Cinema: animação brasileira retrata um mundo desigual pelo olhar de um menino

Apesar de carregar o tom pesado da crítica política, o filme não é pessimista. Pelo contrário, a inocência e a esperança estão nesse menino, que descobre um mundo complexo

Fonte: Sul21
Escrito en CULTURA el
Apesar de carregar o tom pesado da crítica política, o filme não é pessimista. Pelo contrário, a inocência e a esperança estão nesse menino, que parte com um propósito simples e descobre um mundo complexo Por Débora Fogliatto, em Sul21 [caption id="attachment_39472" align="alignleft" width="300"] Fonte: Sul21[/caption] O Menino e o Mundo é a história de uma criança procurando pelo pai que a abandonou. E é também a história de uma criança que descobre o mundo e, ao tentar seguir o caminho da música e das cores, encontra um jovem e um velho que carregam as tristezas da desigualdade, da repressão policial e da exploração. A animação brasileira do diretor paulista Alê Abreu não segue fórmulas nem partiu de um roteiro pronto. A partir da trilha sonora original de Gustavo Kurlat e Ruben Feffer, o filme é guiado pelos sons e pela imagem, dispensando diálogos. O longa nasceu por acaso. Cerca de três anos atrás, o diretor realizava um documentário de animação sobre a juventude da América Latina a partir das músicas de protestos dos anos 1960 e 1970. Durante esse processo criativo, “surgiu a figura do menino”. “Um menino que não sabia se expressar através da palavra, e que via cores nas notas musicais. Um menino sem lugar nesse mundo de hoje. E onde ele se insere? Isso me tocava muito. Como é que algumas pessoas não têm lugar no mundo? A vontade de segui-lo na ficção foi levando a gente para outra história, e o menino foi tomando esse mundo”, contou Alê Abreu, em entrevista à imprensa após a exibição do filme, nesta sexta-feira (10). [caption id="" align="alignleft" width="391"] Fonte: Sul21[/caption] Sentindo falta do pai, o menino sem nome sai da modesta casa em que mora com a mãe, em busca do trem que o levou embora. Sua melhor recordação  é das notas entoadas pela flauta que o pai tocava, e que levou com ele. Seguindo amigos que encontra pelo caminho, o menino é atraído sempre pela música. Começando pela lembrança  do pai, ela marca a história e acompanha a jornada, representada também por cores. “Esse filme sempre foi música para mim. Desde o começo sabíamos que não teria intermédio da palavra, nem do roteiro escrito”, explicou Alê. Enquanto o colorido do laranja, amarelo e verde marca as coisas positivas, como a banda de protesto que se assemelha a um carnaval peruano e encanta o menino, o preto – ou a ausência de cores – significa a presença da polícia repressora. Em uma trama que vai se mostrando cada vez mais complexa, o menino observa a exploração do trabalho no campo e na fábrica, a maldade de um ditador e o consumismo do mundo capitalista. Criado a partir de um documentário que trata de décadas passadas e passando por críticas ao mundo atual, em certo momento, o filme parece futurista, em uma cidade em formato de pirâmide com favelas na base e arranha-céus no topo. Memória e presente Pesquisando e mergulhando no mundo da América Latina nos anos 1960 e 1970, a partir de músicos como os chilenos Victor Jara e Violeta Parra, Abreu construiu um filme que fala aos dias de hoje com sinceridade e fidelidade. “Toda essa pesquisa foi criando esse contexto social e político onde eu então inseri esse menino”, disse o diretor. [caption id="" align="alignleft" width="368"] Fonte: Sul21[/caption] O filme carrega em si um pouco da memória dos países latino-americanos, o que herdou do documentário que nunca foi completado Canto Latino, que deu origem à animação. “No momento em que você está contaminado por isso e olha para o mundo de hoje, é inevitável que você trace um paralelo da história que nos trouxe aqui, e que de certa forma habita cada um de nós. A gente traz um certo DNA dessa história apaixonante que nossos antepassados viveram”, definiu o diretor. Apesar de carregar o tom pesado da crítica política, o filme não é pessimista. Pelo contrário, a inocência e a esperança estão nesse menino, que parte com um propósito simples e descobre um mundo complexo. “A humanidade é invencível no momento em que se coloca como uma criança sonhadora. E o sonho da criança é invencível porque carrega esperança, e na esperança tudo é possível”, resumiu Abreu. Trilha sonora e realização O filme e sua trilha sonora não podem ser definidos como duas coisas separadas, mas sim como criações que se completam. O longa conta com composições de Emicida — que compôs a canção original Aos Olhos de uma Criança –, GEM-Grupo Experimental de Música, Naná Vasconcelos e Barbatuques. Desses, os dois últimos já faziam parte do documentário que estava sendo desenvolvido pela equipe. E eles também ajudaram o próprio diretor, que não se guiou por roteiros prontos para realizar o filme, a entender a sua obra. “As músicas do Naná sempre me colocaram numa vibração que era a que eu queria construir o meu trabalho. E foi muito emocionante. Tiveram momentos em que eu descobri um pouco sobre o filme através do Naná”, contou Abreu. Todo o processo de realização do filme, desde o início do documentário Canto Latino, durou três anos. Neste período, Abreu e sua equipe descobriram aos poucos a história que queriam contar, “Quando se trabalha assim, a chance de você chegar num muro que não dá em nada é muito grande. Todas as descobertas que o espectador tem ao assistir o filme também aconteceram na feitura do filme”, assumiu. Encontrar financiamento, no entanto, não foi difícil. A produção ganhou os editais do BNDES e da Petrobras, com os quais já arrecadou 70% do pequeno orçamento de R$ 1 milhão e meio. A trajetória do filme deve abrir caminho para outras animações brasileiras, mercado que está em constante crescimento. Alê Abreu, que trabalha no ramo há 25 anos, afirma que durante sua carreira só viu a animação brasileira crescer. Esse é seu segundo longa, cinco anos depois do primeiro, Garoto Cósmico. “As coisas estão acontecendo um passo depois do outro. Percebo que a cada passo, o próximo se beneficia também”, acredita. [caption id="" align="alignleft" width="403"] Fonte: Sul21[/caption] Após ser concluído em agosto de 2013, o filme estreou no Festival Internacional de Animação Ottawa, no Canadá, em setembro. Foi a primeira vez que um longa brasileiro entrou na seleção e conquistou também uma menção honrosa do júri. Seguiu para o Festival Internacional de Havana, em Cuba, onde venceu o prêmio de melhor animação, e para a Mostra Internacional de São Paulo, onde conquistou o Prêmio da Juventude. No Festival Novos Rumos, no Rio de Janeiro, também conseguiu uma menção honrosa, e em março será exibido no New York Int’l Children’s Film Festival (Festival de Filmes para Crianças de Nova York), o mais importante da categoria. O filme chega aos cinemas do Brasil, incluindo Porto Alegre, na próxima sexta-feira (17). Desenhado por Alê Abreu com “tudo o que tinha à disposição”, o longa mistura imagens que parecem saídas de uma pintura aquarela com tomadas extremamente geométricas, passando por traços marcados com giz de cera. O visual é muito simples e muito único, não há um padrão seguido ao longo das cenas. Da mesma forma como a concepção do filme não foi linear, algumas vezes a maneira como o menino alcança seus destinos não é mostrada. Mas isso pouco importa em uma animação que conta, com uma simplicidade paradoxalmente complexa, a trajetória do menino e do mundo em que ele se encontra — e que podem ser qualquer menino nesse mundo que se assemelha tanto com o nosso.