Chile, o país da desigualdade visível

“Estamos presos nos números e pouco voltamos o olhar para a qualidade de vida”, apontou o antropólogo Mauricio Rojas

Assim como o dinheiro está longe de ser a única resposta para o bem-estar humano, a diferença de salários não basta para explicar a desigualdade (Reprodução)
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“Estamos presos nos números e pouco voltamos o olhar para a qualidade de vida”, apontou o antropólogo Mauricio Rojas Por Marianela Jarroud, da Envolverde/IPS É manhã de sexta-feira, e Carlos, executivo de uma empresa imobiliária da capital chilena, se levanta sabendo que, como toda véspera de fim de semana, sairá mais cedo do trabalho e viajará para a costa do Oceano Pacífico junto com sua mulher e as três filhas. Na mesma hora, do outro lado de Santiago, Pablo, terceiro de quatro filhos de uma família camponesa agora na cidade, está desde o amanhecer carregando e descarregando reses em um frigorífico onde deve cumprir nove horas diárias. Carlos ganha, em média, o equivalente a US$ 6 mil por mês, quase 17 vezes mais do que o salário mínimo recebido por Pablo, de US$ 364. Ambos são cidadãos do Chile, país sul-americano há décadas chamado de o “milagre latino-americano”, pela pujança de sua economia e pela redução da pobreza, mas onde a brecha entre ricos e pobres continua sendo uma das mais amplas da América Latina, que, por sua vez, é a região mais desigual do mundo. Isso explica o motivo de o governo do presidente Sebastián Piñera ter comemorado os dados sofre a renda de ricos e pobres, divulgadas no dia 24 de julho na Pesquisa de Caracterização Socioeconômica Nacional (Casen). Os dados mostram que a diferença entre o que recebem os setores mais ricos e os mais pobres diminuiu de 46 vezes, em 2009, para 35, em 2011. Se a isso forem acrescentadas as ajudas estatais, como bônus e subsídios para os mais vulneráveis, “esta desigualdade diminui: em 2009 era 25 vezes a diferença, e em 2011 caiu para 22 vezes”, detalhou Piñera. [caption id="attachment_18115" align="alignright" width="424" caption="Assim como o dinheiro está longe de ser a única resposta para o bem-estar humano, a diferença de salários não basta para explicar a desigualdade (Reprodução)"][/caption] . Carlos vive em uma ampla casa com cinco dormitórios e três banheiros na abastada localidade de Las Condes, no leste de Santiago. Pablo mora em uma pequena casa em Lo Prado, no oeste da capital. Em dois ambientes construídos e outros dois pré-fabricados com madeira e alguns materiais isolantes, se amontoam ele, sua mãe, uma irmã mais nova, sua mulher e seus dois filhos, de um quatro anos de idade. Nestes dias de inverno a família se aquece com braseiros improvisados, a maneira mais econômica de evitar o frio, mas também perigosa pelos frequentes incêndios que provoca. O produto interno bruto do Chile cresceu mais de 20% entre 2006 e 2011, a pobreza afeta 14,4% de seus 17 milhões de habitantes e a indigência atinge 2,8%, segundo a Casen, principal instrumento de medição para o projeto e a avaliação da política social do país. Mas, à alegria oficial, opõem-se vozes qualificadas. “A Casen perdeu toda credibilidade quanto à medição da pobreza e da desigualdade. É uma pesquisa que utiliza parâmetros que não condizem com o Chile de hoje, por isso é um exercício estatístico com base em certas suposições que, na realidade, pouco diz sobre os níveis de pobreza e desigualdade que existem”, explicou à IPS a economista Gloria Maira. A linha de indigência e de pobreza da Casen é determinada pelo valor da Cesta Básica de Alimentos, equivalente a US$ 146, que determina uma medição unidimensional, pois não contempla outras necessidades como saúde, moradia, educação ou transporte. Além disso, o sistema de avaliação utiliza padrões de consumo de 1987, defasados da realidade atual. Segundo Maira, se fossem adotados os parâmetros de hoje, a pobreza aumentaria consideravelmente, um custo político que nenhum governo quer assumir. Uma “sinceridade” desses parâmetros dispararia as cifras de pobreza e desigualdade, observou. “Estamos presos nos números e pouco voltamos o olhar para a qualidade de vida”, apontou o antropólogo Mauricio Rojas. É necessário considerar as possibilidades de as pessoas viverem com dignidade, acrescentou. Antes de chegar ao seu escritório, Carlos tem tempo de levar as filhas ao colégio privado, que cobra mensalidade de US$ 500. Como trabalha desde quase a madrugada, Pablo não pode se dar o luxo de acompanhar os filhos até a creche, controlada pela Junta Nacional de Jardins de Infância, onde as crianças permanecem das oito da manhã até quatro da tarde e recebem leite, almoço e merenda gratuitamente. Semelhante cobertura de ensino soa como algo louvável. Mas na educação fragmentada em três sistemas – um público descentralizado, um particular subsidiado e outro privado e pago – está uma das raízes da desigualdade chilena. A Constituição não consagra o direito à educação, e o sistema de ensino é regido pelo princípio do lucro. Além disso, nem mesmo as universidades públicas são gratuitas neste país. “Onde se reflete a pobreza é no acesso a educação, saúde, previdência, que deveriam ser os papéis essenciais do Estado”, explicou Rojas. Carlos é usuário de uma instituição de saúde do sistema privado criado em 1981 pela ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990). Com o pagamento de uma importante quantia, ele e sua família podem ter acesso às melhores clínicas e aos melhores médicos. Pablo, graças ao seu trabalho, é usuário do estatal Fundo Nacional de Saúde, que opera principalmente com hospitais e consultórios públicos, onde o atendimento é lento e precário. Quando é preciso ir ao hospital “é triste e humilhante. Temos que esperar horas pelo atendimento, mesmo quando se trata de um dos meus filhos, que são pequenos. Quando finalmente somos atendidos, apenas explicam o que seu filho tem, tratam mal e mandam para casa. Poucos dias depois é preciso voltar, porque seu filho está pior. É assim todos os invernos”, contou PabloSua família sofre a crise sanitária que, sobretudo no inverno, ataca os mais pobres. A grande contaminação atmosférica de Santiago, cidade cercada por montanhas, se combina com o frio e gera uma explosão de doenças respiratórias: 4.200 pessoas morrem por ano devido à poluição do ar da capital chilena. A sociedade de consumo não é capaz de atender essas necessidades das pessoas. Contudo, há uma tolerância social com a desigualdade, descreveu Rojas. Em sua opinião, “existe uma sociedade de consumo que tem sucesso, que causa uma certa miragem de integração social por meio dos objetos, e que esconde os verdadeiros direitos sociais que estão restringidos”, afirmou. Em horas diferentes, Carlos e Pablo encerram suas jornadas de trabalho. Ao cair do Sol, Pablo volta para casa no lotado transporte público Transantiago. Carlos já desfruta de um vinho tinto na sacada de seu apartamento com vista para o mar.