Coca para americano ver

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Tínhamos chegado à região de Chapare na noite anterior, depois de uma viagem de 6 horas num coletivo pior que os que atendem à periferia de São Paulo. Sorte que estávamos acompanhados de Leonilda Zurita, 33 anos, de quem vou falar na próxima edição, mas já antecipo tratar-se daquelas pessoas que a gente conversa e fica arrepiado...

Aquela manhã estava reservada para entrevistar os líderes do pequeno Vilarejo de Eterazama, em Chapare, região de 25,5 mil quilômetros quadrados onde vivem aproximadamente 300 mil indígenas bolivianos que sobrevivem do cultivo e da comercialização da folha de coca. Conversávamos com Nicolas Rodrigues, secretário geral do sindicato local, quando irrompeu na sala um garoto: “Estão pedindo pros jornalistas irem a Rio Alto. Tem conflito lá”. Alugamos um táxi e fomos. Foram 15 minutos de ansiedade. Ao chegar ao local, cerca de cinqüenta indígenas com roupas rasgadas, pés descalços e aparência de fome nos cercaram. Falavam todos ao mesmo tempo. Contavam o que havia ocorrido. O conflito já havia acabado. Era o segundo dia do governo de Gonzalo Sánchez de Lozada (Goni), que havia derrotado num segundo turno de eleição indireta o líder cocalero Evo Morales (veja entrevista à pág. 17), um quase mito local. A partir da história desse conflito foi possível entender melhor o que se passa na Bolívia em relação à plantação de coca, ao narcotráfico, à miséria e à dominação norte-americana, entre outras coisas.

No dia seguinte
Ainda no fim da tarde do mesmo dia estivemos com o defensor do povo da região, Godofredo Reinicke Borda. A defensoria é um órgão independente e de alta credibilidade. Atua para impedir que o cidadão seja desrespeitado nos seus direitos humanos e nas relações com o Estado. Borda nos informou que na região existem 650 sindicatos, cada qual com 60 a 150 famílias filiadas. Que as famílias têm necessidade de produzir a coca para sobreviver e por essa razão são tão organizadas.

Apontou que a lei 1.008, que dá ao Estado o direito de combater a plantação de coca, tem aspectos anticonstitucionais e que não existe o tal desenvolvimento alternativo financiado pelos EUA. Pelo projeto de desenvolvimento alternativo os habitantes locais receberiam financiamentos e condições para substituir o cultivo de coca por outras culturas como palmito, laranja e abacaxi. Mas, dos 160 a 220 milhões de dólares ao ano enviados pelos EUA para o país, 70% são destinados à guerra.

São muitas as revelações do Defensor do Povo, mas uma coisa ele não conseguiu explicar naquele fim de tarde: por que os militares atacaram em Rio Alto, após 48 horas da eleição do novo presidente e depois do novo ministro da Justiça anunciar que iria desmilitarizar a região?

A resposta estava estampada em todos os jornais do dia seguinte. As capas mostravam homens fortes de passa-montanha (máscara preta com abertura apenas nos olhos) atacando militares. Completamente diferentes dos indígenas famélicos que entrevistamos (veja depoimentos à pág. 16). E ao mesmo tempo o novo ministro da Justiça anunciava: “não é possível desmilitarizar o Chapare, a situação ainda é muito tensa por lá”. A população havia sido atacada para justificar a operação de guerra montada no local e para que a intervenção norte-americana pudesse prosseguir. Para que a ação mentirosa de combate ao narcotráfico pudesse continuar sendo uma cortina de fumaça para esconder outros interesses.

Coca não é cocaínaNa região do Chapare o principal distrito é o de Vila Tunari. Para o padrão local tem razoável qualidade de vida. Estudo realizado nas escolas da região com 220 crianças revelou que 87% delas tinham parasitas e, 30%, anemia. Os filhos daqueles indígenas atacados pelos militares têm, com certeza, ainda menos saúde que os pesquisados. O principal motivo dessa tragédia é a falta de renda, e muito se deve ao combate ao cultivo da folha de coca. É verdade que é dela que se produz a pasta de coca. E que depois é refinada em laboratório num processo químico e vira a demolidora cocaína. Mas o que se diz é que é da mesma coca que se produziu o extrato que tornou a Coca-Cola um refrigerante tão popular. E a Coca-Cola não é droga.

Da folha de coca também se produz um chá, como da folha de boldo ou da erva-mate. Esse chá é consumido livremente e tradicionalmente na Bolívia. Como também é habitual o indígena mascar a folha. O cidadão boliviano consome coca como o paulista bebe café, o gaúcho chimarrão ou o morador de Mato Grosso do Sul relaxa com o tereré. “A coca nos dá um alento espiritual para trabalhar. Por conta de nossa pobreza ela substitui a verdura”, tenta explicar Marcos Fernandes, morador da região. A folha de coca, como a cocaína, tira a fome, dá a sensação de saciedade. E tem proteínas. Ou seja, no popular, “sustenta”. Além disso, é associada a muitas tradições populares e indígenas. Quando dois jovens decidem se casar, a mãe do pretendente vai com uma folha de coca pedir a mão da moça para o pai. Também se lê a sorte na folha de coca.

Na Bolívia, segundo o jornalista mexicano Luis Gomez, que trabalha para o sítio narconews.com, até existe produção de pasta de coca, mas os indígenas não têm relação com esse processo. Ele suspeita que boa parte da produção de pasta de coca seja controlada por gente diretamente ligada às Forças Armadas do país e mesmo que trabalha para o Estado. “Principalmente da Força Naval. E por incrível que pareça a Lei 1008 (antitóxico – já citada pelo Defensor do Povo) penaliza a planta e a coca em pó, não a pasta.” Luis Gomez vive há cinco anos na Bolívia e é um especialista no tema. Diz que há registrado apenas um único caso de laboratório de refino de coca na Bolívia. Ele levanta uma questão apontada por todos aqueles que discutem seriamente a questão do narcotráfico. “Há 5 bilhões de dólares no sistema financeiro dos EUA, segundo a própria ONU, que são oriundos do narcotráfico. Isso o governo gringo não combate”, provoca.

Qual é a dos EUA na Bolívia?A questão acima não deve ser respondida com generalizações e simplismo, mas, de certa forma, pelo mesmo motivo que os EUA buscam a guerra contra o Iraque, atacaram o Afeganistão recentemente. No conflito que presenciamos, as bombas e armas usadas eram em sua grande maioria norte-americanas. Para ter uma idéia de como a lógica de combate à coca é irracional, hoje se gastam na Bolívia só com refeição dos militares 15 mil dólares por dia. Com esse valor pode-se construir uma escola diariamente na região do Chapare. Além disso, gastam-se 150 mil dólares extras de salários, sem contar logística, helicópteros etc. Em cada disparo, na média, se desperdiçam 20 dólares. O cálculo é que 1 milhão de dólares/mês, só no Chapare, é gasto com o combate a alguns pés de coca. “Em tudo que envolve a droga, gastaram-se 220 milhões de dólares no ano passado”, sustenta o Defensor do Povo. Em suma, o governo norte-americano precisa de guerras, seja contra o que e quem for, para justificar investimentos na indústria bélica.

Por outro lado, o Chapare é uma das zonas de maior biodiversidade da terra e também uma das mais ricas em reservas minerais e gás da Bolívia. Há ainda estudos de que há muito petróleo no Chapare. Mas, segundo o jornalista Luis Gomez, dominar territorialmente essa região andina é muito importante do ponto de vista geopolítico para os EUA. “O nascedouro de todos os principais rios da Amazônia está na cordilheira e 2/3 da água doce do mundo encontram-se ali”, revela. Como se sabe, a água em pouco mais de uma década deve ser um bem natural mais valioso que o petróleo. Por isso, os EUA já trabalham com o objetivo de ter presença na região.

O prefeito de Vila Tunari, Felipe Cáceres Garcia, faz coro às acusações. Diz que há um poço de petróleo fechado em São Mateus, a 6 quilômetros do centro de Chimoré, outro distrito. Segundo ele não há interesse em explorar o poço agora. “Eles estão esperando os indígenas abandonarem suas terras por conta da violência”, denuncia. Cáceres defende a industrialização da folha da coca e diz que produziria riqueza na região. E também diz que a Coca-Cola compraria a folha local. “De um lado apontam a espada, do outro compram o que você tem.”

Ele repete que a transformação da coca em cocaína é um processo químico e que no país não há tecnologia para isso. Nem caixa de fósforos a Bolívia fabrica. Elas são importadas. E dá outro dado significativo dessa história. “Por conta da erradicação da coca um sargento dos EUA dá ordens a um coronel boliviano. Por isso o Evo Morales (candidato dos cocaleros) venceu as eleições nos quartéis locais”, diz o prefeito.

Os militares norte-americanos na região são menos de uma centena, mas mandam. “Para fazer um vôo de helicóptero aqui é preciso pedir autorização para a embaixada dos EUA. Da parte deles, se querem usar aviões não pedem para ninguém”, diz Cáceres.

A norte-americana George Ann Potter, que reside em Cochabamba, tem denunciado muito o que os entrevistados até aqui afirmaram. Seus relatórios têm sido encaminhados ao Senado dos EUA e já vêm surtindo efeitos. Alguns senadores defendem o corte da ajuda militar à Bolívia por estar sendo usada em violações de direitos humanos. (Continua na próxima edição.)