A preservação e os direitos dos povos da terra

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Foto: Juliana Di Thomazo
Foto: Juliana Di Thomazo
"O nosso maior problema aqui é o Ibama.” Durante todo o percurso a reclamação se repetira, mas a frase dita pela professora Raimunda Saraca, quando nossa viagem estava próxima do fim, me pegou de jeito. E me fez pensar que a série de três reportagens, que se encerra nesta edição, teria de dar alguma centralidade à questão. Também me fez refletir acerca de algumas questões. Por que sempre que ouvia argumentos com base em contrariedades ao projeto de preservação por parte dos habitantes locais eu os encarava com desconfiança? Por que achava que essa resistência de alguma forma teria conexão com uma “articulação do mal”? Por que não havia me dado conta que a preservação da Amazônia precisa, em primeiro lugar, trazer benefícios para os que a habitam e sempre a preservaram? Por que nunca atentei para o fato de que a forma como estamos debatendo a preservação da Amazônia sempre deixa em segundo plano a cultura popular local e os hábitos dos que vivem nela?
Essa última pergunta, aliás, estava absolutamente ligada à história que a professora Raimunda Saraca me contara para justificar a frase em relação ao Ibama. “Outro dia, uns meninos estavam pescando e caçando coisas para a gente comer, para fazer uma festa, quando foram pegos pelos fiscais do Ibama.” A caça é criminalizada na Amazônia. A pesca no período do defeso também. Claro que há sentido nisso. No caso da pesca, inclusive, o governo oferece por alguns meses uma bolsa defeso. Exatamente para que pescadores não precisem trabalhar o ano inteiro, o que pode levar a um colapso da atividade na região. No caso da caça, só é proibido. Ponto final.
Mas o habitante local sempre caçou, adora comer paca, anta, tatu, tracajá... E agora, como ficam as coisas?
Podem ficar como no caso dos meninos que foram pegos por fiscais que decidiram aplicar uma punição diferenciada. “Eles tiraram os remos deles e os fizeram voltar de lá do fim do mundo apenas usando as mãos. Uma coisa horrorosa. Quando foram pegos eram 9h da manhã. Só às 23h que conseguiram remos emprestados por um senhor que vive ali adiante. E aí, conseguiram voltar”, completa dona Raimunda.
São 25 milhões de pessoas que vivem hoje na Amazônia brasileira. Boa parte em situação muito precária, como nos chama atenção o economista Ignacy Sachs em um documento intitulado Amazônia, Laboratório das Biocivilizações do Mundo. Somos 6 bilhões que precisamos da Amazônia preservada. Mas será que temos o direito de instalar um Estado policial na região por conta disso? Será que o combate à exploração da floresta deve se dar pela lógica da rígida fiscalização? Será que a Amazônia e a cultura local não teriam melhor sorte se fizéssemos um amplo debate sobre como melhorar a vida dos povos da floresta?
Clara Araújo da Silva, agente de saúde da comunidade Costa do Arara, faz coro aos protestos de Raimunda: “Não dá para fazer coisa nenhuma, precisamos reverter essa situação. Não podemos fazer uma roça, cortar uma vara ou explorar qualquer coisa que eles vêm com tudo em cima.” E acrescenta: “do jeito que as coisas vão, se a gente continuar não podendo trabalhar com a madeira, a Amazônia vai ser habitada só por aposentado, por quem tem bolsa família ou por funcionário público. Ela não vai ter gente jovem”. Ao seu lado, Oscar Santos Marques, presidente da comunidade, vai mais longe: “A gente está cansado de ver canoas sendo apreendidas, de ver amigos humilhados só porque estavam caçando algo... Uma hora vai acontecer algo muito triste”.
Não fomos às Anavilhanas com a disposição de encontrar pessoas questionando a ação do Ibama, mas achamos muitas. Na verdade, a reportagem não encontrou ninguém, entre as dezenas de pessoas entrevistadas, que elogiasse a ação do órgão e a legislação que, por obrigação de ofício, seus servidores precisam executar. Até porque as leis ou sua interpretação contêm algumas “esquizofrenias” que mereceriam urgente correção. 

Foto: Juliana Di Thomazo Foto: Juliana Di ThomazoEles constroem canoas

 Frutuoso Pereira vive na Terra Preta e pode-se dizer que aprendeu o ofício que hoje lhe garante o sustento tardiamente. Foi com 38 anos que começou a fazer canoas. Hoje, aos 66, ainda está na ativa. “Se tiver toda a madeira aqui, em 15 dias faço uma.” E o preço? “Conforme o comprador. Tem dia que a gente vende a mil, mas em outros pede 1,5 mil”. E como aprendeu a fazer canoas? “Muito na vontade, mas foi o tio da minha mulher que me ensinou, ele era carpinteiro.” E hoje o senhor é quem ensina? “Não que eu seja um mestre, mas ensino sim, porque, as que eu faço, feias elas não saem.”
Não são poucos os possíveis herdeiros de seu Frutuoso, aqueles que com ele já aprenderam o ofício ou ainda estão aprendendo. “Tenho nove filhos e 23 netos.” Ele nos explica que a casa mestre da canoa é de Itaúba, como o banco. E que precisa cortar a madeira da mata para tocar seu trabalho. “É uma coisa pouquinha que a gente tira, mas eles ficam nos atrapalhando. Quando a gente está com a madeira aqui no chão, fazendo o trabalho, não tem problema. Mas se eles pegam a gente na mata, cortando, aí vêm pra cima.” Como fazer canoas é artesanato, não há restrição à atividade. Ao mesmo tempo, o canoeiro não tem autorização para extrair a madeira e ao fazê-lo pode ser autuado. Como sem madeira não é possível fazer canoas, o leitor já deve ter concluído o que acontece. Foi isso que chamei de esquizofrenia da lei ou da sua interpretação.
Carlos Alves da Costa, canoeiro e presidente da comunidade Nossa Senhora de Fátima, diz que a situação piorou muito “para o caboclo local” depois que a área onde vive se transformou em Reserva de Desenvolvimento Sustentável. “Eles pagam uma bolsa floresta, mas isso não é suficiente.” O valor é de 50 reais. De qualquer forma, Carlos estava feliz quando o encontramos. Ele aguardava a chegada da eletricidade na sua comunidade. E sonhava com o que ela poderia lhe proporcionar. “A chegada da luz vai melhorar muita coisa na comunidade. Eu, por exemplo, vou poder usar lixadeira e furadeira. Além disso, vou comprar uma serra elétrica, uma plaina, o que vai ajudar muito para fazer as canoas.”
A chegada da luz também já criou uma “especulação” imobiliária local. Segundo Carlos, uma casa pequena com terreno de 15 por 25 metros, que antes custava de 1 mil a 1,5 mil reais, já está custando 5 mil. “As pessoas estão cansadas de morar em lugar sem luz. E às vezes vem gente aqui e acha que a gente só quer luz por causa de televisão. É claro que é bom pra isso também, mas não é só. A gente precisa de eletricidade para trabalhar, pra refrigerar alimentos. A vida muda inteirinha com a chegada da luz.” 

Foto: Juliana Di Thomazo
Foto: Juliana Di Thomazzo
Os quilombolas de Novo Airão
Novo Airão é a maior cidade da região das Anavilhanas. Tem aproximadamente 15 mil habitantes e um porto bastante movimentado. Aliás, um porto onde se pode brincar com botos e que também é repleto de mototaxistas. Mas em Novo Airão também vive uma boa parte dos quilombolas que foram expulsos de suas terras em razão da criação do Parque Nacional do Jaú, hoje o maior parque nacional do Brasil e o maior do mundo em floresta tropical úmida contínua e intacta.
A história da expulsão dos quilombolas do Jaú é simbólica dessa reflexão a respeito da contradição entre a preservação da floresta e a não-valorização do homem da terra e suas culturas. Quando o Parque Nacional do Jaú foi criado, em setembro de 1980, havia comunidades vivendo no local. Como ainda há algumas hoje. Entre elas, as do quilombo Tambor, que estava na região desde 1907.
Valdir José Maria dos Santos, 50 anos, que em 1994 decidiu com sua família sair do parque e do Tambor, conta sua história. “Morei até os 36 anos no quilombo, que hoje faz parte do parque do Jaú. A vida lá era um paraíso. Tinha muito peixe, banana, macaxeira. Depois que o Ibama chegou, começaram as ameaças. Eles diziam que a gente não podia ficar, que não podia caçar, que não podia plantar. E o povo foi saindo aos poucos, aos pouquinhos, até a nossa família decidir sair.” O Ibama, segundo Valdir, também passou a proibir os quilombolas de levar qualquer equipamento para suas casas. E também impedia os moradores de reformar ou ampliar suas moradias. “Teve um dos funcionários do Ibama, chamado Brito, que colocou até uma arma em cima de mim me ameaçando”, denuncia Valdir.
Hoje ele diz que está inserido no contexto de Novo Airão, mas que no começo sofreu muito para poder se adaptar. “Cheguei aqui com 36 anos, não tinha cultura, foi tudo muito difícil.” Ele espera que a indenização pelo fato de ter sido expulso da sua terra venha logo, para que possa aproveitá-la ainda com saúde.
Sua irmã, Ivanilda Gonçalves dos Santos, 44 anos, também saiu do Jaú na mesma época que ele. Hoje ela faz parte da comissão do movimento que luta por indenização. “Como a gente não tinha documento das terras, eles nos tiraram. Alegavam que se a gente não saísse as coisas iriam ficar cada dia mais difíceis.” E como foi, no começo, a vida aqui em Novo Airão? “A gente não tinha idéia de como eram as coisas. Essa parte foi muito dura. Eu tinha 30 anos quando cheguei aqui e minhas filhas eram novinhas, ingênuas. Logo elas engravidaram e acabaram não continuando os estudos”, revela. Hoje ela e seu esposo são pescadores. E seu sonho atual é fazer um barco próprio. “Estamos há dois trabalhando só para conseguir isso.”
Ivanilda sofreu e ainda sofre um pouco por ter sido expulsa de sua terra. Mas acredita que os quilombolas que permaneceram no Jaú estão sofrendo muito mais. “Aqui a gente ainda tem luz e água, lá eles não têm nem isso.” Então por que eles continuam por lá? “Porque eles ainda não foram indenizados e cada dia que passa fica mais difícil sair. Se naquela época que a gente tinha 14 anos a menos já foi difícil, hoje para eles é ainda pior tomar essa decisão.” Mas ao terminar de falar isso, dá uma parada e faz questão de se explicar. “A vida no quilombo também tinha muitas vantagens. Lá a gente não se preocupava com drogas, bebidas, essas coisas. Já aqui, não, a gente tem que ficar muito de olho nos filhos, porque é muito fácil se perder. Além disso, lá a gente não comprava comida, farinha... Lá tinha fartura. Mas também não tinha escola e nem posto de saúde, nem água encanada, nem luz. Por isso foi melhor ter saído.” E você já pensou em tentar voltar para lá um dia? Em lutar por isso? “Não, hoje eu só quero minha indenização. Não dá mais. Onde estava o nosso sítio não existe mais nada. Se voltarmos, teríamos de começar tudo de novo.”
Quem nos levou para conversar tanto com Ivanilda como com Valdir foi um dos jovens mais interessantes que entrevistei nesses 20 anos de jornalismo. Josué Lima dos Santos, 17 anos, o caçula do movimento do Tambor. Foi ele quem nos explicou em detalhes as reivindicações do movimento. São mais de 100 famílias que buscam valores de aproximadamente R$ 5 mil cada. A maior parte delas, 80% aproximadamente, vive atualmente em Novo Airão. Apenas 20% ainda estaria no Jaú. Ao fim de nossa conversa, Josué é direto e reto: “O que aconteceu ali foi um genocídio cultural”. E acrescenta: “Tem gente que tem até medo de se assumir como quilombola por conta do preconceito, porque os quilombolas chegavam aqui quase como mendigos.” Acho muito impactante sua resposta e pergunto se ele estava estudando. “Sim, estou terminando o colégio. Vou tentar uma bolsa para estudar antropologia e poder trabalhar com as nossas comunidades.”
Quem sabe algumas de nossas perguntas não venham a ser respondidas a partir de estudos de jovens como Josué, que vivem as contradições e riquezas da luta local. Até porque não é fácil discordar de reflexões como a de Virgilio Viana, que vive nos Ingleses, comunidade de 16 famílias. “Querendo ou não, a gente está dentro da reserva de Anavilhanas e nós temos de respeitar o Ibama, mas a lei foi feita sem que nós fôssemos consultados. O que acontece é que as pessoas de fora vêm aqui e tentam mostrar para a gente como se faz. Mas dependemos da natureza, temos que tirar nosso sustento daqui. E nós temos esse direito. Nós nascemos aqui, vivemos aqui e preservamos aqui.” 

Fotos: Juliana Di Thomazo
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