A luta do funk contra o preconceito

Enfrentando a rejeição da mídia e de parte da sociedade, músicos formam associação e querem que o ritmo seja reconhecido como manifestação cultural

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Enfrentando a rejeição da mídia e de parte da sociedade, músicos formam associação e querem que o ritmo seja reconhecido como manifestação cultural

Por Pedro Alexandre Sanches

Nasceu no Rio de Janeiro em 2008 uma instituição chamada Apafunk: Associação dos Profissionais e Amigos do Funk. Não há notícias de que existam por aí hoje em dia associações de profissionais e amigos da bossa nova, do samba, da MPB, do indie rock. Mas existe a Apafunk, elemento inédito de um processo de institucionalização do funk carioca. E entender os porquês desse fenômeno é entender a música brasileira como ela é em 2010.

“Esse movimento cultural não é tratado com respeito. Ao contrário, é perseguido e menosprezado”, afirma MC Leonardo, 35 anos, coautor com seu irmão Júnior de funks históricos como Rap das Armas e Endereço dos Bailes, e presidente da Apafunk. “Em baile funk é onde mais se bebe Red Bull, o que mais se vê é tênis Nike, várias marcas de cerveja. Quem diz que a Red Bull, a Nike e as cervejarias querem estar lá? Não querem”. Ele prossegue: “O governo financia Cirque du Soleil, jogo de peteca em Copacabana, financia tudo. Mas nunca o funk. Baile funk eles perseguem, proíbem, cassam alvará. Por quê? Porque o funk é associado ao tráfico, ao crime. Para a sociedade, favelado é igual a funkeiro, que é igual a traficante. O funk está ligado à favela, que está ligada ao preto e ao pobre.”

Foi no contexto adverso da repressão aos bailes que surgiu a Apafunk, num movimento contrário à corrente, no qual se busca afirmar que favela é igual a funk, que é igual à música popular brasileira, que é igual à cultura, que é igual à liberdade de expressão. Ironicamente, o que impulsionou a mobilização funkeira foi uma lei repressiva proposta por um deputado (e ex-delegado da Polícia Civil) mais tarde cassado por acusações de lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, corrupção e facilitação de contrabando. Em 2008, Álvaro Lins (PMDB) emplacou na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) a lei estadual 5.265, que disciplinava especificamente bailes funk e raves, obrigando-os a instalar banheiros químicos, detectores de metais, câmeras de filmagem, entre outras exigências.

“A lei regulamentava eventos de duas camadas sociais tão distintas. As raves tinham como cumprir os requisitos, mas os bailes funk, na prática, ficavam inviabilizados”, destaca Guilherme Pimentel, integrante da Apafunk na condição de “amigo” (sem direito de voto) e assessor de direitos humanos do deputado estadual carioca Marcelo Freixo (PSOL), um aliado crucial do funk na Alerj. “O objetivo do projeto era jogar o funk na ilegalidade, sob a justificativa explícita de que estava ligado ao crime. A criminalização é um processo político, e o funk vem sendo historicamente criminalizado, sintoma de um sistema político que criminaliza os negros e pobres?”, questiona Pimentel. A lei passou a ser o cheque em branco para a polícia proibir bailes, eventos, espaços de confraternização. Em certas comunidades, o funk foi literalmente proibido, por escrito, “baseado na lei 5.265”.

À época, MC Leonardo conheceu a antropóloga Adriana Facina, professora da Universidade Federal Fluminense. Ela preparava tese de pós-doutorado sobre o funk carioca e foi uma das instigadoras da movimentação que culminou na Apafunk. “Há muita perseguição ao funk, com abordagens irregulares dos policiais. A apreensão e destruição de equipamentos de som é uma prática comum na passagem da polícia pela favela”, conta a antropóloga. “Quando entrevistei Leonardo, ele me falou que tinha vontade de fundar uma associação. Eu conhecia pessoas que podiam ajudar, fiz uma reunião em casa, em que foram autoridades públicas, representantes do Ministério da Cultura, deputados, advogados, gente de movimentos sociais e mídia alternativa”, lembra.

Foi o deputado (e professor de história) Freixo quem apresentou no ano passado os projetos de lei 5.543, pleiteando o reconhecimento do funk como movimento cultural e musical do estado do Rio de Janeiro, e 5.544, revogando a lei de Álvaro Lins. “O gabinete do Freixo virou minha nave espacial. Aprendi o que é um gabinete, como faz política”, conta MC Leonardo, que nasceu na Rocinha, foi jornaleiro, vendedor de coco e taxista, e vive de funk há 18 anos.

“Os projetos foram debatidos por favelados e depois levados para um deputado que pôs na linguagem da casa. Fui em 70 gabinetes de deputados, um por um, do mais reacionário ao menos”, conta o MC. “Ouvi deputado dizer ‘o Freixo combate o crime organizado, como vai apoiar o funk’. Foi uma experiência de vida do caralho. Aprendi que direito você não pede nem implora. Você exige”.

Uma audiência pública na Alerj reuniu 700 manifestantes pró-funk, entre MCs, DJs, equipes de som, acadêmicos e estudantes universitários, gente do hip-hop e de movimentos sociais. “Não pagamos lanche nem passagem de ônibus pra ninguém”, ironiza Leonardo. A votação aconteceu em 1o de setembro de 2009, com presença maciça de funkeiros, de MCs desconhecidos da mídia a Mr. Catra e DJ Marlboro. A lei 5.265, que havia sido aprovada quase unanimemente, foi revogada por unanimidade. E foi aprovada a lei que se preocupava em deslocar o funk das páginas policiais para as culturais. Um projeto de lei de reconhecimento do ritmo como manifestação cultural circula agora em âmbito federal, proposto pelo deputado Chico Alencar (PSOL). “É impressionante a velocidade com que o funk tem se mobilizado. A obrigatoriedade de diploma para jornalistas caiu, que jornalista se mobilizou?”, provoca Guilherme. As vitórias conscientizaram funkeiros do poder que podem acumular, mas a lei de Álvaro Lins trouxe consequências desarticuladoras, que se estendem até hoje. “Em muitas comunidades, as equipes de som ainda são proibidas de tocar, a meu ver arbitrariamente. Nas comunidades com UPPs, o funk foi praticamente proibido”, diz Guilherme, referindo-se às Unidades de Polícia de Pacificação (UPPs). “A Cidade de Deus hoje é dita pacificada pela polícia. O comandante a princípio proibiu, e só liberou depois de muita negociação e diálogo. No Santa Marta, foi um mês de briga”, descreve.

Candomblé, pornô e mídia preconceituosa O modo como a mídia tradicional aborda o funk costuma refletir fielmente o olhar em geral preconceituoso da sociedade sobre suas favelas. Sucessos de momento, como Atoladinha, de MC Bola de Fogo & As Foguentas, e Dança do Créu, do MC Créu, ocasionalmente invadem o asfalto, e por isso aparecem na TV ou num e noutro jornal. “Os tablóides daqui da cidade até falam sobre o funk, mas se vier acoplado com uma mulher-fruta, um BBB, um personagem de novela ou um jogador de futebol”, opina o jornalista Silvio Essinger, autor do livro Pancadão - Uma História do funk.

Esse gênero, na leitura mais habitual, tem a ver com diluição musical, sensacionalismo, exploração sexual, até apologia às drogas e ao crime nos chamados “proibidões”. Não são mentiras, mas são meias verdades, pois ficam na mais rasa superfície e elegem jogar foco apenas nos estigmas de sempre. Sob a bandeira da rejeição à precariedade musical de alguns funks, esconde-se a recusa em encarar e compreender as camadas sociais que os produzem. “O funk é o nosso jornal, é muito mais um veículo de comunicação do que de cultura”, expõe Leonardo. “Estudei só até a quarta série. Até o ano passado, eu nunca tinha entrado numa universidade. Hoje frequento, converso e sou reconhecido por eles. O pessoal da UFRJ, da UERJ e da PUC fez com a gente a cartilha de direitos autorais.” A cartilha “Liberta o Pancadão!” (disponível em www.apafunk.blogspot.com) é o gesto mais recente de institucionalização do funk. “Para uma música minha tocar na rádio, tenho que assinar contrato de edição com o DJ Marlboro, que deixa só 4% para mim, ou com Rômulo Costa (fundador da equipe de som Furacão 2000), que fica com 100% pra ele. São contratos vitalícios, se eu cantar hoje Endereço dos Bailes, que fiz há 15 anos, o Marlboro vai ficar com quase todo o lucro.” Leonardo classifica a dominação dos editores como “escravizadora”, e é hoje um legítimo funkeiro independente.

Outro pretexto para a rejeição ao funk é sua suposta filiação estrangeira, alienígena para ouvidos MPB, e mesmo para sambistas que sofreram, no começo do século passado, marginalização equivalente à que os funkeiros sofrem hoje. Leonardo dá aula sobre esse pormenor: “Hoje o funk carioca está muito mais pra macumba, xaxado e frevo que pra Marvin Gaye. Instrumento brasileiro é o pilão dos escravos, o repique de mão do Cacique de Ramos, o tamborim e o agogô. Tudo veio de fora, é resultado da diáspora africana”. Fala de cadeira, pois é filho de Chico Mota, músico que acompanhou o genial Jackson do Pandeiro. “Vim do forró, meu pai gravou seis discos com ele. Fui criado no coco, no xaxado, no baião.”

Diz Adriana Facina: “O funk é uma expressão cultural que se insere na tradição da música diaspórica. É muito mais próximo do samba, do jongo, que de imposições da indústria cultural estrangeira. Hoje a batida eletrônica é muito mais nacionalizada, tem influência de samba-enredo, forró, toques de maracatu e macumba”.

A ligação com o candomblé é tendência atual do funk, segundo Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pesquisador de movimentos populares como o funk e o tecnobrega: “Há no funk hoje uma dominância de um ritmo novo, que uns chamam de ‘macumbinha’ e outros de aquecimento. É estranho, cria uma tensão que não solta, um negócio contido, voltado pra dentro, sem explosão”.

Ronaldo cita como sucesso do momento Piriguete, do MC Papo, cujo videoclipe tem mais de 10 milhões de visitas no YouTube. “Tá Perdoado, o mais visto da Maria Rita, tem 2 milhões”, compara. Como de praxe, estão em voga também funks sexualmente explícitos como Surra de Bunda, cantado e encenado pelas Tequileiras do Funk, e a resposta masculina, Coça de Pau, pelos Havaianos.

São munição para quem prefere se escandalizar com o funk a conhecê-lo. “Tem gente que diz ‘ah, mas funk é pornô’. Não, tem gente fazendo pornô, mas o funk não é pornô. Não vamos ser puritanos, mas crime é crime, com funk ou sem funk. O cara que fala que a menininha tem que sentar na piroca dele está cometendo um crime”, reage Leonardo, referindo-se à exploração infantil e infanto-juvenil, que gera indignação quando diz respeito ao funk, mas não tanto quando se trata de Maísa, a garotinha que trabalha duro para dar audiência a Silvio Santos.

Democracia e MST

“O funk é democrático. A gente paga caro pela democracia, porque aparecem essas letras loucas aí. Mas aparecem diamantes também”, continua Leonardo. “Quem mais daria espaço para a Lacraia, uma travesti? O funk não exige que o cara seja bonitinho e tenha todos os dentes na boca, como exigem as gravadoras.”

Exemplos de funks luminosos são abundantes, sim senhor. O próprio Leonardo é autor do Rap da Igualdade, que diz: O preconceito vem do asfalto pra favela/ discriminação à vera chega em cartão postal/ em outdoor a burguesia nos revela que o pobre da favela tem instinto marginal/ e o meu povo quando desce pro trabalho pede a Deus que nos proteja dessa gente ilegal, doutor/ que nos maltrata e que finge não saber que a guerra na favela é um problema social/ eu não sou marginal/ eu só imploro a igualdade pra viver, doutor, no meu Brasil que o negro construiu.

A resistência a esse tipo de letra acontece até dentro do próprio movimento, segundo ele: “Tem coisas que ficam paradas porque ‘não está na hora de malhar a elite’. Marlboro disse isso na minha cara”. No decorrer dos anos, no entanto, têm passado pelas frestas letras como a do emblemático Rap do Silva, com o MC Bob Rum. Versos como era só mais um Silva que a estrela não brilha/ ele era funkeiro, mas era pai de família ecoam os tempos idos em que Cartola era flanelinha e sambista, era visto pela sociedade branca como sinônimo de “malandro”.

O Rap da Igualdade é um passo evolutivo importante numa sucessão de funks de orgulho, como aqueles dos anos 1990, que diziam eu só quero é ser feliz/ andar tranquilamente na favela onde eu nasci (Rap da Felicidade, com Cidinho & Doca) ou é som de preto, de favelado/ mas quando toca ninguém fica parado (Som de Preto, com Amilckar & Chocolate). A altivez aumentou nos anos 2000, com o desafio feminino de sou feia, mas tô na moda/ tô podendo pagar hotel pros homem e isso que é mais importante (Sou Feia, mas Tô na Moda, de Tati Quebra-Barraco) ou de fazer média pro pobre na televisão/ tu pode achar maneiro, doutor, mas eu não acho, não/ desce do salto, segue a ladeira, sobe o morro/ vá ouvir o gemido do povo/ vá que Alcatraz é lá (Alcatraz, de MC Dandara). Alguém ainda duvida de que são, todos esses, marcos históricos importantes da nossa música popular?

A pluralidade temática atual está ao alcance dos ouvidos de qualquer um, por exemplo no site Funk Neurótico (www.funkneurotico.net), onde se enfileiram MP3 gratuitos de centenas de funks novos em folha. MC Márcio canta Soropositivo e Me Guarde na Memória (me guarde na memória/ cuide do meu filho, me perdoe, mãe, não chora, não chora, não chora). De alma e coração eu sou favela/ sou mais eu, sou mais você/ então não deixa ninguém falar mal dela, declama MC Crazy no início de Pra Defender Minha Favela.

Um coletivo de funkeiros canta um curioso funk chamado Pré-Sal, que faria gosto a ouvidos nacionalistas: Se são nossas riquezas então é nossa vez/ não tome o que é nosso, queira o que é de vocês/ pré-sal é nosso, sim, riqueza do nosso chão/ não adianta olho grande nem ambição/ pré-sal é nosso, sim, é do nosso povão/ inveja e ganância não leva, não. Menos recente, mas bastante eloquente, é um funk chamado Nossa Bandeira, cantado por Júnior e Leonardo sobre uma forte cama de instrumentos de samba: Voltei pra defender nossa bandeira/ levanta acampamento, guerreiro, é hora de avançar/ vamos falar de preconceito social/ o que te faz ser um doutor/ e o que te faz ser marginal.

Além do cutucão em preconceitos que a sociedade branca teima em manter debaixo da cama (ou no quartinho da empregada negra), há algo interessante aí. É o verso “levanta acampamento, guerreiro, é hora de avançar”, de retórica que remete diretamente ao Movimento dos Sem-Terra (MST). “O funk está nos acampamentos do MST. A primeira vez que fui num, pensei: ‘O que eu estou fazendo aqui?’”, lembra Leonardo. “O medo que se tem do MST é que ali uma criança de 10 anos consegue ficar duas horas te ouvindo. Em quatro horas, fazem uma cidade no meio do nada. Quando falo em acampamento sempre tem gente que resiste, diz no início que o funk prostitui crianças. E a mesma pessoa volta no final, dizendo que achava que funk era igual a PCC e Comando Vermelho, pedindo desculpas.” Numa inesperada parceria campo-cidade, o MC já colocou batida de tamborzão num hino do MST. Mas, afinal, o que o funk urbano teria a ver com o levante rural? Leonardo decifra numa frase o óbvio ululante: “Todo favelado é um sem-terra”. Seriam mesmo musicais as divergências entre o morro funkeiro e o asfalto que pulsa ao som de MPB, bossa eletrônica, Lady Gaga e, de vez em quando, funk carioca? Essa matéria é parte integrante da edição impressa da Fórum 85. Nas bancas.

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