De Sabotage à DJ Lah, uma década de violência

Os dez anos da morte do rapper trazem à tona o contexto de violência que tem vitimado músicos das periferias de várias regiões do estado de São Paulo

Amigos de infância e familiares de Sabotage: em comum, a saudade (Douglas Pereira Gomes)
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Os dez anos da morte do rapper  trazem à tona o contexto de violência que tem vitimado músicos das periferias de várias regiões do estado de São Paulo Por Igor Carvalho A matéria abaixo faz parte da edição 119 de Fórum, compre aqui. Em janeiro, completaram-se dez anos da morte de um dos maiores representantes do rap nacional. Mauro Mateus dos Santos, ou simplesmente Sabotage, era dono de uma voz rouca que popularizou o cotidiano da pequena favela do Canão, localizada no Brooklin, zona sul de São Paulo. O cabelo espetado – inspirado no rapper americano Coolie –, o flow (estilo melódico) peculiar, a proximidade com o cinema e o linguajar típico da malandragem transformaram o artista em uma personalidade insubstituível na música da periferia. Mas o que mais chamou atenção em seu trabalho foi a versatilidade e a capacidade de dialogar com outros ritmos musicais. [caption id="attachment_33783" align="alignleft" width="240"] Visão da Favela do Canão, cantada por Sabotage (Douglas Pereira Gomes )[/caption] Sabotage é autor de importantes músicas do rap brasileiro, como “Um bom lugar”, “Rap é compromisso”, “Mun Rá” e “País da fome”. O maestro do Canão flertou com o mundo cinematográfico, queria que virasse um namoro, mas não teve tempo para tanto. Ainda assim, participou de dois filmes: “Carandiru”, de Hector Babenco, e “O Invasor”, de Beto Brant. No último, teve um intenso envolvimento no trabalho de pré-produção, no roteiro e na preparação de Paulo Miklos, que viveu um malandro da periferia na história. Seu único disco solo foi “Rap é compromisso”, um clássico do rap lançado pelo selo CosaNostra. Sabotage participou de alguns discos e shows do RZO, Rapin Hood e SP Funk. O apelido veio de um hábito dos tempos de adolescência, quando Mauro pegava o RG do irmão mais velho, o Deda, para ir a bailes, onde só entravam maiores de 18 anos. Um dia, o primogênito descobriu a farsa e disse “Isso é sabotagem”, amigos e familiares começaram a dizer que o garoto era uma “sabotage”, a evolução para o nome sem o “eme”. A consolidação do apelido foi questão de tempo. Foi noticiado, à época de sua morte, que Sabotage teria sido interno da Febem, extinta Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor, e que teria duas passagens pela polícia, por porte ilegal de armas e tráfico de drogas, fatos rechaçados pela família. “Isso é uma mentira, nunca existiu, virou lenda. Meu pai nunca foi preso”, explica Wanderson Rocha, filho mais velho do cantor. Salvo pelo rap, morto pelo passado [caption id="attachment_33786" align="alignleft" width="270"] Os filhos de Sabotage, Wanderson e Tamires Rocha (Douglas Pereira Gomes)[/caption] Corria o ano de 1998 quando Sabotage se mudou da favela do Canão para a Vila da Paz. No novo bairro, decidiu abrir uma “biqueira” – nome dado aos pontos de vendas de droga. O grupo que comandava o tráfico na região, liderado por Euclides Mendez Pessoa, passou a perseguir Sabotage. No ano seguinte, o rapper teria assassinado Euclides, a fim de manter sua posição de fornecedor na comunidade. Sirlei, então, passou a liderar o bando que se opunha ao futuro músico, que já mostrava talento com os textos e fazia em participações durante shows de amigos. Os conflitos entre Sabotage e Sirlei se intensificaram e, nesse momento, as portas da música se abriram para ele, por meio de Rappin Hood. “Chamei o Sabotage para ir com a gente. Ele perguntou se estava falando sério e eu falei que era isso mesmo, e que nós íamos ‘fazer uma corrida’ pra ele gravar um CD”, lembra Hood. Maria Dalva, viúva do cantor, se recorda que, já na virada do século, o rapper havia “deixado para trás essa vida”. “Ele não falava muito sobre essas coisas comigo, tinha medo que eu me preocupasse e largasse dele, mas tenho certeza de que isso era do passado, o rap foi a sua salvação. Nessa época, ele só fazia show, música e cuidava da família”, afirma Dalva. Preocupado com as investidas de Sirlei, que insistia em vingar a morte do amigo, Sabotage se mudou para a favela do Boqueirão, na Saúde. Alguns anos depois, a família seguia ameaçada. “Minha mãe descobriu que estava sendo seguida por um carro branco, todo dia de manhã, antes de ir trabalhar”, recorda Tamires Rocha, filha de Dalva e Sabotage, que tiveram, ainda, outros dois filhos, Wanderson e Larissa Rocha. Desde que soube que a esposa era seguida, o rapper passou a acompanhá-la até o local onde trabalhava, e foi fazendo esse percurso que, em 24 de janeiro de 2003, Mauro Mateus dos Santos foi assassinado. Julgado e condenado em 2010 pelo assassinato do músico, Sirlei Menezes da Silva terá de cumprir 14 anos de prisão em função do crime. Sabotage foi alvejado às 5h35 e morreu às 11h06, aos 29 anos. O rap perdia o futuro; a família, um pai; o Canão, um representante, e a violência ganhava um número a mais na estatística. O funk é compromisso DJ Felipe, MC Primo, MC Duda, MC Felipe Boladão e MC Careca. Não é um anúncio de espetáculo ou a formação de um grupo musical. Todos eram músicos de funk, foram assassinados no estado de São Paulo e fizeram, em suas músicas, críticas ao estado e à polícia. [caption id="attachment_33790" align="alignleft" width="270"] Amigos de infância e familiares de Sabotage: em comum, a saudade (Douglas Pereira Gomes)[/caption] Os cinco foram executados no mês abril de anos diferentes, o que não seria apenas uma macabra coincidência de acordo com Débora Maria, fundadora e coordenadora do grupo Mães de Maio, fundado por parentes de mortos e desaparecidos nos crimes de maio de 2006. “Dia 21 de abril é Dia do Policial. A forma deles celebrarem a data é matando os MC’s, que questionam a truculência da polícia.” Em 28 de abril de 2012, morreu Cristiano Carlos Martins, conhecido como MC Careca, no bairro Castelo, em Santos. O músico faleceu na frente do salão de cabeleireiro onde trabalhava. Oito dias antes, em São Vicente, também no litoral paulista, Jadielson da Silva Almeida, MC Primo, foi executado na frente dos dois filhos por dois homens que estavam em uma moto. Um ano antes, em 2011, Duda do Marapé, outro cantor de funk, foi executado, no dia 12 de abril. Os disparos foram feitos com uma pistola ponto 40, mesmo calibre utilizado por policiais militares. Em 11 de abril de 2010, Felipe Silva Gomes, o DJ Felipe, e MC Felipe Wellington da Silva Cruz, o Felipe Boladão, ambos de 20 anos, foram assassinados antes de um show de funk que a dupla ia realizar, no Jardim Glória, Praia Grande. Testemunhas relataram que dois homens encapuzados em uma moto atiraram nos jovens. Em 22 de junho de 2012, a Defensoria Pública de Santos informou que uma força-tarefa seria formada para investigar o envolvimento de policiais militares em grupos de extermínio. Para moradores e militantes de movimentos sociais, os agentes do Estado estão ligados diretamente com as mortes de MC’s na Baixada Santista. Mas, após seis meses, a força-tarefa ainda não saiu do papel. “À época, dissemos que seria necessário o envolvimento e a investigação de setores públicos, inclusive do governo do estado, mas isso não foi possível. Era o único jeito de se fazer a investigação de forma séria”, explica Antonio Mafezzoli, defensor público e um dos requerentes da força-tarefa. Um grupo conhecido como “Os ninjas”, supostamente formado por policiais, é apontado pelos santistas como responsáveis por execuções nas periferias. As ações do grupo têm métodos similares aos descritos nas cenas das mortes dos MC’s. O grupo é, também, acusado de ter atuado nos crimes de maio de 2006. “Normalmente, o que observamos aqui na Baixada, desde 2006, é que esses grupos atuam encapuzados e de carros pretos, sempre após uma morte de policial. Fica óbvia a conotação de vingança”, sustenta Mafezzoli. A possível represália aos MC’s é motivo de preocupação para Débora. “Perder esses meninos significa muita coisa aqui na Baixada. A juventude vive no terror, sabe que se falar alguma coisa contra eles [policiais] vai morrer”, acredita. O “proibidão”, estilo de funk cantado por muitos MC’s de Santos, é tido por alguns como um ritmo que prega a contestação social e faz críticas à ação policial, mas, para outros, faz apologia ao crime. A tese é rebatida por Débora. “Imagina, não vejo dessa forma, eles cantam o que acontece nas comunidades, falam do extermínio da juventude negra e pobre nas periferias, e isso incomoda”, afirma. DJ Lah e o exemplo de quem reagiu Mas não é só na Baixada Santista que músicos da periferia têm sido vítimas da violência. Os moradores da Rua Reverendo Peixoto da Silva assistiram, em dois meses, a dois episódios de repercussão nacional envolvendo vítimas fatais. No dia 12 de novembro, o servente de pedreiro Paulo Batista Nascimento foi arrancado de sua casa e executado no meio da rua, por cinco policiais militares. O que os agentes não sabiam é que a ação estava sendo gravada e que seria apresentada na TV Globo, em rede nacional. Envolvidos na cena do crime estavam os soldados Francisco Anderson Henrique, Marcelo de Oliveira Silva, Jailson Pimentel de Almeida e Diógenes Marcelino de Melo, bem como o tenente Halstons Kaim Tím Chen. Os cinco foram presos e, três meses depois, seguem encarcerados. Em 4 de janeiro de 2013, na mesma rua em que o servente foi executado, exatamente na frente da casa onde ocorreu o homicídio, aconteceu a primeira chacina do ano. Sete mortos. Entre as vítimas fatais, DJ Lah. O músico era integrante do grupo “Conexão do Morro”, da zona sul de São Paulo, reconhecido também por músicas como “Click Clack Bang”, em que criticam a atuação da Polícia Militar nas periferias. No final da noite daquela sexta-feira, 14 homens invadiram o bar na Rua Reverendo Peixoto da Silva atirando, todos encapuzados. Chegaram em três carros e, antes de dispararem, teriam gritado: “Polícia.” Foram 50 tiros. Os assassinos fugiram. No dia 5 de janeiro, o delegado-geral da Polícia Civil, Luiz Maurício Blazeck, afirmou que, entre as vítimas da chacina, estava o autor do vídeo-denúncia veiculado pela TV Globo, que seria DJ Lah. Em nota oficial, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) desmentiu o delegado, afirmando que não havia “indícios de que uma das vítimas da chacina, ocorrida sexta-feira à noite, em Campo Limpo, zona sul da capital, tenha participado de uma gravação de vídeo que mostra PMs atirando contra um servente de pedreiro”. Dia 6 de janeiro, durante o enterro do rapper, o DJ San Mix, produtor do grupo Conexão do Morro e amigo do músico falecido, desmentiu o boato de que o DJ Lah seria responsável pelo vídeo. “Isso é uma mentira, ele estava no lugar errado e na hora errada.” Moradores da região, que não se identificam por medo de novas represálias, se sentem acuados e evitam as ruas em horários noturnos. “Tinha parado essa palhaçada de chacinas, né? Agora, isso de novo. A gente fica trancada em casa e nem sai muito tarde, as ruas estão desertas desde sexta. Essa rua está amaldiçoada”, revelou uma mulher, que mora no Jardim Rosana. A Corregedoria da Polícia Militar investiga quatro policiais que teriam participado da chacina que vitimou mais um músico das periferias. As investigações mostram que, após a fuga dos assassinos, instantes depois, antes de a polícia chegar, um Corsa preto encostou na frente do estabelecimento e alguns homens recolheram os projéteis. Porém, duas cápsulas ainda ficaram no local, e a Corregedoria já concluiu que são do mesmo tipo das que são usadas pelo batalhão responsável pelo policiamento na região. F