A revolução negra nas telas do cinema

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7 de abril de 1803. Abandonado por Napoleão Bonaparte num calabouço do Castelo de Joux, na França, o líder da Revolução Haitiana, Toussaint L’Ouverture, morre de fome e frio aos 57 anos de idade. Oito meses antes, preso pelo general Leclerc (cunhado de Napoleão), o líder da única insurreição vitoriosa de escravos na história desembarca no porto da cidade de Brest e entra na cela no dia 23 de agosto de 1802. Sem direito a julgamento, nunca mais retornaria à liberdade e não assiste à proclamação da independência de seu país, em 1º de janeiro de 1804.
Este capítulo da história ocidental é pouco lembrado pelos currículos escolares, mas poderá entrar, através do cinema, de forma definitiva no imaginário popular mundial. Quem vem batalhando para isso é o ator estadunidense Danny Glover, histórico militante de direitos civis e que há anos tenta produzir a cinebiografia de L’Ouverture. O ator de Máquina Mortífera e do recente Ensaio sobre a Cegueira (dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles), planeja uma produção ousada, orçada em US$ 30 milhões. Mas, apesar de já ter confirmado atores importantes para atuarem no filme, Glover vem sofrendo para arrecadar o montante. “Vocês não podem imaginar a quantidade de produtores que encontrei nos Estados Unidos e na Europa. Eles diziam ‘é um projeto magnífico’, mas logo depois perguntavam: ‘é um filme de negros?’”, declarou o ator, em uma convenção na Cinemateca de Paris, em julho deste ano.
A resistência de produtores em patrocinar o longa-metragem não soa como novidade para Diva Damato, professora aposentada de Letras Modernas na USP e pesquisadora da literatura caribenha. “Um filme sobre a revolução dos negros abriria feridas na Espanha, em Portugal, na Inglaterra. Inclusive na França, cuja elite atual é descendente dos mercadores de escravos”, diz. Segundo ela, o Caribe como um todo produziu sobre L’Ouverture livros, música, teatro, mas nenhuma obra cinematográfica. “Há uma vasta produção literária, mas realmente falta um filme.” A peça teatral Senhor Toussaint (1961), de Édouard Glissant, da Martinica, por exemplo, narra poeticamente os últimos momentos do líder haitiano, ensandecido pelo isolamento, conversando com fantasmas. Glissant é freqüentemente cotado para o Prêmio Nobel de Literatura e deverá ser uma das fontes inspiradoras de Glover para a realização do filme.

Luz, câmera e revolução
Dentro desse contexto de problemas de arrecadação, quem resolveu dar uma ajuda providencial a Danny Glover foi o presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Através da Villa Del Cine, produtora atrelada ao Ministerio del Poder Popular para la Cultura, criada em 2006, Chávez liberou para o estadunidense US$ 19 milhões (ou aproximadamente R$ 30 milhões). O acordo de co-produção prevê que a Venezuela receba 120% do total investido e adicionais 50% da exploração do filme. “O crédito total para produções internacionais, de US$ 22 milhões, inclui também um filme sobre Simón Bolívar, produzido e dirigido pelo venezuelano Alberto Arvelo”, explica a diretora-presidente da Villa del Cine, Lorena Almarza.
Para ela, a razão da dificuldade de Glover em arrumar outros sócios produtores está no plano das idéias. “A muitos deles não interessam filmes que mostrem a história de negros aguerridos, com grandes ideais. Sobretudo porque fazem parte de culturas imperialistas, que são profundamente racistas e favorecem uma visão escravista e de exploração”, afirma. Que o assunto das heranças da escravidão precisa sempre ser debatido, não se discute. Mas a quantidade de dinheiro investida em um filme estrangeiro não deixou nada contente alguns produtores de cinema na Venezuela. Em carta endereçada a Danny Glover, a Associação Nacional de Autores Cinematográficos e da Câmara Venezuelana de Produtores de Longas-Metragens (Caveprol) diz: “Com o maior respeito, lhe dizemos que você fez parte de algo pouco ético”. Atualmente com 380 realizadores, a Associação mantém o tom da crítica na continuação da carta: “a quantidade de dinheiro que nosso governo acaba de assegurar ao seu projeto, de maneira discreta e secreta, corresponde ao total do que foi recebido pelos organismos cinematográficos da Venezuela nos últimos cinco anos e serviria para financiar 36 filmes venezuelanos”.
Aqui pelas terras brazucas, há também quem não veja com bons olhos a “canetada presidencial” de Chávez. “Acho uma falta de respeito com os cineastas venezuelanos”, diz Jeferson De, diretor do filme Bróder, que deverá chegar à telona no ano que vem. Orçado em R$ 3,5 milhões, o filme foi o único longa-metragem filmado até hoje nas ruas do Capão Redondo, bairro símbolo da periferia paulistana. O cineasta também é autor do Manifesto Dogma Feijoada, que reclama maior valorização do negro no cinema brasileiro. “Não descarto a possibilidade de racismo o fato do Danny Glover não conseguir arrecadar o dinheiro, mas essa ajuda do Chávez daria para produzir muito cinema na Venezuela. Eu mesmo gostaria de conhecer melhor os filmes deles”, diz De.
Lorena Almarza, da Villa del Cine, rebate as críticas e diz que o projeto Toussaint – provável nome do longa-metragem – não só trará melhorias para o futuro do cinema na Venezuela como será benéfico a toda a América Latina. “É nossa contribuição à humanidade e uma dívida fundamental que se tem com o Haiti. Toussaint representa um marco na rebelião dos escravos em nosso continente e sua história deve ser contada”, diz. Almarza também faz questão de frisar que o Estado bolivariano está investindo mais de US$ 120 milhões no setor nacional, tanto através da Villa del Cine quanto pelo Centro Nacional Autônomo de Cinema, a Cinemateca Nacional e a distribuidora Amazonia Films. “A luta de Toussaint é de interesse do povo venezuelano, ainda mais por existir em nosso país uma grande força e rede de afro-descendentes e nós termos reconhecido que nossa sociedade é pluricultural e multiétnica”, finaliza.
Resta saber se, nessa briga, utilizar-se da visibilidade de Danny Glover, de atores hollywoodianos e da polêmica já instaurada nos EUA devido ao apoio de Chávez, atrairá mais espectadores ao cinema. Mas outros tantos ficarão de fora. “Mesmo que ele venda muitos ingressos, que se discuta a escravidão, quantas pessoas no Brasil, por exemplo, têm dinheiro para ir ao cinema?”, questiona Diva Damato. o Brasil é a nação, fora da África, com o maior número de negros no mundo.

Educação como instrumento de dominação
A Hispaniola, primeiro nome dado por Cristóvão Colombo para a ilha do Haiti, foi onde os colonizadores europeus pisaram pela primeira vez nas Américas. Em menos de 15 anos, a Europa “civilizada” dizimou os indígenas: a população nativa baixou de aproximadamente meio milhão para 60 mil habitantes.
Já nos tempos da Revolução Francesa, em 1789, o Haiti (ou Santo Domingo, como era chamada a ilha) era a maior colônia francesa do mundo e representava dois terços do comércio exterior dessa metrópole. Era, também, o maior mercado individual para o tráfico negreiro europeu.
Quando a Convenção da Revolução Burguesa proclamou a libertação dos escravos de todas as colônias francesas, a notícia rapidamente se espalhou por Santo Domingo e em 1791 teve início a rebelião. Engenhos de açúcar foram destruídos e centenas de proprietários mortos. A luta estendeu-se por 12 anos, entre batalhas contra brancos, soldados da monarquia, espanhóis e britânicos invasores, além da expedição francesa comandada por Napoleão Bonaparte. A derrota desta última oficializou a independência definitiva do Haiti, em 1º de janeiro de 1804.
Passados dois séculos, a sensação é de que a história nunca deu a devida importância à Revolução Haitiana e, muito menos, à figura do líder Toussaint L’Ouverture. “Quantas pessoas escolarizadas pelo menos até a oitava série no Brasil sabem que o Haiti teve uma revolução de escravos, que tomaram o poder e derrotaram Napoleão Bonaparte?”, pergunta Damato. “A revolta dos escravos é claramente negligenciada pela história, nas escolas, faculdades”, concorda o sociólogo e cientista político Emir Sader. A dica dele é para que todo e qualquer historiador brasileiro não deixe de ler Os jacobinos negros (Boitempo Editorial), livro do jamaicano C.L.R. James, que também deverá servir de obra inspiradora para Danny Glover.
Falando em inspiração, se os deuses do vodu (religião oficial do Haiti) permitirem, talvez o filme ajude a ecoar a frase dita pela personagem de L’Ouverture, na peça teatral de Édouard Glissant, direcionada ao seu povo: “Derrubando-me a mim, não abateram em Santo Domingo o tronco da árvore da liberdade dos negros. Ele se renova pelas raízes, que são numerosas e profundas”. F