As alegres andanças dos mamulengos

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Sexta-feira gelada em São Paulo. A sombra dos prédios em torno da praça da Sé e o vento fazem a sensação térmica ficar bem abaixo dos 15 graus marcados nos relógios públicos, mesmo sendo quase uma hora da tarde. As mais de 300 pessoas que, ao lado da entrada do prédio do Poupatempo (serviço de atendimento público do Estado) estão sentadas no chão ou em pé, paradas, já não sentem o ambiente como há uma hora.
Seus corações estão leves, o sorriso é fácil e o corpo solto não lembra mais o estresse do vai e vem urbano comprometido com as horas marcadas em reuniões e consultórios. Todos estão atentos, olham um palco improvisado com um cenário simples e muito bem elaborado com tecidos de chita e bambu imitando uma teia de aranha.
Ali, Schirley França e os sete irmãos Gomide (Maria, Francisco, João, Pedro, Mateus, Luzia e Isabel) dividem cenas, esquetes e músicas numa rica releitura da cultura popular brasileira. Formam o Carroça de Mamulengos, grupo que está na estrada há 32 anos pesquisando e levando as brincadeiras de mamulengo (manipulação de bonecos de madeira muito comum no Nordeste e que também recebe o nome de babau, joão redondo, mané gostoso) e ritmos do interior do Brasil. Passam pelo palco a burrinha Fumacinha, o cabrito Pinote, o tamanduá Meleta, o carneirinho Belém, os jaraguás Rosa e Florinda e o dragão Xodó, que solta fogo pelas ventas. De repente um silêncio. Surge uma grande boneca, com cabeça de cabaça, cabelos e boca feitas de corda, olhos de sementes. É Mariama. No colo, seu filho embalado ao ritmo de uma cantiga popular. Manipulando a bonecona de mais de 2 metros, Schirley, 44 anos, mãe de toda aquela trupe. Mariama senta, desabotoa com suas mãos de boneca os primeiros botões do vestido, retira o peito e dá de mamar ao seu filho. O povo se arrepia. A emoção da cena enche os olhos de quem assiste – o segurança Mauro, contratado pelo Sesc Carmo para acompanhar a apresentação embarga os olhos. Depois, confessa à matriarca a vontade de acompanhar o espetáculo com a família, despido da obrigação do ofício.
Na sequência a manipulação impecável de um galo, galinha e pintinhos feitos de cabaça, especialidade do grupo, esquete de outra bonecona, Miota – referência à boneca de mesmo nome, manifestação popular da região fluminense de Paraty –, feita magistralmente pelas irmãs gêmeas Luzia e Isabel Gomide, de 10 anos que montam e desmontam a boneca no palco. Entram os palhaços encenados pelos irmãos gêmeos Pedro e Mateus, de 14 anos e muita brincadeira de perna de pau, primeiro com Francisco, 20 anos, e João, 16 anos, e depois com todos da família.
O espetáculo, criado há 22 anos e feito para a rua segura o público do começo ao fim. Schirley conta que no início o grupo pesquisou a cameloturgia, “a capacidade de aglutinação dos ambulantes, principalmente do Nordeste, que vendem raízes, chás, remédios, fazem brincadeiras e prendem o público por um longo tempo. É a linguagem direta que não tem texto fechado”.
As músicas são um destaque a parte. Tem uma só com nomes de frutas brasileiras: criar um pomar com um pedacinho do céu/ Vadeia passarinho, escorre doce, leite mel; e uma contra o McDonalds (veja box). Todas compostas por Carlos Gomide, pai, idealizador do Carroça de Mamulengos e responsável pelo grupo fazer um mergulho na cultura popular, extraindo cenas, bonecos e um jeito saltimbanco muito brasileiro. Radicado em Juazeiro do Norte, Ceará, há oito anos, endereço fixo do grupo, Carlos atualmente trabalha no fortalecimento da cultura da região do Cariri na associação União dos Artistas da Terra da Mãe de Deus, um trabalho que une os mestres populares de reisado, bacamarte, maneiro pau entre outras manifestações regionais, às novas gerações.
Atualmente a direção do espetáculo, criado há 22 anos, está sob responsabilidade de Maria, de 24 anos, que também é a cantora e toca violão. Francisco e João na percursão e Beto Lemos na viola e rabeca, o único que não faz parte da família, completam o grupo.
Maria começou a vida artística muito cedo. A primeira imagem que lembra está ela e o pai atuando juntos. “Inspirado no reisado, meu pai fez a burrinha para mim e foi passando por todos os irmãos. Hoje está com Isabel. Brincar com a Fumacinha foi o que garantiu a mim e meus irmãos assumir a responsabilidade no grupo sem ver naquilo uma obrigação”, explica Maria. “O que facilitava era que todas as cenas estavam dentro da nossa compreensão”.

Pé na estrada

Carlos Gomide, 55 anos, criou o Carroça de Mamulengos no final dos anos 1970. Natural de Rio Verde, Goiás, começou a trabalhar com teatro de bonecos feitos de sucata com o diretor de teatro Humberto Pedrancini num grupo denominado somente Carroça. Em 1978 conheceu Antonio do Babau mestre bonequeiro, com quem conviveu por dois anos em Mari, Paraíba. Saiu de lá dominando a técnica do mamulengo e passou a rodar o Brasil já com o grupo formado. Em 1982, de passagem por Brasília, conheceu Schirley: “apresentávamos em praças o Palhaço Alegria, um bonecão onde manipulávamos os mamulengos. Mergulhamos na realidade econômica e social do Brasil e então resolvemos trabalhar a cultura como um todo. Brincávamos com os bonecos e depois ensinávamos a lidar com os alimentos da nossa terra, a fazer pão, pé-de-moleque, usar milho na produção do curau, pamonha”.
A experiência de anos na estrada Carlos e Schirley passaram para os filhos, que vivenciaram a cultura popular na prática. “O que mais desejava era apresentar o Brasil para eles, então nunca paramos” explica Carlos. De praça em praça, rodando o chapéu e criando personagens conforme os filhos iam crescendo, a Carroça de Mamulengo foi se transformando. “Hoje temos estrutura, cenário, roupas, mas muitas vezes nós nos apresentávamos descalços. Mesmo assim meu pai tinha a preocupação com a qualidade do trabalho. Por onde passamos fomos bem acolhidos e recepcionados. Eu cresci vendo o trabalho dos meus pais valorizado”, lembra Maria. Para ela, seus pais tiveram sensibilidade na escolha de vida para eles. “Foi um caminho estreito e culto, de respeito à cultura do povo brasileiro, sem se dobrar. Quantas vezes opções para caminhos mais fáceis apareceram, mas fomos percebendo o que nos diferenciava disso. Esses conhecimentos podem formar um cidadão. Perna-de-pau, pão, bolo, celebrar a fartura, desejar a fartura, esses princípios não são passados pelas escolas.”
Por onde circula a Carroça de Mamulengos leva a alegria e a fantasia e cria uma legião de fãs. Camila de Carvalho Mendes é uma delas. Professora de inglês no município de São Carlos, interior de São Paulo, viu a família pela primeira vez neste ano e se impressionou. “Achei o espetáculo simplesmente maravilhoso, com uma riqueza de conteúdo impressionante. Mostra a cultura brasileira de forma ampla, através da música, da dança, da atuação, do artesanato, da arte.”
Já Ana Flor, arte educadora de São Paulo conhece o trabalho desde criança. Conheceu o grupo, já adulta, em 2004 através de amigos e sempre que passam por São Paulo ela os acompanha. “É um ambiente de valorização do ser humano, da criança, dos sentimentos”. Que o digam os que enfrentaram o início de inverno paulistano e encheram uma pequena praça de sorriso e paz.


Box - O Carroça de Mamulengos

Carlos Gomide, ator, músico, compositor, mamulengueiro, pai e criador do grupo (não estava com o grupo na turnê por São Paulo)
Schirley França, atriz, figurinista do grupo e mãe.
Maria Gomide, cantora, multi-instrumentista e atriz. Diretora do espetáculo.
Antonio Gomide França, músico (não estava com o grupo turnê por São Paulo)
Francisco Gomide, músico e palhaço, responsável pela montagem do cenário e manipulação de bonecos.
João Gomide, músico e palhaço, responsável pela montagem do cenário e manipulação de bonecos.
Mateus, palhaço e brincante, responsável pela organização do material de cena.
Pedro, palhaço e brincante, responsável pela organização do material de cena.
Isabel, palhaça e brincante.
Lusia, palhaça e brincante.
Todos são responsáveis pela montagem e desmontagem dos cenários


Box - Um disco raro
O Carroça de Mamulengos editou, em 1996, de forma independente, o CD Alumiação com músicas do espetáculo Histórias de Teatro e Circo. Foram 16 mil cópias reproduzidas em várias tiragens nos últimos anos. Atualmente não há previsão de nova edição. A música Mc Donalds, uma crítica aos fast foods importados retrata, com muito humor, o perfil de trabalho do grupo. Imperdível.

McDonalds
composição: Carlos Gomide

McDonald tá com nada
McDonald vai fechar
McDonald tá com nada
McDonald vai fechar
McDonald não tem pamonha
McDonald não tem curau
McDonald não tem cuzcuz
Credo em cruz
Credo em cruz

Seja bem natural
Desfrutar da poesia
Deleitar nossos valores
Nossa terra tem primores
Dia e noite, noite e dia

E tem tem tem
E se plantando tudo dá
McDonald indo embora
Leva junto a coca cola
E vivam as nossas cajuínas