Cinzeiro, cidadão modelo na crise hídrica

Na crônica de Mouzar Benedito, um singular personagem que pode simbolizar um novo padrão em tempos de falta d'água

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Na crônica de Mouzar Benedito, um singular personagem que pode simbolizar um novo padrão em tempos de falta d'água Por Mouzar Benedito “Falta água em casa”, reclama um conhecido. “Em casa falta luz há horas”, repiquei eu. “E se continuar a falta de luz, não há como bombear a água que tem na caixa no subsolo para a que fica no alto do prédio.” A falta de luz foi por causa de uma chuva comum, sem estardalhaço de raios e trovões, mas suficiente para provocar um curto-circuito e explosão de um transformador numa rua vizinha, problema que se tornou comum na região em que moro. A gente conversava sobre a dureza que está sendo viver em São Paulo, torcendo pra chover e, ao mesmo tempo, com medo da chuva que inunda as ruas mas não chega às torneiras. Além disso derruba árvores e fios da rede elétrica pessimamente conservada. Os curtos-circuitos se tornaram comuns na região onde moro, eu mesmo já presenciei a queda de dois deles na rede elétrica da Vila Madalena. Depois de uma sequência de explosões, os fios ficaram pendurados, chegando ao chão, soltando faíscas. Numa dessas vezes, um sujeito que se dizia técnico da Eletropaulo, me dizia que a fiação está toda “podre” e me aconselhava a não caminhar debaixo dos fios. Voltando à conversa com meu conhecido, veio à minha memória um sujeito que poderia ser considerado cidadão modelo, nestes tempos assolados pelo que autoridades chamam de “crise hídrica”. O nome dele, ninguém sabia. O apelido era Cinzeiro, atribuído ao fato de nunca ter tomado um banho, segundo todo mundo que o conhecia. Nunca “desperdiçou” água com isso, nem eletricidade gasta nos banhos de chuveiro. Conheci o Cinzeiro em minha primeira viagem ao Nordeste, em 1969. Sem dinheiro, eu viajava de carona e cheguei ao sul do Ceará. Precisava chegar à cidade do Crato, onde teria pouso garantido e direito a um bom banho, e parei numa praça de Nova Olinda, em frente a um bar, em que, segundo me diziam, parava qualquer carro que ia para o Crato. Fiquei sentado num banco da praça esperando que algum carro parasse em frente ao bar, para pedir carona. Mas o tempo passava e não passava nenhum carro por ali. Foi aí que apareceu um mendigo sujo e amalucado, que se sentou num banco próximo ao meu e de vez em quando se levantava e gritava alguns xingamentos. Logo uns moleques ficaram por perto, olhando curiosos. Foi chegando mais gente, mais gente, e logo havia uma multidão ali, olhando... Pensei: “Quantos curiosos pra ver esse sujeito”... De repente, o mendigo se levantou e foi embora. E a multidão continuou em volta da praça, olhando. Aí percebi que o sujeito era figurinha conhecida ali. Era eu que despertava curiosidade, com uma mochila nas costas, chapéu de couro e a barba amarelada pela poeira que eu já tinha encarado na viagem pela estradinha de terra de Santana do Cariri a Nova Olinda. Como era tempo de ditadura, pensei que logo apareceriam policiais por ali e me pegariam como suspeito de ser “terrorista” ou qualquer coisa do tipo, e me poriam em cana num lugar em que eu não conhecia ninguém. Resolvi me mandar a pé, rumo ao Crato, esperando pegar carona na estrada. Parte da multidão me seguiu até a saída da cidade, me olhando com curiosidade, talvez achando que eu fosse um maluco novo no pedaço. Mas aí já é outra história... Três anos depois, voltei à mesma região e vi de novo o mendigo, em Santana do Cariri. Foi aí que me contaram que o apelido dele era Cinzeiro. Andava de cidade em cidade, e era conhecido em todas as pequenas cidades da região. Mas entre uma viagem minha e a outra, uns gozadores o sacanearam. Um dia, caminhando numa estrada ladeada por canaviais, ele cortou uma cana, tirou a casca de alguns gomos e saiu chupando... Mas foi visto pelo dono daquelas canas e alguns empregados dele. Resolveram dar um susto no Cinzeiro, por brincadeira. “Prenderam” o “ladrão” e o levaram de caminhonete (na carroceira, para não deixar a cabine fedendo) para a delegacia da cidade mais próxima. O delegado entraria na brincadeira. E entrou mesmo. Interrogou o mendigo, que insistia não ter roubado cana: ? Eu tava passando na estrada e escutei uma cana gritar: “me chupa, me chupa”... Parei e atendi ela. Ele não ficaria na cadeia por ter “roubado” uma cana. Mas tinha que ser castigado, decretou o delegado. Foi “condenado” a tomar um banho. Deram nele um banho forçado, o primeiro da sua vida, garantiram. E o coitado ficou doente depois disso, quase morreu. Melhor seria não ter tomado seu único banho. Fico torcendo para que não tenhamos que ir nos acostumando com a ideia de nos inspirarmos no Cinzeiro. Zero banho. Foto: Pixabay