Desastre à vida

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O Chile enfrenta atualmente uma questão emblemática que desnuda o tipo de atuação de boa parte das empresas multinacionais na América Latina.

Por Por Pedro Dantas   O Chile enfrenta atualmente uma questão emblemática que desnuda o tipo de atuação de boa parte das empresas multinacionais na América Latina. Trata-se do projeto minerador Pascua Lama, da companhia canadense Barrick Gold Corporation, que escandaliza não apenas por suas conseqüências econômicas, mas principalmente pelo descaso com o meio ambiente e com as populações que vivem na região onde se pretende extrair ouro. A Barrick Gold é a terceira empresa produtora de ouro no mundo, com minas ativas nos Estados Unidos, Canadá, Peru, Tanzânia e Chile. Em 1997, representantes dos governos de Carlos Menem, da Argentina, e Eduardo Frei, do Chile, assinaram tratado de acordo binacional sobre mineração. O acordo permite que empresas estrangeiras desenvolvam projetos em jazidas que se encontrem em regiões fronteiriças. Todos os indícios levam a crer que o tratado foi articulado pelas multinacionais que já tinham conhecimento das imensas riquezas disponíveis na região. Pascua Lama é o primeiro grande projeto a fazer uso desse tratado. A Barrick Gold pretende explorar uma mina a céu aberto, onde obterá ouro, prata, cobre e outros metais secundários. A mina está localizada na fronteira entre o deserto chileno de Atacama e a província de San Juan, na Argentina. O processo de mineração prevê utilização de substâncias altamente perigosas, como o cianureto. Em fevereiro de 2006, a companhia conseguiu aprovar o estudo de impacto ambiental e, em dezembro, obteve autorização das autoridades de San Juan. Apesar disso, os ambientalistas afirmam que o cianureto e os demais resíduos da mina, por meio de drenagens ácidas, contaminarão as reservas de água da região. Desde o alto da cordilheira dos Andes, com nascente próxima à mina, flui ao Pacífico o rio Huasco. O vale desse rio é um verdadeiro oásis no deserto do Atacama e a região produz o melhor pisco do país, maçã e uva para exportação, além de outras frutas e verduras que abastecem o mercado local. São 70 mil habitantes que seriam diretamente afetados no caso de uma eventual contaminação. Um dos problemas mais sérios é que no local de exploração da mina está uma enorme geleira, na nascente do rio Huasco. Segundo Lucio Cuenca, diretor do Observatório Latino-Americano de Conflitos Ambientais (Olca), “eles propõem remover a geleira de uma montanha a outra, sem destruí-la. Isso, na minha opinião, é um insulto à inteligência dos chilenos e de todos em geral”. Organizações comunitárias de Alto del Carmen (cidade do vale Huasco), solicitaram formalmente ao Conselho de Defesa do Estado ação judicial por dano ambiental contra a Mineradora Nevada Ltda., filial da Canadense Barrick Gold. Dizem que ela é responsável por danos às geleiras Toro 1, Toro 2 e Esperanza, situadas na zona do projeto Pascua Lama. A mina utilizará também 370 litros de água por segundo, mais do que a média diária de um cidadão comum do vale Huasco. O projeto prevê um investimento de 950 milhões de dólares e uma vida útil de 20 anos. O lucro previsto é de 10 bilhões de dólares. Longa história A trajetória das multinacionais mineradoras no Chile vem de longa data e a relação com o Estado nem sempre foi tão amistosa como hoje. Em 1971, o então presidente Salvador Allende aprovou junto ao Congresso chileno a nacionalização da indústria de mineração do cobre. Hoje, há documentos que comprovam que o ato foi a gota d’água para o fim da tolerância de Nixon em relação ao governo chileno, tornando-se o grande responsável pela ingerência direta dos Estados Unidos no golpe de Estado que levou Pinochet ao poder em 1973. É importante entender a importância e o significado histórico desse ato, em um momento em que nacionalizar volta à tona na América Latina, gerando polêmicas e incertezas nas medidas que Hugo Chávez propõe na Venezuela e Evo Morales adota na Bolívia. A nacionalização chilena foi fundamentada na resolução n.° 1.803 da XVII Assembléia Geral das Nações Unidas, de 14 de dezembro de 1962, chamada “Sobre a Soberania Permanente dos Recursos Naturais”. A resolução reconhece “o direito inalienável de todo Estado dispor livremente de suas riquezas naturais de maneira conforme aos interesses nacionais e em respeito à independência econômica dos Estados”. Segundo o economista chileno Julian Alcayaga Olivares, a nacionalização da mineração de cobre, além de uma conquista política e cultural de um povo, demonstrou ser, de longe, o maior êxito econômico da história do Chile. De 1971 a 2003, a Corporación Nacional del Cobre (Codelco) rendeu 30 bilhões de dólares às reservas nacionais chilenas, o que representa mais do que o imposto de renda pago pelo conjunto de todas as mais de 10 mil empresas privadas existentes no país, incluindo bancos, companhias de seguro, outras empresas mineiras, madeireiras, pesqueiras etc. Em 2004, por exemplo, Codelco rendeu 3,4 bi de dólares, seis vezes mais do que contribuiu através de impostos o conjunto de todas as demais empresas mineradoras privadas, cujo volume de produção é o dobro do que o da Codelco. Desde 1973, quando Allende foi morto, o Estado chileno adotou medidas que favoreciam amplamente os interesses de investidores internacionais e, ao contrário do que se imaginaria, a volta à democracia acentuou este processo. Em 1995, foi assinado decreto que isenta as empresas estrangeiras de mineração que apresentarem perdas em seu balanço anual de pagarem impostos. Ou seja, uma empresa multinacional bilionária que apresente em sua contabilidade problemas financeiros por gastos novos com investimentos ou pagamento de dívidas, tem isenções tributárias. Em 2004, o próprio presidente chileno à época, Ricardo Lagos, disse em um programa de televisão que “uma dona de casa que compra um quilo de pão paga imposto, mas as mineradoras multinacionais não pagam”. Então, a pedido do Senado, o Serviço de Impostos Internos informou que, de 1995 a 2004 apenas duas empresas multinacionais mineiras pagaram impostos, enquanto todo restante não depositou sequer um centavo nos cofres do Estado. No Chile, existe um total de 47 empresas multinacionais mineradoras. Nos últimos 12 anos, as multinacionais de cobre levaram do Chile 23 milhões de toneladas do mineral, o que representa um valor de 43 bilhões de dólares, e não pagaram impostos. Há também problemas relativos ao uso da mão-de-obra. Nas multinacionais, dois terços dos funcionários são temporários, não têm direitos trabalhistas e recebem um quinto do que um mineiro contratado pela Codelco. Teme-se que, assim como as demais empresas multinacionais mineradoras que estão no Chile, a Barrick Gold apresente contas que demonstrem suposto prejuízo em seu balanço anual e, assim, fique isenta de impostos. A lógica de funcionamento do projeto Pascua Lama se reproduz em diferentes escalas no Chile, tanto nas empresas madeireiras no Sul do país como na indústria da pesca. Mais um motivo para se colocar em xeque um modelo de desenvolvimento que, a despeito de proporcionar crescimento econômico, piora a distribuição de renda e faz com que 1% das empresas concentre cerca de 80% das rendas obtidas no país. Além do já costumeiro desrespeito ao meio ambiente.