Briga milenar de religiões?

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Há um senso comum sobre a ocupação da Palestina que a refere a uma suposta raiz religiosa do conflito e a um antagonismo “milenar” que oporia judeus e muçulmanos.  De acordo com essa espécie de filosofia de botequim, o Islã e o Judaísmo “nunca se entenderam” e “estiveram sempre brigando”. O mito da origem religiosa do processo pode parecer neutro à distância, mas opera, na prática, de forma a obscurecer as hierarquias e violências políticas que subjazem ao problema. Realizam uma operação de distorção que é objetivamente cúmplice da própria ideologia ocupacionista. Aqui é importante separar os fatos das mistificações. É correto dizer que a mais radical resistência à ocupação israelense nos últimos anos se expressou num grupo islamista, o Hamas. Também é correto que os colonos judeus que seguem confiscando terras legalmente palestinas desde 1967 são, em sua esmagadora maioria, movidos por uma leitura do seu livro sagrado, a Bíblia. Em ambos os casos, a religião encontra-se na posição de expressar, para um determinado sujeito político, sua posição no interior do antagonismo. Mas daí não se segue, de forma nenhuma, que a religião seja a raiz ou a causa desse antagonismo, muito menos que ela seja “milenar”. A violência da ocupação colonial pode se expressar na violência contra símbolos religiosos, com efeitos políticos reais. Tome-se a visita de Ariel Sharon, acompanhado de um milhar de soldados, à mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém, o terceiro lugar mais sagrado do Islã. Nessa visita, realizada no ano 2000, para sepultar qualquer esperança de paz que porventura tivesse sido gerada pelas reuniões de Camp David, é evidente que Sharon fazia um uso calculado de uma simbologia religiosa. Exemplos como este têm se multiplicado ao longo da história recente. Mas isso não significa que o dado básico da realidade seja uma “briga de religiões”. O dado é a ocupação colonial estrangeira sobre uma população civil, num contexto em que o grande aliado dessa potência ocupante, os EUA, continua colonizando grandes fatias de terra árabe, diretamente, como no Iraque, ou indiretamente, como na Arábia Saudita. Na história de perseguição cristã aos judeus na Europa, ao longo da Idade Média e nos albores do período moderno, os califados foram lugares de refúgio, no qual a coexistência entre a minoria judaica e a maioria muçulmana foi pacífica e colaborativa. Durante o domínio árabe de sete séculos sobre o sul da Península Ibérica e o norte da África, na região conhecida como Al-Andalus, judeus, muçulmanos e também cristãos coexistiram de forma pacífica, produzindo uma riquíssima cultura letrada. Maria Rosa Menocal, especialista em literatura medieval hispânica, escreveu um belo estudo sobre como judeus, cristãos e muçulmanos construíram uma cultura da tolerância sob o regime hegemonizado por estes últimos na Península Ibérica. O ano de 1492, de unificação da coroa espanhola, também marca o ano de expulsão tanto de judeus como de muçulmanos da Península, sepultando as últimas marcas de Al-Andalus (além de marcar, claro, o ano de chegada dos espanhóis à América). Ao longo dessa história, os árabes foram não só uma proteção aos judeus perseguidos pelo cristianismo, como também tradutores e continuadores do legado que o próprio pensamento ocidental identifica como sua origem, ou seja, a filosofia grega. “Platão” e “Aristóteles”, para não ir mais longe, são nomes que significariam outra coisa para nós, não tivesse sido pela mediação tradutora árabe. Não há forma mais clássica de desentender a ocupação da Palestina que remetê-la a um suposto conflito milenar de religiões. Não é essa a raiz do problema e o estudo das fontes históricas o prova. Se há “duas religiões do livro” que não possuem um histórico de conflito entre si, estas são o Judaísmo e o Islã. Ao longo do período de expansão colonial, e mesmo antes dele, na Alta Idade Média, foi o Cristianismo que se ocupou de participar das empreitadas de conquista, colonização e saqueio. O antagonismo entre Islã e Judaísmo, portanto, não é o ponto de partida – o que não quer dizer, claro, que não se deva estar atento às formas como as religiões expressam, em determinado momento, a posição de um sujeito político no antagonismo gerado pela ocupação, que é de natureza política e colonial. Os defensores das políticas de George W. Bush e dos ocupadores israelenses raramente o percebem, mas eles têm com Osama Bin Laden e a Al-Qaeda um importante dado em comum: ambos desentendem (ou mascaram) uma realidade política com um vocabulário religioso ou moral. Ambos pensam no antagonismo como um “choque de civilizações” (para usar a já infame expressão de Samuel Huntington), reduzindo estas últimas a mensagens messiânicas de caráter religioso. É importante observar o papel que passam a cumprir as referências religiosas a partir de certo momento da história, tanto para oprimidos como para opressores. Mas isso é diferente de achar que o problema tem raiz religiosa. Equivocam-se, portanto, valentes militantes da causa ateísta, como Richard Dawkins, quando conferem à religião o estatuto de causadora do estado de coisas que se vive hoje na Palestina e no Oriente Médio. Conferir-lhe esse estatuto, ironicamente, dá à religião um poder que justo um ateu deveria saber que ela não tem, o de agir magicamente sobre o mundo, influindo nele sem ser por ele condicionada. Há cristãos entre os palestinos sufocados pela ocupação, mas também cristã era a milícia falangista que chacinou palestinos civis em Sabra e Chatila sob a supervisão israelense de Ariel Sharon. O Estado ocupador israelense fala em nome do Judaísmo, mas uma parcela significativa dos judeus religiosos ultra-ortodoxos encontra-se entre os mais virulentos críticos de Israel, não só de suas políticas mas, muitas vezes, de sua própria existência. Para uma enorme parte das massas árabes, o Islã passou a articular – tanto no Irã como em Gaza, tanto, agora, no Iraque, como há algum tempo no sul do Líbano – a revolta contra as ocupações israelense e estadunidense, mas essas mesmas organizações islamistas, como o Hamas, em Gaza, ou o embrião do Talibã, no Afeganistão, foram financiadas e apoiadas por Israel e pelos EUA, na época em que sua prioridade era derrotar formas nacionalistas, seculares e esquerdistas de organização popular nas nações árabes e/ou muçulmanas. É óbvio que não há como escrever sobre este tema sem tocar no papel das religiões. Mas a raiz do problema deve ser buscada em outro lugar, ou seja, na política ocidental para a região durante este último século. Este artigo é uma parte integrante da Edição 88 da Revista Fórum