Ainda precisamos debater sobre Sexo e as Nêgas

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Nos últimos dias, um acontecimento recente tem causado muito mal estar: vários artistas, atores e personalidades negras se posicionaram publicamente em defesa do seriado Sexo e as Nêgas, entre essas pessoas até mesmo o deputado Jean Wyllys. É verdade que debates como esse, ainda que em discordância com a militância, são importantes e fazem parte da democracia e do ativismo, por mais que causem desconforto aos dois lados. Mas faz-se necessária uma análise mais profunda desse evento. Há, no entanto, algumas falhas no embasamento favorável a Sexo e as Nêgas demonstrado por essas pessoas. Em sua fala feita em vídeo, o próprio Jean, que é considerado um dos maiores representantes dos movimentos sociais no Brasil, parece ter dito que o movimento negro criticou a série somente por causa de seu título, sem que tivéssemos assistido aos episódios. Mas a história não é bem assim; juntamente ao título, o anúncio da série trazia também a sua sinopse e proposta, que foram recebidos com desconforto por muitas mulheres negras, fossem elas ativistas ou não. O título, por si, já soa um tanto estereotipado, um clichê da representação sexual das mulheres negras exibida pela Rede Globo. E após os primeiros episódios da série, as críticas feitas ao programa não só foram mantidas, como também intensificadas. Recorrendo ao desprendimento de um mito muito popular, de que as críticas não passam de uma tentativa de “censura” das feministas, cito um texto publicado por um companheiro da Fórum, o intelectual e ativista Dennis de Oliveira. Em seu texto publicado na coluna "Quilombo", Dennis analisa um episódio de Sexo e as Nêgas que aborda o preconceito racial como tema. Fica evidente que os problemas da série vão muito além de seu título - o racismo é abordado de maneira irresponsável e machista, colocando negro contra negra e, para finalizar, fazendo com que o gravíssimo problema da discriminação racial seja resolvido na cama, onde a mulher negra discriminada perdoa o homem negro em uma cena de sexo. Como ativistas, não temos nada contra o sexo; pelo contrário, lutamos pela emancipação sexual das mulheres negras, brancas, indígenas e de qualquer outra cor, etnia e cultura. Só que essa emancipação implica o rompimento de paradigmas e o questionamento de papéis cristalizados, pois não há escolha quando não existem alternativas. Há muitos séculos a mulher negra brasileira escuta que o seu papel sexual é o de mulata, Globeleza e figura que não consegue um relacionamento nos padrões da monogamia. Infelizmente, isso não acontece porque nossa sociedade cultiva valores libertários, mas sim porque a mulher negra é representada como da “cor do pecado", hipersexualizada e mais provocante do que as mulheres brancas. O próprio termo "Da Cor do Pecado" é o título de uma das novelas já exibidas na Globo: uma das pouquíssimas vezes em que uma mulher negra foi a protagonista de algo da emissora. Também me incomoda a percepção de que uma pessoa seja infalível, a quem devamos agradecer cegamente por nos conceder algum espaço. Essa não é uma mentalidade saudável, pois evidencia uma relação de dependência. O perigo disso é contentar-se com migalhas por medo de perder até mesmo aquele pedacinho piedoso de pão. Relações de medo e dívida não são aceitáveis, especialmente se tratando de movimentos sociais e ativismo, onde não há lugar para resignação. A verdade é que o debate precisa, sim, acontecer. Mas isso não significa que cada lado deve apresentar suas opiniões para, em seguida, se estabelecer um silêncio onde todos concordam em discordar. Debater algo significa proporcionar meios para que o tema seja analisado e repensado, sem que as partes sejam estigmatizadas. Faz parte da práxis dos movimentos sociais a constante luta para que a sociedade avance e isso parece ter sido esquecido por quem acusa os movimentos de buscarem censurar a série Sexo e as Nêgas. Censura é algo bem diferente do incômodo verbalizado, ainda mais vindo das pessoas que são diretamente violentadas pelos padrões racistas e machistas da televisão. Portanto, considero primordial que roteiros, títulos, cenas e diálogos sejam questionados e debatidos, para que o racismo e o machismo ali presentes possam ser examinados e compreendidos. Queremos que o preconceito seja desnaturalizado, que as pessoas consigam enxergar o que é discriminatório e compreendam que é possível produzir conteúdo de qualidade sem recorrer a esses antiquíssimos estereótipos. Todo o país ganharia com mais protagonistas negras: mulheres negras representadas como intelectuais, médicas, advogadas, empresárias, com um repertório sexual para além dos clichês de "mulata" fogosa, dada a essas mulheres negras a oportunidade de serem sexualmente bem resolvidas sem que sejam reduzidas ao fator sexual. Afinal, as mulheres são muito mais do que suas vidas sexuais - o sexo jamais deve definir o papel de uma mulher no mundo. Temos, de fato, muitos questionamentos. Mas as pessoas precisam estar dispostas a nos ouvir, sem que se fechem antes mesmo de escutarem os argumentos e dados históricos que temos para mostrar. Não se trata de invenção; a hostilidade contra as mulheres negras tem raízes seculares no Brasil. Qualquer um pode facilmente pesquisar e ler à respeito – somente nesta coluna, é possível encontrar dezenas de textos breves e acessíveis sobre estereótipos sexuais e racistas. O fato é que não se acaba com o racismo retrocedendo quando o sapato começar a apertar. Se o sapato aperta os dedos até mesmo dos mais progressistas, talvez esteja na hora de tirar o calçado. Deixar de reproduzir racismo é incômodo, mas é com incômodos importantes que se desperta a conscientização. Foto de capa: Divulgação