Chile vive clima de revolta e repressão há dias do plebiscito que pode enterrar constituição de Pinochet

Referendo marcado para o dia 25 de outubro pode ser a grande conquista da revolta social do país contra o modelo neoliberal instalado pela ditadura. Série de protestos também comemora um ano neste fim de semana

Foto: Susana Hidalgo
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O Chile viverá nos próximos 10 dias um dos momentos mais decisivos de sua história. A ditadura do general Augusto Pinochet, iniciada com o bombardeiro ao Palácio de La Moneda, em 1973, terminou há 30 anos, em março de 1990, mas o modelo neoliberal imposto no país durante o regime continuou vigente, através da constituição também imposta, em 1980.

É essa constituição que estará em xeque no dia 25 de outubro, quando o país realizará um plebiscito que decidirá sobre a abertura ou não de um novo processo constituinte. Se trata da que, até agora, é a principal vitória das revoltas sociais iniciadas no país há um ano: em outubro de 2019, milhões de pessoas foram as ruas exigir o fim do modelo neoliberal, e obrigaram o governo a colocar a vigência da atual carta magna em votação.

A expectativa com esta data histórica vem fazendo as ruas do país se movimentarem de novo. O último evento massivo no país, antes da pandemia do coronavírus, mostrou a força do movimento popular, e especialmente do Movimento Feminista, um dos mais articulados do país: foi no dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, que chegou a ter quase 3 milhões de chilenas nas ruas.

Desde então, o coronavírus conseguiu esvaziar as ruas e dar descanso para o questionado governo do presidente Sebastián Piñera. O próprio plebiscito, cuja data inicial era o dia 26 de abril, teve que ser adiado por 6 meses.

Após o governo chileno levantar as medidas de isolamento na maioria das cidades, em meados de setembro, os movimentos sociais começaram a voltar as ruas. E a força policial e militar também.

As marchas observadas no país desde o final do mês passado estão longe de ter a massividade observada em 2019, situação compreensível já que o país ainda vive algum resquício da pandemia – o Chile chegou a ter 6 mil casos e 200 mortes diárias em média, entre maio e junho, mas ultimamente conseguiu baixar esses índices a menos de mil casos e menos de 50 mortes por dia nas últimas semanas.

Se espera que o panorama mude neste domingo (18), pois está convocada o que os movimentos esperam que seja uma grande manifestação, para comemorar o aniversário de um ano da primeira grande jornada de protestos da revolta social de 2019.

Mas a violência com que o governo reage contra essas novas manifestações são iguais ou piores que as do ano passado. Além comprar novos carros lançadores de jatos d’água e de gases lacrimogêneos, o presidente Sebastián Piñera voltou a instaurar um regime de toque de recolher entre as 22h e as 7h, e que ficará vigente ao menos até dezembro. Ou seja, o plebiscito sobre o fim ou não da constituição da ditadura ocorrerá sob restrição tipicamente ditatorial.

Além disso, a violência policial também voltou a ser tema desde o episódio no qual policiais atiraram um estudante de uma ponte, no dia 2 de outubro. Tal situação fez com que a oposição a Piñera pedisse a demissão do ministro do Interior Víctor Pérez (responsável pela política de segurança pública) e do general Mario Rozas, diretor-geral dos Carabineros (polícia militarizada chilena).

Ademais, os movimentos sociais reforçaram a demanda por uma refundação das polícias no Chile como tema prioritário do novo processo constituinte.

Outro problema que se observa no plebiscito foi ressaltado pela deputada Gael Yeomans, presidenta do partido Convergência Social, o mais à esquerda da Frente Ampla chilena. Segundo ela a repressão só é observada nas manifestações dos grupos que defendem o “aprovo”. Nas marchas dos apoiadores do “rechaço” a polícia atua quase como guarda-costas dos mobilizados.

“Tanto é assim que tivemos casos de atividades favoráveis ao ‘aprovo’ que foram atacadas por grupos de ultradireita, e alguns desses depois correram e foram se proteger atrás de tropas ou veículos policiais. Há registros em vídeo dessas situações que já foram encaminhadas aos órgãos de fiscalização do Estado para investigação, embora sabemos que isso muitas vezes termine dando em nada”, comentou a parlamentar.

Como funcionará o plebiscito

No plebiscito haverá duas perguntas: a primeira é sobre se aprovar ou rechaçar a instalação de um processo para realizar uma nova constituição. Os partidários de “rechaçar” a ideia defendem o slogan “rechaçar para reformar”, reconhecendo que a constituição da ditadura é ruim, mas afirmando que não deve ser jogada toda fora.

Segundo pesquisa do instituto Pulso Ciudadano, publicada no último fim de semana, 84,8% das pessoas prefere a opção “aprovo”, ou seja, enterrar de vez o último legado do ditador e fazer uma constituição nova. Os defensores do “rechaço” seriam 15,2%.

Esse favoritismo não surpreende, tanto que a segunda pergunta do plebiscito já conta com esse resultado, pois questiona qual a fórmula com a que se deve realizar a nova constituição. As opções são: Convenção Constitucional, na que todos os 155 representantes serão eleitos exclusivamente para a constituinte, e Convenção Mista, na que metade será de representantes exclusivos e a outra metade será de parlamentares atuais (deputados e senadores com mandato vigente).

Nesse caso, a pesquisa do Pulso Ciudadano aponta que 77,7% dos eleitores diz preferir a opção Convenção Constitucional, que é o mais parecido a uma assembleia constituinte – uma das bandeiras das marchas multitudinárias de 2019. Os partidários da Convenção Mista são 22,3%.

Vale ressaltar também que o Congresso do Chile aprovou, em março deste ano, uma lei que obriga o processo constituinte a ter igualdade de gênero – ou seja, metade das pessoas eleitas terão que ser mulheres.

Caso isso aconteça, o Chile será o primeiro país do mundo a ter uma constituição elabora entre homens e mulheres em igualdade de condições.

Porém, embora seja lei, esse cenário ainda não está garantido, já que é preciso que a opção Convenção Constitucional vença para que essa igualdade seja realmente possível. Na Convenção Mista não será possível ter metade de mulheres na constituinte, já que o atual parlamento chileno conta com apenas 15% de presença feminina, e mesmo que todas elas façam parte da convenção mista – o que deixaria o parlamento sem mulheres – só se chegaria a 41% do quórum.

Segundo o escritor e historiador Jorge Baradit, será importante que a vitória seja contundente, e seu temor está especialmente na questão da participação da cidadania no processo – a pesquisa do Pulso Ciudadano indica que apenas 56% das pessoas pretende participar do plebiscito.

“É crucial que a diferença seja o mais parecida possível ao que indicam as pesquisas, e para isso o povo precisa se conscientizar da importância de votar. Os partidários do ‘rechaço’ devem participar em peso, para tentar fazer com que sua minoria seja o mais barulhenta possível, cabe aos defensores do ‘aprovo’ e da convenção constitucional mostrar o tamanho de suas maiorias, até para mostrar que este novo Chile terá que ser construído com participação popular, que esta é a principal marca desse processo que estamos demandando”, afirmou o escritor.