“Casa das Mães”: como vivem as adolescentes que criam seus filhos em privação de liberdade

As mulheres representam apenas 4% dos adolescentes detidos em todo o Estado de São Paulo. A porcentagem representa 388 meninas de 12 a 21 anos em privação de liberdade e, segundo a Fundação Casa, apenas 13 delas foram detidas durante a gravidez

Foto: Mariana Gonzalez
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As mulheres representam apenas 4% dos adolescentes detidos em todo o estado de São Paulo. A porcentagem representa 388 meninas de 12 a 21 anos em privação de liberdade e, segundo a Fundação Casa, apenas 13 delas foram detidas durante a gravidez — um número bastante questionável, se considerarmos as 645 cidades paulistas. Fato é que, além de privar da liberdade adolescentes prestes a dar à luz, o sistema interna também as crianças, que são encaminhadas junto com as mães para o Programa de Acompanhamento Materno-Infantil (PAMI) e lá permanecem durante todo o tempo da pena, que pode chegar a três anos Por Mariana Gonzalez À primeira vista, o lugar parece uma casa comum, que abriga 13 adolescentes e seus filhos — três deles ainda na barriga. Berços, estante de brinquedos, cozinha comunitária e parede decorada com a imagem de personagens infantis, como o Mickey Mouse e o Pica-Pau, tornam o ambiente agradável aos olhos. Mas basta mirar as grades que cercam a entrada para lembrar que a “Casa das Mães”, como é conhecido o PAMI,  fica dentro da unidade Chiquinha Gonzaga da Fundação Casa, no bairro da Mooca, zona leste da capital paulista. As mães estão em conflito com a lei e as crianças, por consequência, vivem seus primeiros anos do lado de dentro das grades, longe da família, aos cuidados de um grupo de adolescentes e de duas ou três funcionárias da unidade. [caption id="attachment_92161" align="aligncenter" width="878"]Foto: Mariana Gonzalez Foto: Mariana Gonzalez[/caption] Quando a reportagem da Fórum visitou a Casa das Mães, conheceu as adolescentes Juliana*, Paloma* e Laura*. Elas relataram uma rotina cheia de responsabilidades, a solidão na hora do parto, a saudade da família e as dificuldades de criar os filhos sem contato com experiências comuns às outras crianças, como tomar sorvete ou interagir com animais. Para o diretor da unidade, Ezeílton Rodrigues Santana, porém, a maior dificuldade à frente do PAMI é lidar com o “universo feminino”, que ele descreve, em tom de brincadeira, como intenso e carregado de hormônios. [caption id="attachment_92158" align="aligncenter" width="834"]Foto: Mariana Gonzalez Foto: Mariana Gonzalez[/caption] Dentro das grades Na Casa das Mães, cabe às adolescentes tudo o que diz respeito ao bem-estar das nove crianças — que têm entre 30 dias e um ano e quatro meses. Elas preparam as refeições, dão banho nos filhos, limpam os dormitórios e lavam as roupinhas, que chegam por meio de doações. A família acompanha de longe: só pode fazer visitas aos domingos e está proibida de deixar roupas ou brinquedos para as mães e para as crianças. “Essa é a pior parte. Sair do hospital e trazer meu filho para cá, para longe da minha família, foi o momento mais difícil desde que eu fui presa”, conta Juliana*, que tem 17 anos e foi levada para o PAMI há dois anos, meses antes de dar à luz ao filho Wendrel. O sentimento é compartilhado por Paloma*, que tem 18 anos e é mãe do Lucas, de três meses. Ela conta que os primeiros dias após o parto foram os piores: “É horrível sair do hospital e voltar pra cá sozinha, sem a família e com um filho nos braços. Quando eu pensava em criar meu filho aqui dentro, preso comigo, eu chorava bastante. Só não fiquei deprimida por causa do Lucas. Eu começava a brincar com ele e me distraía. É assim até hoje”. A principal queixa das adolescentes é a proibição da presença da mãe ou outro parente na hora do parto. No hospital, elas são acompanhadas por uma funcionária da Fundação Casa e a família é avisada por telefone quando a criança nasce. Questionado sobre a medida, o diretor da unidade Chiquinha Gonzaga é direto: “Trata-se de uma questão de segurança. Afinal, elas cometeram um ato infracional e estão aqui cumprindo a sentença de um juiz”. No PAMI, as famílias costumam marcar presença nas visitas semanais - diferentemente das unidades de internação comuns, onde o abandono familiar é mais frequente entre as mulheres, explica o diretor. A maioria das visitantes, porém, são mães, irmãs, tias e outras mulheres - poucos homens se deslocam para visitar as meninas internadas na Fundação Casa. Paloma* conta que recebeu a visita do pai apenas uma vez, quando ainda estava grávida de Lucas: “Minha mãe vem sempre, todo domingo. Mas meu pai não veio mais por causa da revista na entrada, ele não gosta muito”. [caption id="attachment_92162" align="aligncenter" width="828"]Foto: Mariana Gonzalez Foto: Mariana Gonzalez[/caption] Vânia Alves dos Santos, chefe do setor psicossocial, explica que há uma dificuldade ainda maior em relação às famílias que vivem no interior — como a unidade Chiquinha Gonzaga é a única no Estado de São Paulo capaz de acolher mães e crianças, algumas adolescentes são transferidas de cidades localizadas a horas de distância da capital, o que contribui para afastar ainda mais a adolescente da família, que é fundamental no processo de ressocialização tanto da mãe quanto da criança. Fora das grades As jovens atendidas pelo PAMI estão inseridas em três situações de vulnerabilidade simultâneas: elas estão na adolescência - que Vânia define como “um período de conflitos por si só” — estão grávidas e estão em privação de liberdade. Justamente por isso, o primeiro passo do serviço psicossocial é fazer com que elas entendam esse contexto: “A maioria das meninas chega aqui com uma gravidez não planejada e não desejada. Nosso primeiro desafio é justamente fazer com que elas se apropriem dessa condição de mães e entendam que, daqui para frente, elas são responsáveis por um ser completamente dependente”, explica Vânia. Laura*, que é uma das mães mais recentes da unidade Chiquinha Gonzaga - ela tem 18 anos e teve a filha Evelyn há pouco mais de um mês — narra que, apesar de ter cuidado dos três irmãos mais novos, lidar com o próprio filho é completamente diferente: “Os cuidados são outros e cada dia eu aprendo uma coisa nova”.
“Eu acompanho de perto o crescimento do meu filho. Vi nascer o primeiro dentinho, vi ele balbuciar as primeiras palavras, começar a rolar no chão. Sou muito mais próxima do Wendrel que muita mãe lá fora”, conta Juliana*.
[caption id="attachment_92160" align="aligncenter" width="854"]Juliana* conta como é a vida, depois de ter sido presa. - Foto: Mariana Gonzalez Juliana* conta como é a vida, depois de ter sido presa. - Foto: Mariana Gonzalez[/caption] Por outro lado, é unânime entre as três adolescentes que o PAMI não é o lugar ideal para os primeiros anos de desenvolvimento da criança. Para Laura*, as crianças sentem a energia da Casa das Mães desde a barriga: “Todo o stress que as meninas vivem aqui acaba sendo passado para os filhos. Elas sentem toda essa vibração negativa que a gente vive”. “Às vezes bate uma bad vibe total e o Wendrel percebe tudo. Ele senta do meu lado e fica quietinho junto comigo, sem vontade de brincar”, conta Juliana*. É fato: a rotina na Casa das Mães favorece o fortalecimento do vínculo entre as adolescentes e seus filhos, mas afasta as crianças de experiências essenciais para o desenvolvimento durante a primeira infância. Quem explica isso é a psicóloga Vânia, chefe do setor psicossocial da unidade: “A criança nasce e se desenvolve inserida em um contexto institucional, que não é o natural. Eles ficam dentro dessa estrutura, sem contato com o mundo externo e, por isso, têm um nível limitado de estimulação”. Laura* completa: “Viver aqui dentro é ainda mais difícil para eles do que para nós”. Como o filho Wendrel vai reagir ao “mundo lá fora” é uma pergunta que inquieta Juliana*. “Eu acho que ele vai estranhar as pessoas e os lugares. Da minha família, ele só conhece a minha mãe, mas ele vai conhecer meu avós, irmãos e primos”. Dentre outras experiências que serão novidade para o menino de 1 ano e quatro meses, ela lista atravessar a rua e comer morangos - “será que ele ia gostar de morangos? ”, questiona. Das coisas que Juliana* mais sente falta, beber água em “um belo copo de vidro” figura no topo da lista.   Fotos: Mariana Gonzalez