Aborto entre moeda eleitoral e ilegalidade

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Por trás de cada decisão de abortar há múltiplas razões, explicaram à IPS várias das mulheres que interromperam sua gravidez, com Paz, que acabava de se separar do marido quando soube que estava grávida. “Ele era o pior dos homens, não queria ter um filho seu”,contou esta mulher de 32 anos, vítima de violência machista e que pediu para usar um nome fictício. Isso a motivou a pagar o equivalente a US$ 985 por uma “aspiração” com sete semanas de gravidez.

“Nunca senti culpa. Acredito que sempre é uma decisão difícil, mesmo estando muito segura”, afirmou ao contar sua experiência de três anos passados. Agora vive feliz uma gravidez de oito meses com um novo companheiro e ressalta que “minha opção sempre foi a maternidade. Conheço dezenas de outros casos onde foi dramático por causa da condição econômica, por exemplo, que te leva a testar métodos menos seguros. Eu contava com apoio, dinheiro, com tudo necessário para fazer o aborto. Outras não têm essa sorte”, disse Paz. Ninguém de sua família sabe do aborto. “Meu companheiro atual tampouco e acho que não tem motivo para saber. Meu ex-marido nunca soube, e para mim sua opinião não importa em nada”, acrescentou.

O Chile permitiu o aborto terapêutico entre 1931 e 1989, quando o governo do ditador Augusto Pinochet (19173-1990) o proibiu totalmente. A interrupção voluntária da gravidez se mantém 19 anos depois da restauração da democracia como um crime punido com três a cinco anos de prisão para a mulher e um pouco menos para quem a praticar. Junto com o Chile somente alguns países como Andorra, El Salvador, Filipinas, Malta e Nicarágua penalizam o aborto sem nenhum tipo de exceção.

A volta do aborto terapêutico foi uma demanda constante de organizações de mulheres desde a redemocratização, mas até agora excluída das agendas dos governos de centro-esquerda Concertação de Partidos pela Democracia, que governo o Chile desde 1990. A principal causa do que as feministas locais chamam de não pagamento de uma dívida da democracia com as chilenas é a férrea oposição do Partido Democrata-Cristão (DC). Nem mesmo a atual presidente socialista, Michelle Bachelet, conseguiu flexibilizar a postura de seu sócio no governo.

Por isso as organizações femininas veem com desconfiança a proposta feita este mês pelo ex-presidente e pré-candidato presidencial pela DC, Eduardo Frei (1994-2000) sobre a necessidade de “abrir o debate” sobre o aborto. Um grupo de organizações correu a exigir que não fizesse uso eleitoral da questão na campanha para as eleições presidenciais de dezembro. Influenciada pela Igreja Católica, que condena qualquer tipo de aborto, a oposição direitista já fechou a porta à discussão do assunto. Nos últimos 19 anos nenhum dos projetos de lei a favor da despenalização parcial do aborto progrediu no parlamento. A última iniciativa foi bloqueada em 2007.

Por ser uma prática ilegal, há apenas estimativas sobre sua dimensão. O Ministério da Saúde enviou à IPS um estudo da pesquisadora Mônica Weisner, que estabelece em 120 mil anuais o número de abortos. Outros informes falam em 160 mil, o que se traduz em uma das taxas de aborto ilegal mais altas da América Latina. Estes cálculos se baseiam na quantidade de mulheres que dão entrada nos hospitais em razão de abortos feitos antes das 20 semanas de gestação, registrados no sistema de saúde. Em 2006 foram 23.052 casos.

O especialista Enrique Donoso detalhou que “em países onde o aborto é ilegal estima-se que para cada entrada hospitalar por essa razão há cinco que não são hospitalizadas”, em um artigo publicado no ano passado na revista da Sociedade Chilena de Obstetrícia e Ginecologia. Embora um terço da quantidade de gravidez terminem em aborto no Chile, a morte por este motivo é baixo, destacou Donoso. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatísticas, a taxa de mortalidade materna por aborto em 2000 foi de duas para cada 10 mil nascidos vivos. Em 2005 caiu para 1,4.

“É difícil estruturar o perfil das mulheres que abortam, porque são de todos os níveis sociais, de todos os níveis de instrução, com idades entre 12 e 50 anos”, disse à IPS Gloria Maira, da não-governamental Rede Chilena Contra a Violência Domestica e Sexual e que em 2008 publicou um estudo sobre aborto e violência sexual. “O que primava até a década de 80 eram mulheres com vários filhos nascidos vivos, de precária condição sócio-econômica, geralmente casadas. Nos anos 80, Mônica Weisner encontra mulheres que não necessariamente vivem com o companheiro, onde o aborto também ocorre nos casos de mulheres que ainda não eram mães”, explicou.

Para Maira, a única diferença é que as mulheres ricas geralmente têm maior acesso à educação sexual e a métodos anticoncepcionais, podem optar por abortos clandestinos no sistema privado, como reconhecem os próprios médicos, ou realizá-lo no estrangeiro.

Múltiplas razões em cada decisão

Nelly Lizama, de 63 anos, católica, nunca se questionou por interromper sua segunda gravidez. Tinha 16 anos e um filho de poucos meses quando foi a um ginecologista ao família. Nunca soube qual procedimento foi usado, mas ao final sentiu-se aliviada. Nessa época os abortos eram chamados de “remédios”, disse Lizama. “Eram muito comuns, pelo escasso conhecimento que as mulheres tinham dos métodos anticoncepcionais” disse à IPS esta mãe de quatro rapazes.

Diferente é a realidade de Cristina de la Sotta, diretora-executiva da privada e independente Fundação Chile Unido, que apóia mulheres com gravidez não desejada e com historias de aborto voluntário. A esta entidade chegam mulheres arrependidas, que nunca superaram o impacto de seus abortos provocados, contou Cristina à IPS. “Elas nos dizem que a interrupção foi uma solução, mas uma solução ruim”, acrescentou.

Com o apoio da Fundação muitas grávidas descartam a idéia de não ter seus filhos, porque descobrem que a maternidade é “um sentimento profundo”, afirmou Cristina. Apesar do passado, ela acredita que aborto “não deveria ser um crime para a mulher,porque mais do que autora, encobridora ou cúmplice ela é uma vítima da circunstancia” e precisa de apoio. Para ninguém é fácil a decisão de abortar, ressaltou.

Abusos da clandestinidade

“Tinha 14 anos, estava no primeiro ano do ensino médio e tinha um noivo que era meu primeiro parceiro sexual”, contou à IPS a chilena Tâmara Vidaurrázaga sobre o contexto de sua primeira gravidez há quase 20 anos. Quando seus país souberam, concluíram que deveria abortar. Nesse momento “eu não podia pensar bem, tinha muito medo”, recordou. Mas disse que nunca se sentiu pressionada por eles. Ao contrário, agradece muito o apoio que recebeu. “Não tive dúvidas. Minha família não era muito religiosa e nunca tivemos a culpa católica nem a crença de que devo sacrificar minha vida porque um deus assim o quer”, explicou.

O procedimento, feito por um “ginecologista conhecido” a oito semanas de gravidez, custou 500 mil pesos da época (US$ 871). “A clandestinidade é o que torna tão desagradável a interrupção, não a decisão”, pensa Vidaurrázaga, que hoje é mãe de uma menina “desejada e esperada, que adore e é o centro da minha vida”, contou.

O tímido debate eleitoral que acontece no Chile sobre o aborto terapêutico é protagonizado por políticos, médicos e religiosos, a maioria homens, e diz respeito apenas aos casos de mulheres com risco de vida, por exemplo, as que têm gravidez fora do útero. Diversas pesquisas mostram que a maioria dos chilenos e chilenas aprova esse tipo de aborto nesse e em dois outros casos: quando a gravidez é fruto de uma violência e quando o feto apresenta má-formação severa. Distantes, com se não existissem, restam as outras múltiplas razões que apresentam diariamente as mulheres para justificar um aborto. “O debate é medíocre, míope e mesquinho”, disse Maira.

A quem serve a dor?

A parteira Pamela Eguiguren, formada em saúde pública e pesquisadora da Escola de Saúde Pública da Universidade do Chile, terminou recentemente uma pesquisa sobre gravidez incompatível com a vida extra-uterina, com a anencefalia (feto sem parte do cérebro), que fez em conjunto com duas organizações feministas. “Deparamos experiências tremendamente dolorosas, com um sistema de saúde que reage de forma muito torpe, porque não há protocolos para estes casos. A atenção depende da sensibilidade do médico”, explicou Eguiguren à IPS.

O calvário para essas grávidas começa no momento do diagnóstico. Em lugar de comprar enxoval para os filhos, devem adquirir um lugar no cemitério porque estão obrigadas a dar à luz, contou Pamela. Muitas sofrem depressão e outros transtornos psíquicos. Algumas decidem não mais engravidar. No fim do caminho, tendem a uma “resignação” no processo e resgatar aspectos positivos para que valha a pena tanto sofrimento, acrescentou. Por exemplo, valorizam abraçar seus bebes antes que morram poucas horas depois de nascidos.

“Muitas mulheres têm em sua história um aborto e nem por isso ficam marcadas”, disse Eguiguren. “Mas, viver uma gravidez incompatível com a vida é algo que se lembra ara sempre”, acrescentou. É legitimo algumas escolherem não abortar nesses casos, “mas, me parece uma tortura fazer passar por isso quem não quer. Você se pergunta a quem serve a dor que vivem. Quem está ali para dar-lhes apoio? Que esta ali para ajudá-las economicamente?”, perguntou.

Maira está convencida de que se o país não trabalhar “para ser uma sociedade mais informada”, livre e com mais educação sexual e contracepção, os abortos não diminuirão. “Temos de abrir o debate à sociedade civil e que as mulheres não tenham culpa nem estigma de falar. Atualmente, não se legitima a voz das mulheres. Digamos o que dissermos, não existimos”, concluiu.

Senti que era um acidente

Isabel (nome fictício) abortou há uma década, aos 22 anos. “Estava no quarto ano da universidade e tinha um companheiro há dois anos. Quando soube da gravidez nos separamos porque ele não me deu apoio”, contou à IPS. “Nunca tive o desejo de ter filhos e não imaginava minha vida com a responsabilidade de criar um”, contou. Isabel pagou US$ 800 pelo aborto. “Tinha de estudar pelo menos mais um ano e não queria que minha mãe ou outra pessoa cuidasse da criança. Além disso, usava anticoncepcional, então senti que não era minha responsabilidade, que foi apenas um acidente”, contou.

Com cerca de oito meses de gestação, foi a uma casa afastada da cidade, “preparada para a operação. Me pegaram com um carro onde havia as duas mulheres que faziam o aborto, a especialista e sua ajudante, mas uma terceira pessoa que também ia abortar, com a qual conversei no caminho. Me disse que ia pela segunda vez porque já tinha três filhos”, contou.

Carga de dor

A colombiana Sandra Castañeda, da não-governamental Rede de Saúde das Mulheres da América Latina e do Caribe, formada por mais de 600 organizações e com sede no Chile, pensa que “o aborto tem uma carga de dor física e moral importante’. Mas as mulheres “o praticam com risco de serem presas ou morrer. Então, a questão é como a sociedade as acompanha neste processo”, disse. Esta foi uma das principais conclusões extraídas dos painéis sobre aborto que a Rede fez em cinco regiões do país, para elaborar uma agenda pública para a despenalização do aborto terapêutico.

“Outra dado é que em 99,9% dos casos o piro do processo foi o tratamento recebido, a maneira como foram humilhadas, a falta de higiene em que o aborto foi praticado”, disse Castañeda. Os depoimentos obtidos pela Rede também falam de mulheres forçadas por seus companheiros ao aborto contra a vontade, outras violadas ou forçadas a ter esses filhos e mulheres que não abortariam, mas que respeitam a escolha de quem o faz. IPS/Envolverde