Boff: Papa Francisco e a Teologia da Libertação

Não importa que o papa Francisco não use a expressão “teologia da libertação”. O importante mesmo é que ele fala e age na forma de libertação

Para Leonardo Boff, os conflitos entre o Papa Francisco e a presidenta da argentina se devem à opção dele pelos pobres
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Não importa que o papa Francisco não use a expressão “teologia da libertação”. O importante mesmo é que ele fala e age na forma de libertação Leonardo Boff  - texto publicado originalmente no Brasil de Fato. [caption id="attachment_23426" align="alignleft" width="300"] Para Leonardo Boff, os conflitos entre o Papa Francisco e a presidenta da argentina se devem à opção dele pelos pobres - Foto EBC.[/caption]
Muitos têm se perguntado que pelo fato de o atual papa Francisco provir da América Latina seja ele um adepto da teologia da libertação. Esta questão é  irrelevante. O importante não é ser da teologia da libertação, mas da libertação dos oprimidos, dos pobres e injustiçados. E isso ele o é com indubitável claridade. Este, na verdade, sempre foi o propósito da teologia da libertação. Primeiramente vem a libertação concreta da fome, da miséria, da degradação moral e da ruptura com Deus. Esta realidade pertence aos bens do Reino de Deus e estava nos propósitos de Jesus. Depois, em segundo lugar, vem a reflexão sobre este dado real: em que medida aí se realiza antecipatoriamente o Reino de Deus e de que forma o cristianismo, com o potencial espiritual herdado de Jesus, pode colaborar, junto com outros grupos humanitários, nesta libertação necessária. Esta reflexão posterior, chamada de teologia, pode existir ou não pois pode não haver pessoas que tenham condições de exercer esta tarefa. O decisivo é que o fato da libertação real ocorra. Mas sempre haverá espíritos atentos que ouvirão o grito do oprimido e da Terra devastada e que se perguntarão: com aquilo que aprendemos de Jesus, dos Apóstolos e da doutrina cristã de tantos séculos, como podemos dar a nossa contribuição ao processo de libertação? Foi o que realizou toda uma geração de cristãos, de cardeais a leigos e a leigas a partir dos anos 60 do século passado. Continua até os dias de hoje, pois os pobres não cessam de crescer e seu grito já se transformou num clamor. Ora, o papa Francisco fez esta opção pelos pobres, viveu e vive pobremente em solidariedade a eles e o disse claramente numa de suas primeiras intervenções: "Como gostaria uma Igreja pobre para os pobres”. Neste sentido, o papa Francisco, está realizando a intuição primordial da Teologia da Libertação e secundando sua marca registrada: a opção preferencial pelos pobres, contra a pobreza e a favor da vida e da justiça. Esta opção não é para ele apenas discurso mas opção de vida e de espiritualidade. Por causa dos pobres, tem se indisposto com a presidenta Cristina Kirchner pois cobrou de seu governo mais empenho político para a superação dos problemas sociais que, analiticamente se chamam desigualdades, eticamente, representam injustiças e teologicamente constituem um pecado social que afeta diretamente ao Deus vivo que biblicamente mostrou estar sempre do lado dos que menos vida têm e são injustiçados. Em 1990, havia na Argentina 4% de pobres. Hoje, dada a voracidade do capital nacional e internacional, se elevam a 30%. Estes não são apenas números. Para uma pessoa sensível e espiritual como o bispo de Roma, Francisco, tal fato representa uma via-sacra de sofrimentos, lágrimas de crianças famintas e desespero de pais desempregados. Isso faz-me lembrar uma frase de Dostoiewski: "Todo o progresso do mundo não vale o choro de uma criança faminta.” Esta pobreza, tem insistido com firmeza o papa Francisco: não se supera pela filantropia, mas por políticas públicas que devolvam dignidade aos oprimidos e os tornem cidadãos autônomos e participativos. Não importa que o papa Francisco não use a expressão “teologia da libertação”. O importante mesmo é que ele fala e age na forma de libertação. É até bom que o papa não se filie a nenhum tipo de teologia,  como a da libertação ou de qualquer outra. Seus dois antecessores assumiram certo tipo de  teologia que estava em suas cabeças e se apresentava como expressões do magistério papal. Em nome disso, se fizeram condenações de não poucos teólogos e teólogas. Está comprovado historicamente que a categoria “magistério” atribuída aos papas é uma criação recente. Começou a ser empregada pelos papas Gregório XVI (1765-1846) e por Pio X (1835-1914) e se fez comum com Pio XII (1876-1958).  Antes o “magistério” era constituído pelos doutores em teologia e não pelos bispos e pelo papa. Estes são mestres da fé. Os teólogos são mestres da inteligência da fé. Portanto, aos bispos e papas não cabia fazer teologia: mas testemunhar oficialmente e garantir zelosamente a fé crista. Aos teólogos e teólogas cabia e cabe aprofundar este testemunho com os instrumentos intelectuais oferecidos pela cultura em presença. Quando papas se põem a fazer teologia, como ocorreu recentemente, não se sabe se falam como papas ou como teólogos. Cria-se grande confusão na Igreja; perde-se a liberdade de investigação e o diálogo com os vários saberes. Graças a Deus que o papa Francisco explicitamente se apresenta como Pastor e não como Doutor e Teólogo mesmo que fosse da libertação. Assim é mais livre para falar a partir do Evangelho, de sua inteligência emocional e espiritual, com o coração aberto e sensível, em sintonia com o mundo hoje planetizado. Que o Papa deixe aos teólogos fazer teologia e ele presida a Igreja no amor e na esperança. Papa Francisco: coloque a teologia em tom menor para que a libertação ressoe em tom maior: consolação para os oprimidos e interpelação às consciências dos poderosos. Portanto, menos teologia e mais libertação. Leonardo Boff é autor de Teologia do cativeiro e da libertação, Vozes 2013.