A terra prometida que não existe

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O tema da imigração “é uma obsessão na Europa”, definiu o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, ao comentar o imbróglio diplomático que envolveu Brasil e Espanha nos primeiros meses deste ano, quando as autoridades espanholas foram acusadas de submeter a maus tratos um número crescente de viajantes brasileiros detidos no aeroporto de Madri. Obsessivo ou não, o Parlamento Europeu aprovou no dia 18 de junho a chamada Diretiva de Retorno, que estabelece regras comuns para a União Européia (UE) no trato com os imigrantes irregulares. Entre as medidas que apertam o cerco, está a possibilidade, antes da deportação, de detenção sem julgamento por até um ano e meio das pessoas cuja entrada, permanência ou residência no continente forem consideradas ilegais. O pacote, que ONGs de defesa dos imigrantes chamam de “Diretiva da Vergonha”, entra em vigor em 2010.
Embora os latino-americanos também figurem na mira das novas regras, o principal alvo do endurecimento provavelmente esteja mais direcionado ao drama de milhares de africanos que tentam realizar o sonho de chegar ao “paraíso” europeu utilizando o território espanhol como entrada. Muitos deles passam por uma verdadeira via crucis, cujas estações podem se estender por vários países e longos anos até atingir o Marrocos. Dali, a esperança é cruzar para o outro lado do estreito de Gibraltar: são apenas 14 quilômetros a separá-los da “terra prometida” – mas poucos conseguem pisar nela.
Para a imensa maioria, o final da história inclui prisão e deportação – ou mesmo a morte, conseqüência dos naufrágios das embarcações nas quais os viajantes clandestinos pagam às máfias da imigração verdadeiras fortunas para entrar. São freqüentes os casos de cadáveres que aparecem nas costas espanholas. Em duas tragédias recentes separadas por poucos dias, na primeira quinzena de julho, morreram 29 pessoas que tentavam a travessia nas águas do estreito. Depois de episódios de revolta e agressões contra os guias, alguns mafiosos passaram a exigir que os africanos viajassem de mãos atadas, o que torna praticamente inevitável a morte em caso de acidente.
A trágica odisséia dos imigrantes ilegais africanos foi acompanhada pelo jornalista português Paulo Moura, repórter especial e colunista do diário Público, de Lisboa. A investigação resultou no livro Passaporte para o céu, publicado em seu país em 2006 (editora Dom Quixote) e ainda não lançado no Brasil. “Estamos no cenário caricatural do grande drama humano da nossa época. O mundo rico e o mundo pobre frente a frente, separados pelo espelho deformador do estreito de Gibraltar”, escreve Moura no livro.
Paulo Moura começou sua carreira jornalística junto com a fundação do diário Público, em 1989, e já cobriu conflitos em lugares como Iraque, Afeganistão e Chechênia, tendo recebido vários prêmios nacionais e internacionais de reportagem. Confira abaixo trechos da entrevista concedida por ele em seu apartamento, em Lisboa.

Fórum – Você não conhecia a história desses imigrantes e envolveu-se com ela ao fazer uma reportagem sobre outro tema. Como isso aconteceu?
Paulo Moura –
Os imigrantes do Magreb que vivem na Europa e vão passar férias nas suas terras – Argélia, Marrocos, Tunísia etc. – atravessam Gibraltar mais ou menos nos mesmos dias de agosto. São milhões de imigrantes e costuma ser uma confusão, com carros em fila dias e dias à espera. Para controlar isso, o governo espanhol organiza a chamada Operação Estreito, com polícia, médicos e assistentes sociais. É uma coisa espetacular. A idéia era fazer uma reportagem sobre toda essa festa. Então eu e o (fotógrafo espanhol) Nacho Doce começamos a ver os outros, os clandestinos, que vinham de Tânger e Ceuta tentando entrar no porto de Algeciras (cidade portuária no Sul da Espanha). Eles vinham agarrados na parte de baixo dos caminhões, de bicicleta, de moto ou escondidos em barcos. Quase todos, uns 50 ou 60 por dia, segundo os guardas, são presos e apanhados. E, claro, aí está o papel do jornalista, que ia fazer uma coisa, mas viu outra muito mais interessante...

Fórum – E como você chegou a Missnana?
Moura –
Começamos a falar com os guardas e com alguns desses imigrantes, e chegamos ao franciscano Isidoro Macías, o “padre Pateras” (o apelido vem da designação dos barcos de madeira utilizados para as travessias antes dos zodiacs, pequenos botes infláveis), responsável por casas e apartamentos que albergam mulheres africanas que chegam grávidas ou com crianças. Ele nos levou a essas casas, onde conversamos com algumas mulheres. Elas diziam que ali viviam milhares de imigrantes vindos de toda a África que chegavam para tentar passar clandestinamente nos barcos e atravessar o estreito de Gibraltar. Fomos a Tânger, conseguimos chegar a Missnana e falar com algumas pessoas. Voltamos uma semana depois e então conheci o Benjamim, o primeiro amigo que contatei lá e que acabou por me orientar e me apresentar aos vários líderes.

Fórum – Você continua tendo contato com as pessoas que conheceu? Uma delas, a Magdalene, diz no livro que você talvez tenha sido enviado por Deus para ajudá-la.
Moura –
A Magdalene foi deportada para a Nigéria. Ela me telefonou de lá várias vezes. Esteve quase para passar, mas foi num período em que havia muito policiamento, e foi apanhada. Ultimamente abrandou um pouco, mas durante um bom período não havia semana em que eu não recebesse telefonemas da selva de Missnana, da Nigéria, de Tânger, dos vários pontos e estações ao longo do percurso. Todos eles têm celular, porque precisam estar em contato uns com os outros para receber dinheiro, para falar com os que chegam à Europa e os ajudam, com os que estão na Nigéria para tentar enviar dinheiro etc. Ter um celular é fundamental para a sobrevivência.

Fórum – O que eles pediam?
Moura –
As coisas mais incríveis: ajuda, dinheiro, pediam para ir buscá-los. Perguntavam: “podes mandar-me US$ 3 mil amanhã, faz favor?”. A Magdalene pedia-me sempre para trazê-la no carro. Ela estava convencida de que eu poderia colocá-la no porta-malas do carro e passar a fronteira. Confesso que chegamos a pensar nisso. Eu e o fotógrafo fomos à fronteira e fizemos o teste para ver qual era a probabilidade de a polícia revistar o carro. Mas era muito complicado, a possibilidade de sermos todos presos era imensa. Fiz contato também com vários que entraram na Europa, principalmente com as moças que acabam se tornando prostitutas. Mal chegam à Espanha, elas telefonam para um contato e são enviadas para vários países. É uma estrutura muito bem-organizada, cujo centro é na Itália. A maior parte dos agentes está baseada em Milão, mas espalhados por toda a Europa estão vários agentes, várias “madames” (prostitutas que “sobem” na carreira e se transformam em “chefes” de outras), vários supostos comerciantes de roupa. Eles têm sempre um trabalho qualquer para disfarçar sua verdadeira atividade. Outra fase do trabalho foi o contato com as prostitutas aqui em Lisboa. Muitas delas estiveram em Missnana por vários anos.

Fórum – A situação na floresta continua a mesma?
Moura –
Tudo tem que ser muito flexível e muda muito rapidamente, conforme as perseguições da polícia. Das últimas vezes em que fui lá, em Missnana havia pouca gente, e eles já estavam muito mais na floresta de Ben Yunech, que é na região de Ceuta. Mas a quantidade de imigrantes africanos ilegais continua a aumentar nos vários pontos do caminho. Uma das estações, onde gostaria de ir mas ainda não consegui porque é muito difícil, é Oujda, na fronteira entre Marrocos e Argélia. A polícia apanha os imigrantes, deporta-os para a fronteira e, como nem o Marrocos nem a Argélia os deixam regressar, eles ficam naquela terra de ninguém. Ali as condições são terríveis: no meio do deserto, temperaturas negativas à noite e de 50ºC durante o dia. Eles ficam sem comida, sem roupas, sem tendas, sem nada...

Fórum – As pessoas que estão nas florestas sem família, sem recursos, sem ter quem lhes dê o dinheiro, estão condenadas à morte?
Moura
– Muitos morrem, talvez a maioria. Boa parte dos que tentam atravessar também morre nos naufrágios. Muitos são apanhados e deportados, mas quase todos voltam a tentar. Recomeçam lá do início o processo todo. Alguns que conheci estavam completamente encurralados. Não conseguiam sair, não tinham como pagar, e a família estava à espera que eles enviassem dinheiro. O imigrante é a esperança de uma família inteira. Alguns são tipos muito cultos, têm curso superior. Os que fazem essa aventura de imigrar nem são os mais pobres. Os mais pobres não têm qualquer hipótese de sair de lá. Saem os que conseguiram dinheiro para isso. Há gente licenciada, com curso superior, mas que nunca teve trabalho em seu país. Na prostituição as moças levam € 15 por cliente, com média de um a dois clientes por dia. Até pagar os € 40 mil... É só fazer as contas. As mais espertas passam a trabalhar também na organização. No livro falo da Juliete. Na segunda vez que fui vê-la, ela já era uma “mulher de negócios”, uma “madame”. A única forma de se libertar desse ciclo é passar para o elo seguinte na hierarquia.

Fórum – Você diz que a União Européia (UE) deu dinheiro para o governo do Marrocos lidar com a questão do seu jeito...
Moura
– A UE naquela ocasião tinha a política de ajudar o Marrocos dando dinheiro para, entre outras coisas, a polícia se organizar nas fronteiras. A atitude era, e ainda é de certa maneira, de resolver o problema a montante, ou seja, que do Marrocos esses imigrantes nunca chegassem a entrar na Europa. Houve até experiências de criar campos para os refugiados no Marrocos e em outros países do Magreb, como a Líbia, em que essas pessoas tivessem condições como alimentação e atendimento médico para que depois fossem deportadas. Mas não havia controle nenhum sobre como é que o Marrocos resolvia o problema com o dinheiro. Na prática, vi como a polícia atuava de forma bárbara naqueles campos. Ela entra com grupos de milícias armadas de marroquinos que servem como guias, e depois é uma violência brutal. Violam as mulheres, roubam, matam algumas pessoas, prendem as outras, metem-nas em caminhões e deportam-nas para essa região na fronteira em condições que faziam lembrar Auschwitz: os caminhões carregados de milhares de seres humanos que são despejados naquela zona de deserto. Não há nenhuma política concertada e conseqüente para ajudar os países de origem desses imigrantes.

Fórum – No livro, o pastor Emmanuel diz que a terra é de Deus e nela há lugar para todos, e que quando a Europa precisou dos africanos buscou quantos quis – porém, agora que os africanos precisam da Europa, não recebem ajuda. O que você, como europeu, pensa disso?
Moura
– É surpreendente a forma como eles racionalizam isso, e aí o papel dos pastores é de fato fundamental em toda essa parte teórica de dar uma espécie de alimento espiritual às pessoas para que acreditem que tudo aquilo que elas estão fazendo tenha sentido, mesmo que na realidade não tenha muito. A probabilidade de sobrevivência é mínima, mas eles continuam a acreditar que tudo é uma espécie de grande saga. Eles usam muitas comparações e metáforas bíblicas, como a fuga dos hebreus do Egito e a travessia do mar Vermelho. O pastor Emmanuel explicava muito bem que os africanos vêm para a Europa para trabalhar e para ser cidadãos honestos. Se não o forem, então os europeus têm o direito de puni-los e deportá-los, mas enquanto quiserem vir para trabalhar têm esse direito, porque a terra não pertence aos homens, mas a Deus, e o lugar ao qual chegarem é terra deles também. Do ponto de vista de quem diz isso, é intocável em termos teóricos e eles têm toda a razão. Mas também é verdade, e isso é fácil de constatar, que é impraticável que milhões de imigrantes entrem na Europa. Os governos de fato têm que ter uma política de restrição. Seria utópico deixar que todos entrassem.

Fórum – Apesar do discurso de restrição, os imigrantes são necessários como mão-de-obra em alguns setores na Europa, não?
Moura
– A verdade é que há muita hipocrisia nos países europeus, porque os imigrantes que de fato chegam são integrados e trabalham. Muitas mulheres entram na prostituição e muitos homens vão trabalhar nas plantações. Nas estufas da zona espanhola de Almeria, por exemplo, há trabalho imediato e os patrões estão à espera porque precisam deles. Acabam por explorá-los porque eles não têm papéis nem documentos, estão vulneráveis e trabalham nas piores condições. Se fossem legais e estivessem integrados a algum programa, teriam que ser respeitadas algumas condições de trabalho. Portanto a Europa acaba por se aproveitar da situação e usá-los, e eles acabam por ser úteis.

Fórum – Quando você conta no livro que os africanos viajam amarrados nos barcos, é inevitável associar essa imagem às da escravidão. Será que realmente acabou o tempo dos escravos?
Moura
– É complicado pensar nesses termos porque não é nenhum governo que faz isso. São as próprias pessoas que criam espontaneamente as formas mais injustas de se organizar. Tanto quanto eu percebi, as pequenas máfias marroquinas que trazem os imigrantes amarrados nem sequer são os grandes empórios organizados por milionários: são pequenos empresários que arranjam dinheiro para ter um ou dois barcos. Eu estive na casa de um deles, o Mohamed, comendo cuscuz ao lado da sua mulher. Ele diz que precisa fazer isso para alimentar os filhos, porque não ganhava o suficiente na fábrica onde trabalhava. Quando apareceram essas ondas de imigrantes no Marrocos, ele – como tantos outros – viu a oportunidade de ganhar algum dinheiro. Os imigrantes precisam dos serviços dele e ele os presta da pior forma possível. Ele acha que seria perigoso se os africanos fossem com as mãos livres e portanto faz isso da forma mais desumana como se fosse natural. Mesmo os próprios imigrantes da Nigéria com quem eu estive também se organizam entre eles da forma mais desumana em termos de hierarquia, de castigos, de punições e na maneira como lidam com as mulheres. Não há poder instituído ali. Essa injustiça surge espontaneamente no seio dessas comunidades e é a forma que eles vêem como a mais eficaz de se organizar.

Fórum – Como isso se dá na prática?
Moura
– Há um lado muito pedagógico e espiritual dos pastores, que ensinam procedimentos éticos, aconselham por exemplo a não roubar e a ter bom comportamento para serem aceitos quando chegarem na Europa. Mas ao mesmo tempo os chefes do acampamento comportam-se de uma forma bárbara. Nas primeiras vezes que fui lá, para ter acesso perguntava ao Benjamim o que eles precisavam. Eram principalmente medicamentos e roupas. Então levamos a ele sacos e sacos de roupas, que todos os meus amigos ofereceram. Da outra vez que fomos, estava o pastor com meu blusão, os chefes com as botas e assim por diante, e o Benjamim ficou sem nada. Ele me contou que, mal eu fui embora, os chefes tiraram-lhe tudo. Inclusive venderam a roupa para ficar com o dinheiro. Ou seja, é a verdadeira lei da selva.

Fórum – Muitos dos imigrantes que você conheceu eram nigerianos e os grandes chefes, que estão no topo da pirâmide, são ligados às elites do país. Quem são esses grandes chefes?
Moura
– Ao longo de todo esse percurso, que tem milhares de quilômetros e cujas viagens podem durar anos, há muita gente envolvida. Milhares de pessoas se alimentam e vivem de todo esse tráfico. As máfias nigerianas são mais organizadas e obviamente têm ligações com o poder na Nigéria. As organizações que fazem os contratos de colocar os imigrantes na Europa impõem como contrapartida que as mulheres têm que se prostituir e pagar € 40 mil. As famílias vão a essas grandes empresas nas maiores cidades da Nigéria, levam as jovens e assinam o contrato na presença de advogados. Pelo contrato, enquanto elas pagam, as empresas comprometem-se a dar proteção à família. Portanto, está subentendido que, se não pagarem, a família sofre. As moças sabem que é assim e nenhuma delas ousa desobedecer, mesmo quando podem. Conheci um caso em que a moça teve um pé amputado e não servia mais para a prostituição. O mafioso dispensou-a, mas ela não quis. Tinha medo de ser libertada. Ficou em Tânger, num lar de freiras. Elas têm medo inclusive porque alguns desses contratos são acompanhados por rituais vodu. São portanto grandes empresas, com suas ligações na Europa, que fazem isso, e só podem fazê-lo porque há um sistema de corrupção com as autoridades na Nigéria.

Fórum – Como você lida com essa situação das pessoas pedindo ajuda?
Moura
– Por um lado é preciso sentir as coisas, é o que tentamos fazer neste gênero de trabalho que é o jornalismo literário, em que não basta chegar ao local e recolher a informação. É preciso estar lá, viver os acontecimentos com os protagonistas das coisas e sentir as situações com eles. Sem isso não se pode perceber e também não se pode contar nada. Porém, invariavelmente se criam relações afetivas com as pessoas. Esta é uma das questões éticas que se colocam para os jornalistas nessas situações: se podemos ajudar ou não, se devemos ajudar ou não, se ajudar individualmente uma pessoa ou outra é bom para elas ou não, ou se estamos a prejudicá-las. O fato de fazer um trabalho jornalístico pode prejudicá-las gravemente, pois em muitas dessas situações as pessoas que ficam lá sofrem conseqüências terríveis depois. Nós vamos embora, mas quem fica...

Fórum – Acaba sofrendo represálias?
Moura
– Isso acontece em muitos cenários de guerra: as pessoas falam e depois têm problemas porque falaram. Sempre que sai na imprensa européia algum trabalho sobre esses imigrantes, no dia seguinte a polícia ataca-os com helicópteros e cães, deporta, mata, viola as mulheres etc. Na própria floresta a princípio houve uma reunião dos líderes, temporais e espirituais, para decidir se nos deixavam entrar ou não. Acabaram por deixar, mas tanto eles quanto eu tínhamos dúvidas se o que eu estava a fazer poderia ser prejudicial ou mesmo fatal para algumas daquelas pessoas. Às vezes é uma questão quase de fé acreditar que o jornalismo é uma boa causa. F