Cansaço e esquecimento: a tática do Estado para não investigar os crimes de ódio contra as LGBT

Em entrevista à Fórum, Marco Duarte, pesquisador da UFJF, afirma que é preciso falar mais sobre os crimes de ódio e afirma que os poderes públicos atuam para limitar a circulação dos corpos dissidentes

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Entre o fim de 2020 e o começo de 2021 foram denunciados vários crimes contra pessoas LGBT, alguns deles chegaram à imprensa: Diogo Paz, Julia Medeiros, trans que foi espancada em Juiz de Fora, e o corpo de uma mulher trans que foi encontrado no centro de São Paulo e não há indícios de que uma investigação será feita.

No último sábado (16), o estudante de letras Jadson Gabriel foi espancado e teve os seus dentes arrancados, em um crime com todos os caracteres de ódio às LGBT. O crime acontecei em Maringá. A desconfiança das investigações é que Gabriel foi deixado para morrer e, até este momento, há poucas informações para levar adiante as investigações.

Porém, qual é o ponto em comum em todos esses casos? A não solução dos casos ou uma demora por parte do poder público que faz com que todos os envolvidos nas investigações se cansem e desistam de investigar.

Amigos e familiares de Diogo Paz têm reclamado e denunciado a extremas burocracia e má vontade para dar prosseguimento às investigações de sua morte.

Foto: Diogo Paz, que ia ser enterrado como indigente/ Arquivo



Paz foi encontrado desmaiado no centro de São Paulo e, posteriormente, encaminhado ao Hospital do Servidor Público Municipal (HSPM) aonde chegou com vida e conseguiu passar os seus dados, porém, veio a falecer horas depois e quase foi enterrado como indigente, fato que só não se consumou porque o amigo de Paz, Jared Baungartner saiu a procura do amigo e o encontrou.

Em entrevista para a revista Fórum, o advogado de Paz, Musslim Ronaldo Vaz de Oliveira, afirma que o caso poderia ser resolvido rapidamente com a obtenção das imagens das câmeras da rua onde Digo Paz foi encontrado, o que não aconteceu até agora e há o risco dessas imagens, que podem solucionar o caso, se perderem.

Infelizmente, a circunstância burocrática em torno do caso de Diogo Paz não é uma exceção, mas uma regra. Lembremos do caso Alexandre Ivo, adolescente de 14 anos que foi torturado e espancado até a morte em São Gonçalo (RJ), em 2010.

Foto: Alexandre Ivo, jovem de 14 anos vítima de crime homofóbico em São Gonçalo/ Arquivo

Mesmo com a repercussão nacional e internacional do caso, as investigações não foram adiante. No meio do caminho, a juíza Patrícia Accioly, que cuidava do caso, foi assassinada na porta de casa pela milícia local. São 10 anos sem respostas sobre o assassinato de Alexandre Ivo.

Podemos ainda acrescentar nessa lista o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), mulher negra e LGBT que há dois anos foi assassinada em pleno centro da cidade do Rio de Janeiro. Um crime que possui todas as marcas de uma execução realizada por milicianos. Até este momento muitas investigações, suspeitos, mas tudo muito longe de responder à pergunta: quem mandou matar Marielle Franco.

Para falar sobre a morosidade do Estado para investigar os casos de ódio contra a população LGBT, conversamos com o pesquisador e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Marco José Duarte, que é doutor em Serviço Social (UERJ), onde também lecionou, e militante LGBT.

Duarte, que é primo de Alexandre Ivo e esteve envolvido na luta pela elucidação do assassinato do adolescente, diz que levar o cansaço e, consequentemente, a desistência aos envolvidos para que se dê prosseguimento nas investigações sobre crimes contra as LGBT é uma tática do Estado.

O pesquisador também ressalta que os poderes públicos atuam para diminuir a circulação dos corpos dissidentes e que isso também tem uma relação direta com a constituição da cidade.

Revista FórumComo você tem recebido as noticias sobre os crimes LGBT neste começo de ano?
Marco Duarte - Eu fiquei impressionado com os vários casos de violência entre os meses de dezembro e de janeiro. Foram crimes de espancamentos e mortes. Como o próprio caso da Júlia, que não chegou a um assassinato, mas a garota recebeu chute, puxada de cabelo, socos na cara, isso reforça pra mim o ódio. A gente precisa trabalhar mais com essa questão: são crimes de ódio. Seja pela questão racial, pela questão racial, pela identidade de gênero, pela situação socioeconômica, por ser uma pessoa pobre.
Esse quadro de crimes de ódio tem relação com o momento histórico?
Tem a ver com o momento histórico. Tudo isso estava aí e é expressão da eleição do Bolsonaro.

Nós temos uma conjuntura que favorece esse ódio, a lógica do negacionismo… em um âmbito mais amplo nós temos a emergência do conservadorismo com um conteúdo muito reacionário e intolerante. A gente que é da periferia aqui de São Gonçalo a gente já vive isso há muito tempo. Isso foi da periferia para o centro do poder. E isso se associa a concepção de desumanidade, de abjeto da população LGBT e também dos precarizados no geral pela vida cidadã, ou seja, os não cidadãos, o que não devem aparecer. Todo o modelo sexual, moral e econômico. Se explora a força de trabalho, mas não querem que esses corpos se coloquem na mobilidade urbana, pois isso tem a ver com a circulação da cidade.

Foto: pesquisador e professor Marco Duarte, da UFJF

Familiares e amigos das vítimas dos crimes de ódio contra as LGBT sempre se queixam da morosidade do Estado para investigar os casos. Consequentemente isso leva a um cansaço que faz com que as pessoas desistam de levar adiante a investigação. Acredita que isso é uma estratégia do Estado?
Pegando o caso Alexandre Ivo, mas não só, a gente vê que o poder público, as autoridades e pegando o aspecto da garantia de direitos, isso é letra morta. O caso Alexandre Ivo: além da própria juíza ter sido assassinada pelo próprio Estado, porque eram representantes do Estado, a polícia-milicia que mata ela, aí a rotatividade do caso, a não solução, as diligências que não foram feitas, engavetaram o processo, depois a gente apelou, conseguiram fazer outro sorteio e não deu em nada.

Mesmo com muita mobilização, a gente vê isso: a demora do poder público, a morosidade em não responder, a má vontade das autoridades em geral, uma certa naturalização da indiferença, do emperramento do aparelho público. Ou seja, isso é real em decorrência de determinados sujeitos. E aí a gente não pode descartar a perspectiva interseccional com a questão da classe, da raça, do gênero, da identidade de gênero, da orientação sexual, da sexualidade, do corpo, o território, porque é isso: quem tem grana vai lá e paga, e que não tem e ainda tem a vulnerabilidade e precariedade é isso: a gente acaba se cansando.

A gente fica apertando a mesma tecla e não consegue superar isso. Mesmo que a gente tenha movimentos em rede, que agencie coletivamente, a gente não consegue dar esse salto. Assim como o racismo, a LGBTfobia também tem essa dinâmica estrutural e institucional. Isso faz com que o enfrentamento tenha que ser mais a fundo.

Quais caminhos para mudar essa estrutura?
Eu fico muito receoso com os caminhos. Apesar da gente ter um número grande de LGBTs que entraram agora na Câmara dos Vereadores, mas a gente sabe como funciona o aparelho de Estado: a correlação de forças, a hegemonia… às vezes podem ser vozes que vão ficar isoladas. Mesmo no espectro da esquerda: determinados setores da esquerda nos colocam como identitários, pós-modernos; a direita e a extrema-direita nos coloca em uma outra rotulação de nós somos da “ideologia de gênero”.

Nós somos dissidentes sexuais, da norma, da compulsoriedade, da cis-heterossexualidade.

O poder e as suas instituições… as instituições são conservadoras. Ou seja, são vários embates políticos. Eu falo isso por muitos anos na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), agora na Universidade Federal de Juiz de Fora, nós temos vários embates, em alguns momentos são favoráveis, em outros não. O caso da Julia foi isso: a comissão da OAB de Direitos Humanos e Diversidade fizeram uma nota e a diretoria não quis assinar, não reconhece que foi um caso de transfobia e o barulho foi tanto que da seccional e foi pra sede e a sede pressionou e eles fizeram uma nota, não falam da transfobia, desse conceito transfóbico, o agressor é transfóbico, além de ser gay e nacionalista.

Nós estamos numa guerra. Quem viveu nos anos 80 e vê agora como se fosse um refluxo do movimento, por outro lado, tem a pandemia, por outro lado tem novas forças políticas, nova forma de agenciamento pela via da internet.

Na política institucional, na militância e na universidade a gente tem muito limite e na perspectiva de 2022 eu sou muito pessimista. Eu acho que a gente precisa se organizar mais e de outra forma.