Assassinatos pela polícia do Rio são decisão política, avalia pesquisador

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A duas semanas do início dos Jogos Pan-Americanos, a polícia do Rio de Janeiro e a Força Nacional de Segurança ocuparam o Complexo do Alemão para uma “megaoperação”, como anunciavam os jornais da época. Naquele dia 27 de junho de 2007, os policiais deixaram 19 mortos e dezenas de feridos. A ação foi saudada por autoridades e pela mídia. Mas, no mesmo dia, a Anistia Internacional classificou como “violenta e caótica” a intervenção. A maioria das vítimas não tinha antecedentes criminais e morreu com tiros na cabeça, no tórax, no abdômen e nas costas, sinais de execução.

A chacina promovida pelos policiais não foi um fato isolado na visão do professor Rafael Fortes, doutorando em comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É mais um episódio da política de segurança pública em vigor no Estado do Rio de Janeiro. Diante desta conclusão, ele organizou o livro Segurança pública, direitos humanos e violência, lançado no final de setembro pela editora Multifoco.

A obra conta com entrevistas inéditas de Cecília Coimbra, Chico Alencar, Ignacio Cano, João Tancredo, Julita Lemgruber, Marcelo Freixo, Marcelo Salles, Paulo Ramos e Vera Malaguti Batista; e artigos de José Arbex Jr., Leonardo Sakamoto, Maria Helena Moreira Alves, Mário Maestri e Rafael Fortes, com prefácio de João Luiz Duboc Pinaud. São vozes críticas em relação à política de extermínio praticada pelo governo do Estado do Rio de Janeiro.

Na sexta-feira, 7, o professor Rafael Fortes atendeu a reportagem da Fórum e concedeu a seguinte entrevista sobre o livro:

Fórum – O livro faz duras críticas à polícia do Rio de Janeiro e à política da Secretaria Estadual de Segurança. As críticas servem apenas para a situação no Rio?
Rafael Fortes –
Para o Rio e para outros estados. Existe uma série de questões recorrente no Brasil inteiro que os especialistas abordam no livro. A população não tem acesso aos dados relativos à segurança pública, falta um controle externo para a polícia, a própria perícia não é independente, falta treinamento aos policiais. São problemas comuns em qualquer estado. E a repressão aos mais pobres é outro fator que ocorre em todo país. O que tem de especifico no Rio de Janeiro é o alto grau de envolvimento da polícia e do Estado com o crime. A Assembléia Legislativa do Rio está com uma CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] aberta para investigar as milícias. A CPI já provocou a prisão de vereadores, deputados. Outra questão que é mais forte no Rio de Janeiro é o número de mortes causadas pela polícia. Este ano, o estado deve superar São Paulo em números absolutos. É um absurdo, pelo tamanho da população de casa estado.

Fórum – Mas o número de mortos e feridos pela polícia é um problema no Brasil inteiro, não?
Fortes –
Sim, mas a política de extermínio é um traço muito marcante no governo do Rio de Janeiro. A questão central do livro é o problema dos baixos salários da polícia. E os salários no Rio são muito piores que em outros estados, em que a polícia também mata muito. Mas o Rio usa esta prática com freqüência e ênfase maiores. Segundo dados oficiais – que já são bem abaixo da realidade – a polícia do Rio matou no ano passado 1.330 pessoas.

Fórum – Quer dizer que é um problema mais da política do que da polícia?
Fortes –
Com certeza é mais político. O ponto de partida do livro é a chacina do Complexo do Alemão, uma operação que juntou forças do governo estadual e federal. E recebeu aplausos do governo do estado e até do presidente da República. Na ocasião, a ação foi apresentada pelos meios de comunicação como uma “maravilha”. As revistas Veja e Época deram capas saudando a ação. O problema é político. Não é uma opção dos soldados de atuar desta maneira, mas é uma política de estado mesmo. As autoridades dão declarações apoiando este tipo de ação e não fazem esforços para investir em outro tipo de polícia, mais investigativa, com mais condições de trabalho e melhores salário.
Os assassinatos são um decisão política, uma justificativa para combater o crime. Mas, na verdade, o que temos na prática é uma polícia que comete o crime. O relatório da ONU sobre execução sumária, divulgado em setembro passado, mostra que a maioria das polícias do Brasil não resolve os crimes. Em média, a polícia militar resolve 4% dos casos. No Rio, o percentual sobre para 10%. Com isso, não podemos dizer que uma polícia que deixa 90% dos casos sem solução esteja combatendo o crime.

Fórum – O prefácio do livro também faz uma dura crítica à mídia convencional. Qual é a parcela de culpa da imprensa brasileira na violência policial?
Fortes –
A parcela é muito grande. Com raras exceções de articulistas, a mídia corporativa tem legitimado a violência da polícia e o extermínio. No caso do Complexo do Alemão, as mortes foram apresentadas como uma “maravilha”, apesar de todas as violações aos direitos básicos. As mortes são apresentadas como se fossem em confronto. Tanto no Alemão como em outros casos, boa parte dos mortos levou tiros pelas costas, na nuca. É comum tiros de cima para baixo, o que sugere que a vítima estava ajoelhada [na hora da execução]. Grande parte das mortes é execução sumária, com a pessoa já dominada.
Mas os meios de comunicação apresentam os casos como confrontos policiais, como traficantes. Assim, contribui para legitimar e justificar o extermínio. Quando a mídia usa a palavra “traficante”, parte do pré-suposto de essa pessoa “pode” ser assassinada. Praticamente concede aos policiais o direito de matar.
Por isso, o papel dos meios de comunicação é decisivo, forjando a imagem do traficante como grande inimigo público. Por que o empresário ou o político corrupto não têm o mesmo tratamento na imprensa? O que é legitimando é o extermínio de jovens, que têm a pele escura e moram em favelas. Todos são traficantes, segundo a imprensa. Mesmo que tivéssemos pena de morte, ela só poderia ser decretada por um juiz, depois de assegurado o direito a defesa.

Fórum – E a população, como encara esta política de extermínio?
Fortes –
Muitas pessoas têm a idéia de que certos tipos de violência usada pela polícia se justificam. É o senso comum, inclusive nas parcelas mais pobres da sociedade. A classe média e alta adora este tipo de coisa, sem dúvida. No imaginário do Rio de Janeiro, o grande sonho seria colocar canhões para bombardear as favelas. No episódio do Complexo do Alemão, a ação foi feita duas semanas antes dos Jogos Pan-Americanos. O argumento das autoridades era de aquele extermínio iria pacificar a cidade. Muita gente aplaudiu.
O secretario de Segurança, José Mariano Beltrame, foi a um show logo depois do massacre e foi aplaudido pela platéia, como se finalmente a polícia estivesse combatendo o crime. O fato é que temos uma sociedade apavorada com a violência e sem acesso a informações e ao ponto de vista dos militantes [dos direitos humanos], pesquisadores e de quem vive na favela.
Aliás, nos dias que se seguiram à operação no Complexo do Alemão, o jornal O Globo publicou uma pesquisa do Ibope feita por telefone em que mais de 90% dos entrevistados apoiaram a ação. Aí, um grupo de pessoas do movimento social fez esta mesma pesquisa no Alemão e dentro do Complexo 90% rejeitavam a ação da polícia
Mas estas vozes não estão na grande mídia, os meios de comunicação criam a opinião pública com pessoas selecionadas e alinhadas com a maneira de pensar dos veículos.

Fórum – Como o livro está sendo recebido? O senhor já recebeu alguma retaliação das autoridades?
Fortes –
Não, porque o livro ainda está começando a circular. Não espero a repercussão que teve o Rota 66, do Caco Barcelos, não tenho o alcance que ele tem. Reuni alguns entrevistados e fiz o que está ao meu alcance. Muitas pessoas que souberam do lançamento do livro entraram em contato para parabenizar. Agora é aguardar a opinião das pessoas.

Clique aqui para ler o prefácio do livro.

Ficha técnica
Livro: Segurança pública, direitos humanos e violência
Organizador: Rafael Fortes
Editora: Multifoco
Número de páginas: 219