Carta aberta à Luciana Genro

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Professor de Direito Penal Fernando Hideo Lacerda descontrói, ponto a ponto, o artigo em que a líder do PSOL apresenta razões para defender a Operação Lava Jato Por Fernando Hideo Lacerda* Prezada Luciana, Com o interesse característico de um dos seus mais de um milhão e seiscentos mil eleitores na corrida presidencial do ano de 2014, li com atenção o artigo em que a senhora apresenta razões para defender a chamada Operação Lava Jato. Movido por este mesmo interesse (ora potencializado em decepção) de um (ex-)eleitor, pela inquietude de quem estuda como jurista e trabalha como advogado no caso, pelo entusiasmo daqueles que creem na superação desse processo penal de exceção e pela satisfação do debate, escrevo num sopro as linhas que se seguem com a expectativa de revelar um outro lado da chamada Operação Lava Jato e expor as contradições de um esquerda punitiva. Inicio por registrar uma obviedade: todos nós somos contra a corrupção naturalizada na gestão pública e imbricada no processo eleitoral, o que nos incita a pensar no desenvolvimento e aperfeiçoamento constantes dos mecanismos para apuração e responsabilização eficiente desses desvios de conduta (sobre o tema, vale conferir artigo do professor e juiz federal Silvio Luís Ferreira da Rocha). Ocorre que combater a corrupção e a “impunidade” (sic) mediante a violação das regras do jogo ? desde a “flexibilização” de normas constitucionais até invenções interpretativas que contrariam o próprio texto da lei ? é apenas mais uma forma de corrupção sistêmica. O mínimo que esperamos em um sistema democrático é o julgamento justo, que respeite o devido processo legal, a todos os acusados. Outra premissa óbvia para as considerações que se seguirão: não foi a dita Operação Lava Jato quem iniciou os arbítrios no sistema de justiça criminal, eles sempre existiram ? e foram por nós denunciados e combatidos ? contra uma clientela bem tradicional (aqueles mesmos cujos ascendentes ocupavam as senzalas). Entretanto, a solução oferecida pela senhora[1] parece ser em defesa da universalização do arbítrio e das ilegalidades próprias do Estado de Exceção (que sempre vigorou em relação aos grupos marginalizados) para um grupo que outrora se valia do “privilégio” das garantias próprias do Estado de Direito. É como se algumas arbitrariedades justificassem outras tantas… Nesse contexto, é decepcionante reconhecer numa pretensa representante da esquerda brasileira um ideal punitivista[2], diametralmente oposto à luta pela universalização dos direitos e garantias fundamentais. A tese defendida em seu texto é de que “os argumentos dos que não estão dispostos a defender a Lava Jato não se sustentam”. Tais argumentos são resumidos e rebatidos em seis pontos[3]). Também em seis tópicos, trago algumas considerações para reflexão e debate. Preliminarmente, ressalto que as apurações desenvolvidas no contexto da Operação Lava Jato se valem de mecanismos próprios de um processo penal de exceção. São procedimentos orientados por um interesse político e por motivações pessoais; que se iniciam por meio de delações premiadas ilegais; se desenvolvem mediante condições coercitivas e ameaças de prisão arbitrárias com o intuito de inviabilizar a defesa; são julgados conforme a pressão dos sistemas econômico e midiático; e impõem punições antecipadas que transcendem o âmbito jurídico mediante prisões cautelares ilegais e vazamentos seletivos que contribuem para o espetáculo de execração pública antes de um julgamento oficial. Pois bem. Os males do processo penal delatório Sobre as delações, a senhora afirma: “É possível que haja relatos inexatos e até mentiras. A delação de Leo Pinheiro, da OAS, por exemplo, não pode ser aceita como verdade sem outras provas. Ele até pode inventar ou aumentar fatos para ganhar a liberdade. Sobre Lula, o fato inconteste é que ele é um traidor da classe trabalhadora, que se tornou um agente dos interesses do capital, especialmente das empreiteiras. E não só delas, também dos bancos, com certeza. Quanto a isso as provas são fartas”. Sim, é possível (mais do que isso, é provável) que haja “relatos inexatos e até mentiras” e que um delator “até pode inventar ou aumentar fatos para ganhar a liberdade”. Em todo caso, é incompreensível a lógica do argumento apresentado logo a seguir, retratando um juízo de valor subjetivo (“Lula é um traidor da classe trabalhadora”) como “fato inconteste” cujas “provas são fartas”. Qual a relevância de sua nobre opinião sobre o ex-presidente no contexto das delações? Colocada dessa forma, fica a nítida impressão de que os fins (punir o “traidor”) estariam justificando os (ilegais e arbitrários) meios… Não justificam. Nesse sentido fica a lição dos mestres Alexandre Morais da Rosa e Aury Lopes Jr., que precisamente descreveram o modus operandi empregado pela tal Operação Lava Jato: Prender para colaborar ou colaborar para não ser preso é a tônica do modelo “Moro” de processo penal. O acusador fica com a faca, o queijo e todas as cartas para negociar. Não aceita a negociação, segue-se instrução processual e decisão condenatória com pena alta: xeque-mate. Depois de condenado, com a nova interpretação do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a pena se cumpre imediatamente ao julgamento em segundo grau, o acusado é constrangido a colaborar. 10 verdades sobre a Operação Seja com for, talvez lhe faltem informações sobre as tais delações premiadas. Nesse sentido, para que compreenda como esta “Operação” é inconstitucional e ilegal desde a sua origem, passo a relatar 10 verdades e nenhuma mentira (mal parodiando o desafio da vez do facebook), exemplos concretos para além de qualquer filiação teórica, sobre as delações premiadas: 1) A senhora sabia que um dos primeiros delatores do caso negociou uma comissão de até 20 milhões de reais (na proporção de dois por cento de todo valor recuperado a partir de suas declarações)? 2) Ainda sobre comissões: a senhora sabia que o MPF chegou a pedir judicialmente uma comissão de 20% dos valores repatriados “para destinação aos órgãos responsáveis pela negociação e pela homologação do acordo de colaboração premiada que permitiu tal repatriação”? 3) Também sobre o MPF, a senhora sabia que houve pedidos de prisão preventiva com o objetivo explícito de induzir os investigados a celebrar acordos de delação premiada? 4) Falando sobre prisões, a senhora tem conhecimento de que delatores presos foram soltos simplesmente por que fizeram acordo de delação e houve inclusive um caso de prisão já decretada, mas que foi revogada assim que o magistrado soube que o futuro preso negociava um acordo de delação? 5) Ainda sobre prisão, a senhora sabia que não existe na legislação qualquer menção ao tal regime fechado domiciliar e à suspensão de todos os processos e inquéritos após as penas alcançarem um “teto”, que tanto beneficiam alguns delatores? (Portanto, trata-se de um benefício não apenas desproporcional, mas ilegal, a estes bons meninos). 6) Delação “terceirizada”: a senhora sabia que um delator conseguiu estender os benefícios até mesmo aos seus familiares, mesmo inexistindo qualquer lógica ou qualquer previsão legal a respeito dessa “terceirização”?[4] 7) A senhora sabia que, não obstante ser muito claro e pacífico que a delação é meio para a obtenção de prova (e não um meio de prova em si), diversas prisões foram decretadas com base nas palavras de delatores? 8) E que, logo após essas prisões decretadas com base nas palavras de delatores, outras tantas delações foram negociadas e celebradas para revogação dessas mesmas prisões? 9) A senhora tem conhecimento de que em nosso país ninguém pode ser punido sem processo, mas alguns delatores já começaram a cumprir pena antes mesmo de qualquer processo, logo após a homologação dos acordos? 10) A senhora sabia que não existem critérios legais pré-estabelecidos para orientar a conduta do representante do Ministério Público na análise da conveniência e oportunidade a respeito de quem será beneficiado e sobre o que será negociado nos acordos de delação premiada (resultando na inexistência de qualquer controle e, consequentemente, atribuindo um poder discricionário pleno aos órgão de acusação)? Sequestros travestidos de conduções coercitivas Outro tema que não mereceu atenção em seu discurso foram as ilegalidades cometidas por meio da condução coercitiva de investigados, sem qualquer intimação prévia. A forma que se encontrou para suprimir o direito de defesa, no curso das investigações deste modelo processual penal de exceção, foi o sequestro do investigado às seis horas da manhã em sua residência, geralmente acompanhado da apreensão do telefone celular, seguindo-se o encaminhamento à delegacia para ser ouvido em procedimento investigatório ao qual não lhe foi dado prévio conhecimento. O objetivo é claro: inviabilizar a defesa. Fossem seguidas as regras do Código de Processo Penal, o investigado deveria ser previamente intimado, franqueando-se-lhe a possibilidade de constituir defensor e ter acesso ao conteúdo dos autos, de modo a exercer minimamente o seu direito de defesa ao tomar ciência dos fatos investigados em momento anterior ao seu depoimento. Mas, aparentemente, isso não interessa aos que querem acabar com a “impunidade” a todo custo. Na defesa desse modus operandi autoritário são apresentadas justificativas esdrúxulas, confundindo-se condução coercitiva com medidas cautelares para justificar a existência de um “poder geral de cautela” totalmente incompatível com a Constituição Federal e o Código de Processo Penal. Nesse ponto, vale conferir a lição do Professor Geraldo Prado, ao afirmar que “o amplo rol de garantias constitucionais (e das Convenções) é impeditivo da condução coercitiva de pessoas que têm domicílio certo e se fazem representar nos procedimentos. Mas estas conduções antijurídicas foram validadas por tribunais. Por isso são repetidas e apropriadas como espetáculos midiático-políticos”. A realidade é uma só: as únicas hipóteses de condução coercitiva autorizadas pelo Código de Processo Penal estão previstas nos artigos 218, 260 e 278 deste diploma legal[5]. Fora dessas hipóteses, trata-se inevitavelmente de uma forma de prisão autoritária (porque não existe previsão legal), verdadeiro sequestro que se revela estratégia de combate para inviabilizar a defesa, induzir delações premiadas e contribuir para o espetáculo midiático. III. Estado de exceção explícito Postulado básico e elementar de um Estado de Direito: as leis devem ser seguidas por todos e contra todos. Para o bem ou para o mal, ninguém está acima e ninguém está excluído do sistema jurídico. Mas essa não parece ser a lógica da chamada Operação Lava Jato e do modelo processual de exceção. Nesse contexto, o Professor Pedro Serrano afirma que o Estado de Exceção é a contrafação do Estado de Direito, identifica que, ao invés de governos de exceção (tradicionais no século XX), passamos atualmente a ter medidas de exceção levadas a efeito pelo Poder Judiciário no interior de regimes que se dizem democráticos, e sentencia: “O que parece estar ocorrendo na América Latina é a substituição da farda pela toga”. Sobre autoritarismo do Poder Judiciário que se disfarça de interpretação das normas, vale a leitura da preciosa ilustração de Lenio Luiz Streck: Por exemplo, as decisões de Moro parecem a manifestação do personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho, de Lewis Caroll. Ali ele, o personagem Humpty Dumpty, dá às palavras o sentido que quer. Para quem não leu: discutindo sobre o papel do “desaniversário”, Humpty Dumpty diz para Alice que é melhor que haja 364 dias destinados ao recebimento de presentes — que são os desaniversários — e somente um de aniversário. É a glória para você, aduz Humpty, pois poderá receber, em vez de um, 364 presentes. Ela responde: mas isso não pode ser assim. E Humpty Dumpty complementa: “Quando eu uso uma palavra, ela significa exatamente o que quero que ela signifique: nem mais, nem menos”. Como consta no livro, é o fim “demolidor” de uma discussão. Por isso, feliz desaniversário, Dr. Sergio Moro. Afinal, mesmo que hoje não seja o seu aniversário (que, como sabemos — e é também o meu caso — só ocorre uma vez por ano), podemos comemorá-lo em qualquer dia dos outros 364. Afinal, as palavras valem o que queremos que elas valham, certo? No mesmo sentido é a lição do mestre Juarez Cirino, para quem “a justiça criminal no âmbito da Operação Lava Jato produz a sensação perturbadora de que o processo penal brasileiro não é o que diz a lei processual, nem o que afirmam os Tribunais, nem o que ensina a teoria jurídica, mas apenas o que imagina o Juiz Sérgio Moro que deve ser o processo penal”. Ressalta, também, que a situação atual “levou o Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, a reproduzir antigo conceito de Rui Barbosa: ‘a pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário’.” De todo modo, não se trata apenas e tão somente da conduta pontual e isolada de um magistrado. No Supremo Tribunal Federal, que deveria atuar como guardião da nossa Constituição Federal, as arbitrariedades cometidas a pretexto de se aplicar a legislação encontram terreno fértil. Mesmo quando a Corte reconhece atos ilegais praticados nas instâncias inferiores, não há qualquer sanção aos juízes que o próprio STF reconhece terem violado a lei. Piores são os casos em que a própria Corte ignora o texto expresso da Constituição Federal, tal o julgamento pela “flexibilização” da presunção de inocência, totalmente contrário ao texto constitucional expresso, mas fundamentado em argumentos juridicamente insignificantes e na “voz das ruas”. Muito pertinente a crítica de Alberto Toron, para quem “o mais grave, porém, é ouvir que se está atendendo a um reclamo da sociedade. Se é assim, não precisamos nem do Direito e muito menos dos tribunais. Se for para ouvir a voz das ruas, basta o ‘paredão’ do Big Brother Brasil ou do Fidel”. Não bastassem as medidas de exceção judiciais terem se tornado práticas cotidianas, no dia 22 de setembro de 2016, o Tribunal Regional Federal da 4a região sepultou o Estado de Direito ao reconhecer explicitamente que a chamada Operação Lava Jato não precisaria seguir as mesmas regras dos “casos comuns”. Vazamentos para o espetáculo A senhora chama de “ladainha” a crítica de que a tal Operação Lava Jato estaria sendo conduzida de forma seletiva. Conforme já apontado com muita propriedade, a seletividade é indissociável de qualquer persecução criminal[6]. De todo modo, tratemos da parcialidade que orienta os rumos deste caso, por meio de mais alguns exemplos concretos sobre o vazamento de conteúdos sigilosos. Em primeiro lugar, não se esqueça do episódio em que um juiz de primeira instância divulgou conversas ilicitamente interceptadas de uma Presidenta da República, no contexto de um processo de impeachment cuja votação na Câmara dos Deputados seria realizada dentro de alguns dias. O próprio magistrado reconheceu a ilegalidade de sua conduta e “desculpou-se” pelo ato, assim como o Supremo Tribunal Federal reconheceu a ilicitude da divulgação dos áudios, mas o vazamento ficou impune. Também não se esqueça da grave denúncia do Jornal Folha de São Paulo no sentido de que o Procurador Geral da República estaria concedendo “entrevistas coletivas em off” para vazar dados que deveriam ser mantidos em sigilo[7]. Chama atenção que o único vazamento rigorosamente apurado foi divulgação de informações que supostamente beneficiariam o ex-presidente Lula, publicadas no blog do jornalista Eduardo Guimarães. Tratou-se de uma verdadeira caçada ideológica, inclusive com violação do sigilo de fonte constitucionalmente assegurado à atividade jornalística (em que o mesmo juiz voltou a se retratar e reconhecer a ilicitude de sua conduta, que até o momento também permanece impune), no contexto da qual foram decretadas quebra de sigilo e conduções coercitivas ilegais (Sobre o tema, sugiro a leitura deste artigo do Matheus Pichonelli. Por fim, chamo atenção para a diferença de pesos e medidas na apuração de um vazamento mais recente. Ao final da audiência para oitiva de Marcelo Odebrecht, a Defesa denunciou que o depoimento estava sendo vazado em transmissão ao vivo por um site da internet. Tratando-se de situação de flagrância, cujo autor só poderia ser um dos presentes, o caso era de fácil apuração. Todavia, o magistrado apenas interrompeu a gravação e disse que o assunto seria “tratado na ata”. O soberano Ministério Público Federal Caracterizado por Reinaldo Azevedo como “ente que hoje se apresenta como o salvador da pátria, que reivindica o monopólio da virtude, que pretende ser o Poder Moderador do Brasil”, o Ministério Público Federal parece extrapolar a cada dia mais os limites da atuação institucional que lhe foi constitucionalmente atribuída. Vamos a alguns exemplos concretos de condutas praticadas por seus representantes e que nada tem a ver com a missão reservada ao Ministério Público pelo artigo 129 da Constituição Federal. Ao invés de zelar pelo respeito à Constituição Federal, o Ministério Público Federal patrocinou um projeto de lei intitulado de “10 medidas contra a Corrupção”, que dado o seu conteúdo mais apropriado seria apresentada como “10 medidas contra a Constituição” (sobre o conteúdo sombrio e desmedido de tais “medidas”, recomenda-se o vídeo muito didático de Brenno Tardelli e Igor Leone). A questão, todavia, vai além do conteúdo deste projeto de lei. É extremamente preocupante a naturalidade com que a instituição pretende interferir na atividade legislativa, inclusive mediante ameaças dos integrantes da autointitulada “força-tarefa” de “renunciar coletivamente” caso fosse sancionada uma determinada lei. A instituição também tem se manifestado de modo a interferir na atividade do Supremo Tribunal Federal, ora declarando seu apoio a decisões autoritárias, ora criticando em nota oficial à imprensa decisões que contrariam seus interesses punitivista. Essa postura parece ser reflexo da conduta do próprio Procurador Geral da República, que se propõe a “depurar o processo político”, como se a instituição pairasse acima dos demais poderes da República. Da mesma forma, causa estranheza e incômodo ao regime democrático a aproximação de procuradores e juízes, em detrimento ao necessário distanciamento de acusação e defesa como pressuposto de julgamentos justos. Nesse sentido, lamenta-se a encenação de vídeos em que membros do Ministério Público Federal se apresentam como se trabalhassem em conjunto e tivessem os mesmos interesses do próprio juiz, da mesma forma que é triste notar a existência de uma associação formalizada e oficial entre juízes e promotores/procuradores ? Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público (Frentas) ?, cuja própria existência denuncia a falência do sistema acusatório. Uso do “santo nome” da Criminologia Crítica Fiz questão de ilustrar as linhas acima com muitos exemplos concretos, condutas efetivamente praticadas, fatos de conhecimento público. Agora, é necessário um pouco de teoria para denunciar a sua heresia. Pois, ao invocar o “santo nome” (sic) da Criminologia Crítica para fundamentar seus ideais punitivistas, outro caminho não lhe poderia ser reservado senão as chamas teóricas da santa inquisição das ciências criminais. Já nas linhas finais de seu artigo, confundem-se as “várias vertentes” teóricas que caracterizam a Criminologia Crítica, especialmente a Criminologia Radical, com um ideal punitivista absolutamente contraditório aos princípios destas teorias. A senhora se diz adepta à Criminologia Radical ? “Sou mais simpática à Criminologia Radical (de Dario Melossi, Massimo Pavarini e Michel Foucault), mais próxima do marxismo” ? e reconhece em Juarez Cirino o pioneiro no país dos estudos nessa linha para, em seguida, clamar: “então, por favor, não usem o ‘santo nome’ da Criminologia Crítica para defender criminosos de colarinho branco”. Sobre Michel Foucalt, é importante destacar que parte da noção de guerra civil como “cerne de todas as análises dos sistemas penais”, tratando-se de um “estado permanente a partir do qual é possível e é preciso compreender diversas dessas táticas de luta, entre as quais os sistemas penais são precisamente um exemplo privilegiado”. Assim, a origem do sistema penal dos nossos tempos seria “a guerra social, não a guerra de todos contra todos, mas a guerra dos ricos contra os pobres, dos proprietários contra aqueles que não possuem nada, dos patrões contra os proletários” ([8]) Talvez o que tenha passado despercebido é que a complexidade da luta pelo poder nos dias de hoje e todas as estratégias do poder em nossa sociedade atual não podem ser analisadas apenas por um trecho pinçado da obra que inaugurou o estudo da Criminologia Radical no país, de autoria do mestre de todos nós. Um mínimo de honestidade intelectual deveria pressupor a busca das ideias atuais de Juarez Cirino, especialmente diante da existência de manifestações públicas, acessíveis a todos (muitas delas publicadas, inclusive, nesse mesmo site) e específicas sobre o novo cenário da luta de classes e os desdobramentos da Operação Lava Jato. Eis uma lição emblemática: “A luta de classes no processo político brasileiro apresenta características inéditas na história do capitalismo. Como sempre, e mais ainda nas sociedades neoliberais contemporâneas, as classes hegemônicas – as elites de poder econômico e político – dominam o Poder Legislativo, integrado por maiorias de parlamentares conservadores; igualmente, a maioria dos membros do Poder Judiciário (Juízes, Desembargadores e Ministros) são provenientes das classes sociais médias e altas da sociedade (como indicam todas as pesquisas empíricas realizadas) e, em correspondência com sua origem social, ostentam posições ideológicas conservadoras. Mas, no âmbito do Poder Executivo, o caso brasileiro constitui notável exceção: a Presidência da República não é exercida pelas classes dominantes desde 2002 – ou seja, nos Governos Lula (2002 a 2010) e Dilma (2010 em diante). Como se sabe, esse jejum político é insuportável para os grupos agroindustriais e vídeo-financeiros nacionais e internacionais, alijados do poder responsável pelas decisões econômicas e políticas do País. Então, o que fazer?” (CIRINO, Juarez). Em todas as suas recentes manifestações, a crítica de Juarez Cirino sobre as arbitrariedades praticadas em nome de uma apuração supostamente eficiente dos crimes de corrupção é contundente denunciando a postura dos “ideólogos da repressão [que] insistem em falar de impunidade, como se penas criminais pudessem resolver problemas sociais”. Sobre a manipulação dos conceitos de crime organizado e corrupção como fraude para intrometer-se na atividade econômica, é o ensinamento de Eugenio Raul Zaffaroni: “Tanto o crime organizado como a corrupção são funcionais para habilitar o poder punitivo e a intromissão do Estado em qualquer atividade econômica incomoda ao governo de plantão ou que seja útil para eliminar ou difamar os competidores, sem os limites nem as garantias constitucionais para tais intervenções. ademais, a campanha contra a corrupção parece estar mais preocupada em evitar maiores custos aos investidores estrangeiros em países periféricos do que nos princípios éticos que são enunciados ou nos danos estruturais que causam às economias locais”[9]. Ainda sobre “santidade”, vale destacar, a título de conclusão, outra passagem bem peculiar de seu texto: “Eu nunca disse que o Moro era santo e minha vibração sempre foi com a investigação, não com o juiz da Vara Federal de Curitiba.” A verdade é que nunca se pretendeu juízes santos, mas imparciais; não se quer juízes heróis, mas que cumpram as normas constitucionais e legais. É um grande equívoco crer (pior ainda quando crentes são os próprios magistrados) na santidade e no heroísmo dos juízes. Da mesma forma, é impossível “vibrar” com as práticas autoritárias da chamada Operação Lava Jato ao mesmo tempo em que se diz simpática à Criminologia Radical. São coisas totalmente incompatíveis. Como reflexão final, pense bem: quem foram os grandes beneficiários desse processo penal de exceção dos últimos anos? Basta perceber a influência do poder econômico, do capital financeiro, do sistema midiático, das classes sociais hegemônicas, na condução de todos os acontecimentos que gravitam torno da Operação Lava Jato. Seja nas políticas sociais implementadas pelo governo nacional ilegítimo, quer a partir do desmonte do setor produtivo nacional seguido da retomada das privatizações, duvido que possa encontrar uma resposta à questão acima que não passe pelo favorecimento de interesses neoliberais e imperialistas.[10]. Entretanto, o desfecho do texto apresentado pela senhora, bem ali na última frase, conclui apenas e tão somente “que o ex-operário Lula há muito não vive mais no andar de baixo“. Não há como ignorar quão confusa se mostra a arquitetura deste seu edifício por meio do qual busca retratar a dicotomia entre os andares de cima e de baixo[11]. Tanto mais lúcida revela-se a premissa de Juarez Cirino, este mesmo citado pela senhora, ao retratar a nova luta de classes brasileira e o incômodo da elite econômica e política (que domina o Poder Legislativo, o Poder Judiciário e a grande mídia) ante um governo popular que ocupou por mais de 13 anos o Poder Executivo nacional[12]. Em todo caso, é muito simbólico que a senhora assuma uma premissa punitivista segundo a qual a solução partiria da extensão da violência estatal arbitrária (tradicional ao andar de baixo) para o pavimento superior, seja lá quais forem os significados desses seus “andares”. Trata-se de uma proposta de universalização do arbítrio, que — certa ou errada (que fique claro: sustente o que quiser, mas não use a Criminologia Radical para defender posições que ela abomina) — jamais se concretizaria, pois o direito penal é irremediavelmente um instrumento seletivo de controle. Nem ao andar de cima, nem ao andar de baixo: o que devemos (justamente a partir dos princípios desta Criminologia Crítica, cujo “santo nome” foi trazido à tona em suas linhas hereges) é desconstruir, implodir, desmoronar ­— jamais fortalecer! — esse edifício projetado como reflexo de uma sociedade estamental, erigido para preservar os benefícios de uma elite que nunca desocupou a casa grande e sustentado pelos alicerces do sistema de justiça criminal como mecanismo de controle social. Com os melhores cumprimentos de um ex-eleitor e os votos sinceros para que reflita sobre o sistema de justiça criminal e as contradições da esquerda punitiva. São Paulo, 25 de abril de 2017, * Fernando Hideo Lacerda é Advogado criminal e Professor de Direito Penal e Processual Penal na Escola Paulista de Direito (EPD), nos cursos de graduação e pós-graduação. Mestre e doutorando em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). ---------------- [1] Em detalhe: “Mesmo assim, nada do que ocorreu se compara às arbitrariedades vividas pelos pobres que enfrentam o sistema penal todos os dias e que não contam com bancas de advogados pagas a peso de ouro. São presos sem julgamento por causa da cor da pele ou da condição social que apodrecem nas masmorras chamadas de presídios. Isso é o “normal” e poucos levantam a voz para reivindicar as garantias desses presos e mostrar que eles são a prova de que não há “Estado de direito” no Brasil”. [2] Sobre as contradições de uma esquerda punitiva, recomendo fortemente: http://emporiododireito.com.br/a-esquerda-punitiva-por-maria-lucia-karam/ [3] “A Lava Jato é seletiva”, “A criminalização da política”, “Sérgio Moro comete arbitrariedades”, “Delator não é confiável”, “Não confiamos na justiça burguesa” e “Somos contra o punitivismo”. [4] Em detalhe: “O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL compromete-se a não oferecer denúncia nem de nenhum modo, ainda que por aditamento ou rerratificação, propor ação penal por fatos contidos no escopo deste acordo em desfavor de qualquer familiar do COLABORADOR que, apresentado por ele ao MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL subscreva o Anexo V e apresente anexos assinados em até 5 (cinco) dias contados da data da respectiva celebração”. [5] Art. 218. Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença. Art. 278. No caso de não-comparecimento do perito, sem justa causa, a autoridade poderá determinar a sua condução. [6] Neste sentido, o eventual leitor deve atentar para o fato de que a autora utiliza o termo “seletividade” de modo ambíguo, desconhecendo ou empregando erroneamente um conceito para construir uma Crítica crítica aos procedimentos por ela defendidos. A seletividade é intrínseca ao Sistema de Justiça Criminal, bastando analisar os dados concernentes à população carcerária. Deste modo, o mesmo não poderia deixar de ocorrer com uma Operação que, desde o início, não faz outra coisa que não maximizar o Direito Penal e Processual Penal, aplicando o método inquisitorial de modo evidente, castrando os direitos e garantias do acusado e asfixiando pretensões minimalistas. [7] Das dezenas de envolvidos na investigação, vazaram para os jornalistas os mesmos 16 nomes de políticos _ cinco ministros do atual governo, os presidentes da Câmara e do Senado, cinco senadores, dois ex-presidentes e dois ex-ministros. Eles estavam nas manchetes dos telejornais, das rádios, dos portais de internet e nas páginas da Folha e dos seus concorrentes _”O Estado de S. Paulo”, “O Globo” e “Valor”. Por que tanta coincidência? A ombudsman apurou que a divulgação da chamada segunda lista de Janot se deu por meio do que, no mundo jornalístico, se convencionou chamar de “entrevista coletiva em off”. [8] FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva. Martins Fontes, 2015 p. 13 [9] Zaffaroni, Eugenio Raul – O inimigo no Direito Penal, 2007 [10] Nem é preciso recorrer às revelações sombrias de Julian Assange e Edward Snowden, embora seja de grande valia para compreender o jogo em escala mundial. [11] Como crítica, que não guarda relação direta com as questões aqui tratadas, basta perceber quantos foram aqueles que ascenderam do subsolo da miséria galgando alguns degraus em direção a andares mais dignos durante o governo do presidente Lula, um “incômodo” muito bem retratado no belo filme Que horas ela volta? [12] A luta de classes no processo político brasileiro apresenta características inéditas na história do capitalismo. Como sempre, e mais ainda nas sociedades neoliberais contemporâneas, as classes hegemônicas – as elites de poder econômico e político – dominam o Poder Legislativo, integrado por maiorias de parlamentares conservadores; igualmente, a maioria dos membros do Poder Judiciário (Juízes, Desembargadores e Ministros) são provenientes das classes sociais médias e altas da sociedade (como indicam todas as pesquisas empíricas realizadas) e, em correspondência com sua origem social, ostentam posições ideológicas conservadoras. Mas, no âmbito do Poder Executivo, o caso brasileiro constitui notável exceção: a Presidência da República não é exercida pelas classes dominantes desde 2002 – ou seja, nos Governos Lula (2002 a 2010) e Dilma (2010 em diante). Como se sabe, esse jejum político é insuportável para os grupos agroindustriais e vídeo-financeiros nacionais e internacionais, alijados do poder responsável pelas decisões econômicas e políticas do País. Então, o que fazer? (http://justificando.cartacapital.com.br/2016/03/13/a-conexao-lava-jatomeios-de-comunicacao-um-novo-cenario-de-luta-de-classes/) Foto: Agência Brasil