Até Marx era fichado no Dops

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Dops, hoje algo distante, coisa do passado, era a sigla do temido Departamento de Ordem Política e Social, que existia em vários estados brasileiros. Em São Paulo, foi fundado em 1924 e extinto no início de 1983. Nesse período, teve vários nomes, foi delegacia, superintendência e finalmente a sigla foi mudada para Deops – Departamento Estadual de Ordem Política e Social, que perdurou até o seu final e é o nome oficial que aparece nos seus arquivos. Mas a “marca” Dops é que ficou na história. Uma história de repressão, espionagem interna, medo, prisão, tortura e mortes. Basta lembrar que Sérgio Paranhos Fleury, que teve a fama de ser o mais sanguinário e cruel entre os policiais de São Paulo durante a ditadura, era delegado do Dops.

Com arapongas que se infiltravam nos movimentos sociais e políticos, incluindo sindicatos, órgãos de representação estudantil e movimentos religiosos, durante boa parte do tempo o órgão monitorava e fichava os líderes e militantes desses movimentos, e prendia muitos deles. Não é à-toa que o velho prédio do Dops, no largo General Osório, centro de São Paulo, era um local temido por presos políticos. Lá se praticavam torturas bárbaras. Muitos militantes morreram ali, onde hoje funciona um centro de memória, o Memorial da Resistência, em que nas quatros celas recuperadas os visitantes podem ter uma idéia do horror que era a vida de preso ali, e ao mesmo tempo conhecer um pouco das histórias de resistência à ditadura e solidariedade entre os encarcerados.

Ser fichado pelo Dops, em certos momentos, representava grandes problemas. No mínimo, dificuldade para arrumar emprego, pois numa fase da ditadura iniciada em 1964 muitas instituições e empresas exigiam do candidato a seus empregos uma coisa chamada “Atestado de Antecedentes Políticos e Sociais”, mais conhecido como “Atestado Ideológico”, fornecido pelo Dops aos que não tinham ficha em seus arquivos. Para fichados suspeitos de envolvimento com organizações de esquerda, era pior. Podiam ser – e eram – presos sob qualquer pretexto e acusados de qualquer coisa.

Os fichados do Dops É fácil supor que os marxistas estavam entre os alvos preferenciais do Dops, pois nas ditaduras de Getúlio e na de 1964 eles eram inimigos do regime. Era mesmo de se esperar que marxistas fossem fichados. Mas o próprio Karl Marx, que nunca veio ao Brasil e viveu bem antes do surgimento do Dops, também tem ficha em seus arquivos. E são várias fichas.

Mas este não é o caso mais surpreendente de fichado no Dops. Sócrates, o filósofo grego também tinha. E mais: o papa João Paulo II, em sua primeira visita ao Brasil (afinal, era polonês, e a Polônia era comunista), ganhou uma ficha nos seus arquivos, assim como um cão pastor que participou de uma novela da Globo. Até carta publicada na revista Africásia com o título “Embranquecer Pelé”, em 1971, foi registrada no Dops como parte de uma campanha contra o Brasil no exterior. É que a carta (que o Dops atribui à própria direção da revista, fingindo ser carta do leitor) comenta uma entrevista dada por Pelé numa edição anterior e manda um recado a ele: “É verdade que você bate bem na bola, e que tem a estima do mundo inteiro (...). Ideologicamente falando, você não merece ser chamado de homem. Você nada mais é do que um robô, um autômato que tomou aparência humana (...) Que tipo de ser é você, para ousar dizer que os problemas dos negros são problemas que não lhe dizem respeito?”. E segue por aí.

Em 1982, a direita ficou temerosa com o que aconteceria com a sua polícia mais tradicional. Temia uma reviravolta em que seus membros passariam de caçadores a caçados pelos que perseguiram durante a ditadura. Nesse ano, o regime caminhava para o fim e haveria as primeiras eleições para governador de estado desde 1965. Os governadores nesse período eram indicados pelo presidente-ditador e referendados pelas assembleias legislativas submissas. Na prática, eram nomeados pela ditadura. Vários candidatos a governador com chance de ganhar eram de oposição ao regime e prometiam fechar o Dops, além de abrir seus arquivos. Franco Montoro, do PMDB paulista, era um deles. Antes que isso acontecesse, não só em São Paulo, os próprios governadores do regime arrumaram um jeito de evitar isso.

O primeiro Dops a ser fechado – antes mesmo das eleições – foi o do Rio Grande do Sul, em 27 de maio de 1982. E os arquivos do Dops gaúcho foram queimados, pelo menos segundo o governo da época. “Mas se foram queimados mesmo... eu não acredito”, questiona a historiadora Larissa Rosa Corrêa, atual coordenadora do acervo do Dops paulista que, como muita gente, acredita que o tal arquivo deve estar bem guardado em algum lugar.

Em São Paulo, o governador nomeado Paulo Maluf havia deixado o governo para se candidatar a deputado e passado o cargo a seu vice, José Maria Marin, que antes de passar o governo a Franco Montoro, em 1983, entregou os arquivos à Polícia Federal. Por incrível que pareça, quem devolveu os arquivos dos vários Dops aos seus respectivos estados foi o governo Fernando Collor, em 1990. Em São Paulo, foi entregue ao Arquivo Público, na época vinculado à Secretaria da Cultura.

Mas claro que voltou sem muitos documentos: “Infelizmente, nessa transferência foi eliminada muita coisa” conta Larissa Corrêa. “É importante ressaltar que essa documentação não corresponde totalmente às atividades do Dops na época. Ela foi muito mexida, inclusive na Polícia Federal. A gente vê muitos intervalos na documentação. Como ela tem uma sequência numérica, você vê furos sequenciais. Muitas fichas foram retiradas.”

Obviamente, nenhuma documentação sobre os agentes voltou. Assim, por exemplo, quem suspeitava que um vizinho, colega de trabalho ou de escola fosse agente do Dops não vai encontrar informações sobre isso nos arquivos devolvidos. E muito menos informações sobre atividades de gente como o militar Carlos Alberto Brilhante Ustra, acusado de ter comandado torturas nos porões do DOI-Codi, ou o odiado Cabo Anselmo, que, infiltrado na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), entregou muita gente para ser morta, inclusive sua própria namorada, grávida dele.

De olho nos japoneses
A citação dos marxistas é apenas um exemplo, uma referência, mas nem sempre eles foram os mais perseguidos e fichados pelo Dops. “Se você fizer uma pesquisa por década, vai ver que cada década tem um foco”, revela Larissa Corrêa. Na década de 1940, segundo ela, há muito material sobre niponismo e estrangeiros. Italianos, anarquistas e principalmente as organizações de japoneses. Foi um período de perseguição aos imigrantes vindos de países “inimigos” do Brasil na Segunda Guerra. Então, tem muitos prontuários de japoneses, alemães, italianos, além de ser também focado em anarquismo e comunismo. Já na década de 50 é mais no movimento sindical. Então há mais investigações sobre o movimento operário, greves, movimentos contra a carestia. “Em 64, você vê uma explosão na documentação”, continua Larissa. “Ela aumenta consideravelmente em relação às décadas passadas. É o movimento estudantil e setores como igreja, movimentos religiosos, e movimento operário também.”

A impressão que se tem é que para não ser fichado no Dops era preciso ser quase um zero à esquerda, não ter feito absolutamente nada de contestador na vida. “A gente tem um quilômetro de documentação. Se colocarmos as estantes em linha reta, elas somam um quilômetro”, informa a historiadora. “Isso se divide em 149.800 prontuários temáticos e nominais, 12 mil dossiês do serviço secreto e 2.500 pastas do Departamento de Ordem Social e 1.500 pastas de Ordem Política, que era outra delegacia especializada.”

Segundo Lauro Ávila Pereira, diretor do Departamento de Difusão da Memória, já existem vários acordos que permitiram desenvolver projetos como a colocação no site do Arquivo Público do Estado as capas do jornal Última Hora. Há acordos feitos com o BNDES, o Ministério da Justiça, universidades e empresas privadas. O resultado de um desses acordos, o Proin (Projeto Integrado Arquivo/Universidade) é um importante livro chamado A imprensa confiscada pelo Deops – 1924-1954, organizado por Maria Luiza Tucci Carneiro e Boris Kossoy. O livro mostra capas e comenta jornais militantes (mais de esquerda, anarquistas e comunistas, mas também alguns de direita) apreendidos pelo Dops nesse período.

 

As consultas públicas
Qualquer pessoa pode consultar os arquivos do Dops, e não paga nada, a não ser que requisite serviços como o de copiar documentos, coisa barata. Muita gente consulta para entrar com pedido de reparação por perseguições, prisões, tortura e morte de parentes durante a ditadura. Os prontuários existentes no Dops, xerocados e assinados pelo diretor, passam a ter valor jurídico para pessoas que queiram entrar com processos contra o Estado ou, por exemplo, pedir indenização por perseguições. Mais de 4 mil pessoas já fizeram pedidos deste tipo desde 1994, e atualmente há em média 30 a 40 pedidos por mês. Mas há também muitos pesquisadores que estudam toda essa documentação.

A lei permite acesso a documentos sobre qualquer pessoa e não apenas a ela própria. Mas é necessário assinar um termo de responsabilidade de modo que se alguém usar as informações de forma indevida pode ser processado pela vítima. Nos prontuários há muitas informações como “amante do fulano”, “homossexual” e outras coisas relativas à privacidade da pessoa, além do uso frequente de adjetivos como “terrorista” ou “perigoso”. Há também informações falsas, obtidas através da tortura, em que o torturado mentia (era um ato de heroísmo, nestas circunstâncias) para não entregar companheiros. “Muitos historiadores levam muito a sério a informação da polícia”, conta Larissa Corrêa, que está fazendo agora um trabalho com o Fórum de Ex-Presos Políticos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo, no sentido de coletar também a história oral, a versão das vítimas.

Um dos problemas para colocar todo o arquivo na internet é este, pois como responsabilizar alguém pelo mau uso do que está lá? Segundo o jornalista Alípio Freire, que foi preso político em São Paulo durante cinco anos por militância na Ala Vermelha, a partir de 1969, é muito importante esse termo de compromisso e uma consciência maior de quem pesquisa os arquivos do Dops. Ele cita como exemplo, o uso que considera indevido de informações obtidas pelo jornalista Elio Gaspari para atacar pessoas que obtiveram aposentadorias especiais, em artigos publicados na Folha de S. Paulo e O Globo em março de 2008 e respondidos por Alípio Freire no jornal Brasil de Fato. Com o título “O terrorista de 1968 remunera-se em 2008”, Elio Gaspari critica com virulência a pensão dada a Diógenes Carvalho de Oliveira, de R$ 1.627, que teria participado de uma ação que Gaspari classifica como “terrorista” contra o Consulado Americano, em que uma vítima, Orlando Lovecchio Filho, perdeu uma perna e ganhava R$ 571,00 de aposentadoria. Acontece, diz Alípio, que “Elio Gaspari usou informações obtidas em depoimentos sob tortura”. E continua: “nem a auditoria militar aceitava esses testemunhos”.

Ivan Seixas, que foi militante do Movimento Revolucionário Tiradentes e hoje é diretor do Fórum Permanente de Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo, tem a mesma preocupação quanto ao uso indevido das informações. Para ele, a grande questão são os documentos forjados pela polícia. Ivan foi preso aos 16 anos de idade, junto com seu pai Joaquim Alencar Seixas, que morreu sob tortura no DOI-Codi. Antes mesmo de sua morte, os torturadores, sadicamente, mostraram a Joaquim Seixas uma notícia publicada num jornal informando que ele havia morrido num confronto com a polícia. A foto de Joaquim Seixas existente nos arquivos do próprio Dops mostra marcas de tortura violenta.

Outro, entre os muitos exemplos, é o de Eduardo Leite, conhecido como Bacuri. Preso pela equipe do delegado Fleury, sua ficha no Dops diz que foi morto em confronto no litoral paulista e há uma foto desfocada do seu cadáver jogado numa viatura. Há provas de que foi morto sob tortura. Seu corpo tinha os olhos vazados, as orelhas decepadas, dentes arrancados e muitos ossos quebrados.

Às vezes há usos cínicos dos depoimentos. É o caso do senador José Agripino Maia (DEM-RN), quando a ministra Dilma Rousseff depunha na comissão do Senado que apurava se o governo fazia mesmo um dossiê dos gastos sigilosos do governo FHC, em maio de 2008. Dilma havia contado em entrevista dada anteriormente que quando estava presa, ao ser interrogada sob tortura, inventou histórias falsas para não entregar companheiros, e o senador Agripino usou isso na comissão, insinuando que se ela admitiu ter mentido naquelas circunstâncias podia mentir também à comissão do Senado. Foi o que se chama um tiro no pé. O senador iniciou sua carreira como prefeito de Natal, nomeado pela ditadura, e Dilma o lembrou disso discretamente: “Nós estávamos em momentos diversos das nossas vidas em 1970”. E completou: “Eu me orgulho muito de ter mentido”. F

 

República Planetarista Um documento curioso existente nos arquivos do Dops é um calhamaço de 120 páginas enviado por Antonio Gianesella Lisboa, em 1981, ao presidente João Baptista Figueiredo, o último da ditadura. Nele, o autor propõe a “República Planetarista do Brasil”. O que se segue é uma constituição dessa república, incluindo a mudança no sistema econômico, que passaria a ser o “Planetarismo”, e entrando em detalhes sobre quase tudo na vida do país, como educação, trabalho, salários e até casamentos.

O autor do texto diz ter ele sido fruto de um trabalho telepático feito ”sob as bênçãos de G. ÿ . A. ÿ .D. ÿ .U e sob a mão carinhosa de I. ÿ .N. ÿ . R. ÿ .I” (sic) e começa invocando “o Senhor dos Exércitos”, o “Grande Arquiteto do Universo”. Na República Planetarista do Brasil, o dinheiro deixaria de ser o cruzeiro (moeda da época) e passaria a ser o planetário, que equivaleria a uma hora-trabalho e não seria fracionada em centavos mas em minutos, e logicamente cada minuto valeria 1/60 de planetário. Ah, moços e moças casadoiras: as pessoas só poderiam se casar depois de completar 21 anos e provar que não tinham vícios. E o casamento seria obrigatoriamente com separação de bens.

E, para finalizar, ele determina que “o Brasil não comercia com instrumentos de vícios e perversões, drogas tóxicas, cigarros, fumos, bebidas alcoólicas, armas brancas, de fogo, material pornográfico...”. Todas as fábricas de “instrumentos de vício e perversão” deveriam aproveitar todo o seu capital e suas máquinas para se transformarem em “indústrias de conservas alimentícias e sucos naturais ou qualquer outra atividade saudável, profilática”. Olha... o sr. Gianesella seria hoje aplaudido pelo pessoal que persegue os fumantes e que aplaude a Lei Seca!