emprega nas 650 palestras que proferiu em escolas sobre o tema é com a proibição do álcool nos anos de 1920 nos Estados Unidos. O fim da fracassada Lei Seca permitiu o combate ao crime organizado – cujo maior ícone foi Al Capone. No caso das drogas ilícitas, naquele país, o número de usuários subiu de 4 milhões para 112 milhões de 1965 a 2005.
Além de não reduzir o consumo e o acesso às substâncias, a maior parte das mortes associadas às drogas ocorre, de acordo com ele, em decorrência da repressão e da proibição, já que a estrutura de crime organizado se forma a partir dela. A solução? “Legalizamos as drogas para podermos regular, controlar e mantê-las longe das nossas crianças”, responde.
Quando se fala nesse tipo de idéia, a experiência mais lembrada é a da Holanda, mas é preciso entender do que se trata. “A cannabis – maconha e haxixe – não é exatamente liberada, o que existe é uma tolerância. Há regras rígidas e um dos estabelecimentos mais fiscalizados é o coffee shop, que tem que seguir à risca as normas de funcionamento”, sustenta. Pesquisas realizadas no país mostraram que a parcela de jovens que fuma é menor do que nos Estados Unidos, onde há grande repressão: 28% e 41% respectivamente.
Uma estratégia para minar uma das principais fontes de recursos para o crime organizado está associada à estratégia de produção autônoma para consumo próprio. “Um dos principais fatores para manter a proibição é o medo das drogas, em parte compreensível, mas brutalmente ampliado e explorado por políticos”, lamenta Polack, da Encod. A entidade trabalha a campanha “Freedom to Farm” (Liberdade para Produzir, em uma tradução livre), do qual decorre o Cannabis Social Club, reunião de produtores para uso pessoal na Espanha, Bélgica, Estados Unidos e Canadá. O princípio é o de defender o direito de posse e produção de qualquer planta para uso pessoal e não-comercial ao mesmo tempo em que deve ser permitido que países adotem políticas diferentes das baseadas na proibição.
Redução de danos
O avanço de políticas mais direcionadas à saúde pública do que à segurança, como a de redução de danos, começou em países europeus, no Canadá e Austrália, mas já encontra receptividade em países da Ásia, como China, Indonésia, Vietnã e até o Irã, pressionados principalmente pelo avanço do vírus HIV.
Polack lembra, porém, que a tendência de despenalização do consumo e posse para uso pessoal e centros públicos de uso controlado de metadona e substâncias injetáveis foi freada em 2003 e 2004 e a redução de danos foi colocada em uma perspectiva técnica sem criar formas legais de acesso às substâncias, o que significa continuar a sustentar mercados negros.
No Brasil, a política de drogas foi realinhada em 2006, com a lei nº 11.343, incluindo ações de prevenção e garantindo medidas educativas no lugar de penas para usuários e espaço para cultivo de plantas para uso comprovadamente próprio. Isso não quer dizer que a política brasileira tenha se tornado exemplar. A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) é dirigida por Paulo Roberto Uchôa, um general de divisão do Exército. A militarização é apontada por críticos como um resquício do padrão tradicional ao lidar com a questão.
A secretária-adjunta, Paulina Duarte, cuja formação é em Serviço Social e Saúde Pública, qualifica a política brasileira como “realista, sem qualquer viés de fundamentalismo ou de banalização do consumo”. “Cremos que a tendência das modernas políticas sobre drogas é optar por uma proposta de controle e gerenciamento, e é nesse sentido que estamos trabalhando”, sustenta. Dentro desse contexto, até o nome do órgão foi ajustado à percepção de que a ação deixa de ser “antidrogas” para ser “sobre drogas”.
Para o psicólogo Luiz Paulo Guanabara, diretor-executivo da Psicotropicus, “a lei brasileira falha ao endurecer e tornar desproporcionais as penas para o tráfico em relação a quem negocia quantidades menores, de modo que um ‘mula’ ou um Fernandinho Beira-Mar podem ter penas parecidas pela lei”, avalia. Do ponto de vista da implantação da política, segundo o especialista, o Sistema Único de Saúde (SUS) “permanece muito despreparado para lidar com a questão e muitos psiquiatras e psicólogos ainda têm a mentalidade de abstinência ou nenhum tratamento”. Ainda assim, o especialista aponta avanços como a formação dos Centros de Assistência Psicossocial Álcool e Drogas (Caps).
A posição brasileira na Assembléia Geral da ONU será definida pelo Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) que, além da Secretaria, inclui também órgãos como a Polícia Federal, o Ministério das Relações Exteriores e o Ministério da Saúde, como explica Paulina Duarte. Para ela, a política brasileira está alinhada à Unodc no que diz respeito à constatação de que deve se priorizar mais as ações de prevenção, tratamento e redução de danos como estratégia de saúde. A tendência é que também ocorra um certo embate de posições também dentro do governo. F

Xis da questão
Anfetaminas e drogas sintéticas

A produção de ecstasy é concentrada na Europa, especialmente nos Países Baixos, embora tenha crescido nos Estados Unidos e sudeste da Ásia. A Holanda lidera a produção de anfetamina, juntamente com a Polônia. O mercado desse tipo de droga sintética é estimado em 24,7 milhões de pessoas que consomem 494 toneladas ao ano. Por serem feitas em laboratório, a distância entre o local de fabricação e o de consumo é menor, o que torna as rotas mais difíceis de serem identificadas. Em 2006, houve um aumento de 60% na produção, retomando os patamares de 2000, mas com um número de laboratórios bem inferior.
Ópio, morfina e heroína
Desde 1998, a área usada para plantio está nos mesmos patamares, depois de ter sido reduzida em 2001. A produção, porém, dobrou em decorrência da adoção de variedades mais produtivas, que rendem mais sementes por hectare cultivado. Aliás, apesar da ocupação por tropas da ONU no Afeganistão, a produção de sementes de papoula cresce 50% ao ano no país, desde 2006. Do Produto Interno Bruto, 53% advém do ópio e de suas variantes, já que 92% das 4,5 mil toneladas produzidas mundialmente são cultivados em terras afegãs. São 193 mil hectares de plantações. No mundo, são 235,7 mil. Os consumidores desse tipo de droga – principalmente a heroína – somam 11 milhões no mundo.
Cocaína Depois de crescer nos anos 80 e 90, o consumo nos Estados Unidos apresenta tendência de queda, embora a popularidade na Europa tenha crescido significativamente em 2007 – a ponto de 3% da população espanhola ser usuária, por exemplo. São 14 milhões de pessoas que usam a cocaína produzida a partir de 992 toneladas de folha de coca, 16% a mais do que em 1998. A produção de cocaína aumentou mais, 20%. Na Colômbia, Bolívia e Peru há 157 mil hectares de folha de coca, dos quais metade fica no país de Álvaro Uribe, das Farc e dos paramilitares. Nem toda a produção é convertida em pasta de cocaína, já que a folha é presente na cultura de populações indígenas dos Andes, o que leva o governo da Bolívia e muitas ONGs a pedirem a exclusão da folha da lista de lavouras combatidas.
Cannabis
A mais procurada das drogas ilegais, com 160 milhões de consumidores, variedades de maconha e haxixe são plantadas em 172 dos 198 países dos quais há informações disponíveis. Metade da produção vem do continente americano, e um quinto da África. O fluxo de Marrocos para a Europa se mantém, apesar da redução nos últimos anos, compensada pelo crescimento do plantio no Afeganistão. São 41,4 mil toneladas, mantidas em áreas cada vez menores em decorrência do uso de culturas hidropônicas. Comparativamente a 1998, em toneladas, o volume é 58% maior.
Demanda por tratamento
O mapa mostra a demanda de tratamento por tipo de droga no mundo. Segundo cálculos da Unodc baseados nos relatórios fornecidos por cada país, 26 milhões de pessoas (0,6% da população de 15 a 65 anos) são altamente dependentes de drogas e 4,9 milhões procuram tratamento. Os dados são de 2006 ou os mais recentes disponíveis, e constam do relatório anual da agência de 2008.
Esses dados mostram os alvos de preocupação com o uso em cada região. Por exemplo, nas Américas, a maior procura por tratamento está entre consumidores de cannabis, enquanto na Europa e na Ásia é de pessoas com problemas com ópio e heroína. Ainda assim, nos continentes africano e asiático, a parcela de pessoas que busca tratamento é baixa, variando de 36 a 115 por milhão de habitantes. Nas Américas, são 3.970 para cada milhão.
Linhas de uma política Segundo o Transnacional Institute (TNI), uma das principais ONGs de contestação das políticas de drogas da ONU, as linhas mestras para uma política sobre a questão seriam:

Base em dados – desafio de fugir do debate moralista e aproveitar os estudos e experiências bem sucedidas a respeito do tema.

Diferenciação de consumos – distinguir padrões de uso e substâncias para, por exemplo, poder preservar o papel cultural da folha de coca nas comunidades andinas.

Redução de danos – a “tolerância zero” substituída por redução de danos significa diminuir ao máximo o consumo e seus prejuízos, bem como a estrutura de violência e o mercado negro que negocia as drogas.

Flexível – levar em conta as diferenças regionais e estimular mais sensibilidade às culturas diferentes.

Direitos humanos e proporcionalidade – a punição ao usuário, erradicação forçada e ausência de alternativas de produção para agricultores, penas duras (até de morte) para pequenos traficantes são exemplos de desproporcionalidade.

Desenvolvimento – a criação de alternativas de produção para os agricultores precisa ser apresentada antes da erradicação.

Participação da sociedade civil – aproveitar as estruturas de organização social para trabalhar com produtores, usuários e profissionais de saúde para enraizar as políticas. F