Cânone Literário e Valor Estético

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Apresentei na última quarta-feira, no curso de História da Universidade Federal de Goiás, trechos de um longo trabalho desenvolvido ano passado, sobre os problemas do valor estético e do cânone literário. É ou não inevitável que a abordagem à literatura traga consigo, mesmo que implicitamente, uma operação valorativa? O trabalho argumenta que sim, que essa premissa é correta, embora nem todas as escolas de crítica literária a compartilhem. Se aceitamos a premissa de uma “inevitabilidade valorativa”, como lidaram com ela as diversas correntes de crítica literária do século XX? Como entender, à luz da inevitabilidade valorativa, os recentes debates entre os defensores de um cânone literário relativamente fixo, transhistórico, e os Estudos Culturais que, segundo aqueles, estariam promovendo um daninho relativismo do “vale-tudo”? Como se confeccionam critérios de valor na estética, e como eles se mantêm? São algumas das perguntas de que trato no texto. Deixo abaixo alguns trechos da argumentação e, no fim, o link para o texto completo. ********** Sobre o samba: Em meu trabalho sobre música popular, interessou-me em certo momento a origem do discurso sobre a decadência do samba: “Já não se faz mais samba como antigamente”. Desde quando se diz isso? Minha hipótese inicial, a de que o discurso coincidia com o início da apropriação bossanovista do samba de morro nos anos 1960, foi contradita por inúmeras ocorrências anteriores dessa retórica, ainda no contexto da Rádio Nacional, nos anos 1950. Voltando ainda mais, encontrei outras instâncias na época do samba-exaltação e da sobreorquestração do gênero no molde das big bands norte-americanas. A hipótese de que a percepção de uma decadência no samba datava dos anos 1940 foi, por sua vez, contradita pela sua aparição durante a compra dos sambas dos compositores negros do morro por intérpretes brancos de classe média, como Francisco Alves, nos anos 1930. Estupefato, descobri que a afirmação de que já não se faz samba como antes aparece no primeiro livro escrito sobre o samba, pelo jornalista Vagalume, em 1933. O discurso de que o samba corre risco de morte tem a exata idade do samba. Da mesma forma, o fato de que em 1964 o poeta mexicano Octavio Paz tenha reunido uma lista de sinais de decadência da literatura não quer dizer que “a situação em que hoje vivemos foi claramente prevista” por ele (Perrone-Moisés, 1998, p. 179). Significa que a existência de profetas da queda do valor literário é tão antiga como a literatura mesma. ********* Sobre as oscilações na valoração de Julio Cortázar na Argentina: Na Argentina, nos últimos trinta anos, nota-se uma acentuadíssima queda no capital cultural de um escritor que chegou a ser considerado um dos maiores do continente. Julio Cortázar, que inspirou uma geração de neovanguardistas estéticos e revolucionários políticos, é hoje invariavelmente visto como “escritor para adolescentes” (Aira, 2001) que, “depois de Todos los fuegos el fuego já não escreveu mais, dedicando-se exclusivamente a repetir seus velhos clichês e a responder às exigências estereotipadas de seu público” (Piglia, 1993, p.85). Incontáveis são juízos contemporâneos que veem O Jogo de Amarelinha como romance que “sofreu enormemente a passagem do tempo” (Sarlo, 2008) e “está escrito para candidatos de agência de turismo cultural”, uma “perfumaria free tax de aeroporto” (Abraham 2006, p.39). Na Argentina, a avaliação mais recorrente de Cortázar é que se trata de um escritor em cuja obra talvez se salvem os primeiros contos, de Bestiario, mas não muita coisa mais. Uma determinada conjunção de fatores estéticos e políticos criou as condições para uma leitura celebratória de Cortázar nos anos 60. A obra não parece ter renovado sua legibilidade depois daquele contexto (o que não quer dizer, evidentemente, que não possa vir a fazê-lo num momento futuro). O fato é que hoje seria bastante difícil encontrar um estudioso de literatura na Argentina que colocasse Cortázar no mesmo patamar de, por exemplo, Juan José Saer. As comparações com Jorge Luis Borges, comuns nos anos 60, hoje soariam risíveis aos ouvidos dos que circulamos no interior dos pactos valorativos que presidem a circulação desses textos. Uma tese que se propusesse a comparar “o fantástico em Borges e Cortázar” é imaginável no Brasil, na Espanha e talvez nos EUA, como demonstra uma pesquisa nos bancos de dados da disciplina. Mas na Argentina ela seria recebida como uma junção de termos incomensuráveis. ********** Sobre a malfadada expressão “samba sincopado”: Está demonstrado, com pesquisa formal e etnográfica (Frith 1996), que as distinções valorativas realizadas pelos fãs de música popular não são, absolutamente, menos complexas, rigorosas, multifacetadas ou especializadas que aquelas feitas pelos ouvintes do heterogêneo corpus de peças europeias modernas que, a partir do século XX, passou a ser agrupado sob o rótulo de “música clássica”. Qualquer consumidor de música popular que acompanhe, por exemplo, o heavy metal, poderá testemunhar acerca da miríade de distinções de sub-gêneros baseadas em andamento, instrumentação, vocalização, grau de distorção, volume, temática das letras, performance, timbre ou padrão rítmico—distinções incompreensíveis e ilegíveis para aqueles situados fora do pacto valorativo que preside o consumo do gênero. Carece de qualquer fundamentação filosófica a ideia de que a viabilidade do conceito de valor estético dependa da aceitação de uma diferença essencial, imanente entre o valor das obras agrupadas sob a rubrica da arte erudita e o valor daquelas que convencionamos chamar de populares ou massivas. Para seguir com a analogia musical: durante décadas, os estudos de música brasileira trabalharam com a noção de síncope como “irregularidade” essencialmente africana. O próprio Mário de Andrade faz referência a ela como característica “tida em geral como provinda da Africa” (1987, p.409). Ora, tal “irregularidade” provinha do fato de que a teoria ocidental prevê compassos simples (binários: 2/4, 3/4, 4/4) e compostos (ternários: 6/8, 9/8), mas não prevê compassos que misturem de forma sistemática agrupamentos dos dois tipos, exatamente a mistura que é uma das marcas da música da África subsaariana. O resultado é que “ritmos desse tipo apareceram nas partituras como deslocados, anormais, irregulares (exigindo, para sua correta execução, o recurso gráfico da ligadura e o recurso analítico da contagem) – em uma palavra, como síncopes” (Sandroni 2001, p.26). O valor rítmico contramétrico era ilegível numa notação construída para descrever e privilegiar a harmonia. A chamada “irregularidade africana” não era senão a impossibilidade de que a partitura ocidental descrevesse apropriadamente o novo objeto. *********** Caso esses exemplos tenham interessado e você queira ler o texto na íntegra, ele está disponível na Revista Brasileira de Literatura Comparada: Cânone Literário e Valor Estético, Notas sobre um Debate do Nosso Tempo.