E quando o opressor é o professor?

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O conservadorismo das instituições, a relação de poder e o preconceito estrutural resultam em casos como o de Maria Clara Bubna, que chegou a ser classificada como “uma influência negativa” por seu próprio professor Por Isadora Otoni Maria Clara Bubna, de 20 anos, cursa Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mas teve que parar de frequentar as aulas de Economia Política. A estudante começou a se sentir desconfortável com o professor que lecionava a matéria, Bernardo Santoro, já que ele se posicionava de modo polêmico em sala. “Um dia ele estava explicando o conceito de demanda e falou que era ‘um exímio ordenhador porque produzia muito leitinho’”, conta a aluna. “Esses comentários me afastaram da turma, não me senti confortável pra continuar e decidi acompanhar por fora, com material de estudo e ajuda de colegas”. Quando ela parou de assistir às suas aulas, o professor chegou a questionar à turma onde estava “a aluna marxista”. Em uma publicação no Facebook, Santoro se posicionou de forma machista e foi alvo de críticas. No texto, ele afirma que o feminismo era o culpado por um homem “largar a esposa e se divorciar a qualquer momento, principalmente quando ela embarangar depois de ter seu filho”. Em contraponto, o Coletivo de Mulheres da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde também leciona, divulgou uma nota de repúdio à sua opinião. Foi o que bastou para Bernardo associar Maria Clara Bubna à nota e começar a persegui-la. “Como eu não estava presente, sei pelos meus amigos que ele começou a soltar comentários, que estava sendo ‘perseguido por um coletivo feminista’ que tinha participação de uma ‘colega de classe’ de todos”, relembra a estudante. Em entrevista para O Globo, o professor chegou a afirmar que “ela sempre foi uma influência negativa na turma”. Depois do episódio, Santoro se exonerou da UERJ por não concordar com a abertura de uma sindicância para apurar seu comportamento. [caption id="attachment_3572" align="aligncenter" width="250"]Declaração de Bernardo Santoro para O Globo (Foto: Reprodução) Declaração de Bernardo Santoro para O Globo (Foto: Reprodução)[/caption] Apesar da grande repercussão do caso, as atitudes abusivas de educadores não são uma exclusividade das universidades do Rio de Janeiro. Existem relatos de machismo e homofobia já no Ensino Fundamental, em que a relação de poder justifica o comportamento do opressor. Na quinta série, Bruno Dias* odiava as aulas de Ciências. Ele não tinha dificuldades com a matéria, já que possuía um conhecimento avançado para um garoto de 10 anos. No entanto, seu professor transformou as aulas em uma atividade desagradável. “No primeiro dia ele perguntou qual era a diferença de um átomo para uma molécula. Eu sabia a resposta e falei”, narrou Bruno. Em vez de ser elogiado, o aluno passou a ser chamado de “sabichona” pelo instrutor. “Isso com toda a conotação gay que você possa imaginar”, lamenta Bruno, que agora já cursa o Ensino Superior. Mesmo se sentindo extremamente incomodado com a ridicularização por parte do professor, ele nunca reclamou das “piadas”. “Todo mundo achava ele engraçado, então eu tinha medo de ser ‘o estraga prazeres.’” Débora Passos* tinha apenas 16 anos quando começou a ser assediada por seu instrutor, de 44, que ensinava Física no terceiro ano do Ensino Médio. “Ele ficava falando que eu era ‘mulher de verdade’ e ‘a única mulher da sala’. Em aula, ele chegou a fazer piadinhas do tipo 'eu e a Débora já fizemos as preliminares'", relembra, quatro anos depois. Com isso, a turma entrou na história e incentivava o suposto caso. “Se eu ia com short, meus colegas ficavam falando: ‘Olha o tamanho do short dela, você não está com ciúmes?’.” Débora tentou, mas não conseguiu conter o assédio. “Ele namorava e eu falava que eu também, só pra ver se ele parava. Uma vez ele apareceu por trás de mim na escada, me segurou na cintura e falou no meu ouvido: você nunca pensou em traição?”. Por conta das inconveniências, ela afirma que nunca conseguiu aprender nada na matéria que o professor lecionava. Denunciar também não era uma opção. “Minhas ‘amigas’ diziam que aquilo era bom, que ele era bonito e que devia me sentir bem com o que ele dizia. Cheguei a achar que havia algo de errado comigo”, conta. Débora só se deu conta de que poderia ter questionado a situação quando conheceu ideologias feministas. “Fui perceber que eu não estava fazendo nada de errado quando tomei contato com o feminismo na faculdade.” Outras atitudes clássicas nas escolas também possuem reflexo de machismo e homofobia, mas ainda não são condenadas pela sociedade. “Em confraternizações, as meninas ficam responsáveis para ações voltadas para a decoração e culinária, enquanto os meninos possuem um papel secundário. Atividades físicas também são divididas por sexo, já que luta e futebol são vistos como exercícios masculinos”, aponta Ana Rita Dutra, educadora e especialista em Direitos Humanos. Da sociedade para a sala, da sala para a sociedade O comportamento em sala de aula é uma via de mão dupla: professores e alunos reproduzem o que aprendem com a sociedade, como também reproduzem em sociedade o que aprendem nas escolas. Toni Reis, presidente do Grupo Dignidade e secretário de Educação da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais), exemplifica: “Gays e lésbicas eram tratados como criminosos na Idade Moderna. Até o dia 17 de Maio de 1990, a homossexualidade era considerada uma doença. Portanto, a sala de aula ainda tem muito desse rescaldo cultural de homofobia e discriminação”. Ana Rita Dutra concorda. “Nossa educação é machista porque nossa cultura é machista. Mesmo que hoje a gente tenha uma política mais inclusiva, ainda percebemos fortemente o machismo no discurso dos educadores. Seja no próprio ensinar, nas piadas, nas concepções pessoais de professores que chegam aos espaços educativos”. [caption id="attachment_3578" align="alignleft" width="300"]Ana Rita Dutra pede por uma educação mais inclusiva (Agência de Notícias do Acre/Flickr) Ana Rita Dutra pede por uma educação mais inclusiva (Foto: Agência de Notícias do Acre/Flickr)[/caption] Como o preconceito tem raízes profundas na sociedade, uma instituição dificilmente se adapta ao discurso mais inclusivo da educação. Por isso, esses espaços são frequentemente estruturados pelo conservadorismo. “Seja na educação informal ou formal, nas grades de ensino acaba-se reproduzindo em sala de aula uma educação ainda quadrada, conservadora, que não inclui os grupos marginalizados”, constata Ana Rita. Marcus Cezar, psicólogo e Doutorando em Filosofia, explica que a estrutura dos modelos escolares não ajuda na inclusão, já que possuem modelo centralizador. “Nossas escolas e universidades ainda são constituídas nos moldes hierárquicos, baseados no autoritarismo e na submissão, e que em nada favorecem o desenvolvimento de autonomia. São baseados nos mesmos princípios das instituições militares, religiosas e presídios”. A submissão e dessubjetivação do estudante, ou seja, o apagamento de suas individualidades, leva os professores a abusarem do poder de sua voz. “A própria palavra aluno, se olharmos seu significado, quer dizer 'a-luno', ou seja, sem luz. O papel do professor é, então, iluminar essas pessoas sem luz”, analisa Marcus. “A grande questão da relação entre instrutor e estudante é realmente como construir uma relação de desenvolvimento integrativo”. Colabore com o que o cabe no seu bolso e tenha acesso liberado ao conteúdo da Fórum Semanal, que vai ao ar toda sexta-feira. Assine aqui Toni é autor da tese de doutorado “O silêncio está gritando: a homofobia no ambiente escolar”, defendida na Uni­versidad de la Empresa de Mon­tevidéu, no Uruguai. Em sua pesquisa, ele constatou que a maioria dos professores está despreparada para tratar a diversidade sexual em sala de aula. Somada à hierarquia escolar, a péssima formação dos educadores acaba sendo muito prejudicial. “No Brasil a formação e a discussão sobre o que de fato é educação e como ela pode ser vinculada é ainda muito precária. Para quebrar essa estrutura, é necessário preparar os educadores de forma diferente. Por exemplo, a formação universitária, a formação pedagógica e o pensamento crítico sobre o papel do professor não fazem parte de praticamente nenhum programa de formação”, critica Marcus Cezar. Com isso, os docentes insistem em conduzir a formação em um modelo ultrapassado. “Eles se frustram ou então esquecem seu real papel e transformam a sala de aula em seu palco para poder falar o que quiserem, sem rigor científico, sem senso crítico ou sem propósito formativo”, interpreta o psicólogo. Já Ana Rita sugere: “Se tivéssemos uma formação continuada fundada em uma educação não machista, poderíamos construir um espaço escolar mais democrático. Em alguns países já temos escolas infantis que aboliram o ‘gênero’ nas diferenciações dentro do espaço”. Todavia, ela não deixa de ressaltar que a sociedade como um todo deve ser rediscutida: “Imagine um professor agressor de sua esposa em casa, ou que prende sua filha. Suas concepções acabam chegando ao espaço educativo.” Toni também tem sua proposta. “Nós do movimento LGBT temos pressionado o Ministério da Educação, as Secretarias da Educação municipais e estaduais, para termos programas de educação inicial e continuada de capacitação, formando pessoas que saibam lidar com as situações”. Para ele, um professor tem o dever de chamar a atenção em uma situação de desrespeito em sala de aula. “A escola é um espaço de socialização, onde as pessoas aprendem cidadania. Então tem que respeitar o negro, a mulher, o judeu, o gay, a lésbica, as pessoas com deficiência, enfim. Tem que respeitar toda a condição humana. E nesse contexto que é importante trabalhar a diversidade”, ressalta o integrante do movimento LGBT. Uma nova abordagem [caption id="attachment_3576" align="alignright" width="300"]Entre os diversos projetos da Escola Nazaré Guerra está o combate à homofobia (Divulgação/Blog da escola) Entre os diversos projetos da Escola Nazaré Guerra, está o Combate à Homofobia (Foto: Divulgação/Blog da escola)[/caption] A Escola de Ensino Médio Nazaré Guerra, de Itatira, no Ceará, tenta romper com a opressão em sala de aula. Para isso, eles começaram no início do de 2013 a desenvolver o projeto Literatura e Diversidade, que visa ao combate à homofobia. Apesar de ser coordenado pelo professor Francisco Wesley Sales, são duas alunas que comandam as atividades do núcleo. “Falamos sobre o assunto e utilizamos livros que tratam do tema. Isso para tentar diminuir o preconceito na escola, conscientizando os alunos, professores e toda a unidade escolar”, descreve Wesley. Ele faz questão de ressaltar que não toma a frente dos movimentos e oficinas, para que a estrutura de ensino seja diferente. “O trabalho de aluno para aluno fica mais fácil para eles se compreenderem”. Não só os alunos apresentaram mudanças com a proposta, como também os professores. “Com conversas e trocas de experiências, absorvemos mais para amenizar a homofobia. Depois desse projeto, que já está no seu segundo ano, percebemos uma queda bem significativa em relação à homofobia na escola”, comemora o coordenador. “Sabemos que em toda escola há homossexuais, mas as instituições não tomam nenhuma iniciativa para fazer que com esse preconceito lá dentro acabe ou pelo menos diminua”. Já em Pernambuco, discutir a questão do gênero foi uma recomendação das secretarias da Mulher e da Educação. Núcleos de Estudos de Gêneros e Enfrentamento da Violência Contra a Mulher foram instalados primeiro nas universidades, em 2009, mas dois anos depois foi constatada a necessidade do programa se estender para as escolas. Valéria Fernandes, gerente de Formação e Transversalização de Gênero na Secretaria da Mulher de Pernambuco, conta como surgiu a ideia. “Foi uma demanda do Prêmio Naíde Teodósio de Estudos de Gênero, um concurso de projetos, redações e artigos científicos. A partir dele observamos que as escolas estavam um pouco deficitárias na questão da discussão de gênero”. No início, as parcerias foram feitas principalmente com escolas integrais, totalizando 23 núcleos. Hoje, esse número chegou a 60. “As escolas de Ensino Médio começaram a ligar pra gente e se inseriram também, por demanda voluntária”, informa Valéria. As ações dos grupos são planejadas por representantes de alunos e professores, que também abordam questões de raça e outras desigualdades. A proposta diferencial do projeto é a formação dos próprios professores. Para isso, a Secretaria faz quatro encontros e dois seminários anuais com os educadores. Nas reuniões, são eles que levam novidades sobre o tema, e um seminário é realizado para qualificação e discussão sobre o que acontece dentro e fora de Pernambuco. Já no último seminário, representantes dos núcleos apresentam os resultados do trabalho durante o ano. “Isso fortaleceu o Prêmio Naíde Teodósio, pelo que a gente pode ver pela qualidade das redações e artigos”, comemora Valéria. E se acontecer com você? A sociedade permanece preconceituosa; o modelo escolar, hierárquico; e os professores, despreparados. Bruno Dias e Débora Passos revelaram que denunciar requer coragem, e Maria Clara teve uma reviravolta quando ousou divulgar o que aconteceu com ela. Então, como os estudantes devem lidar quando se sentirem oprimidos? Toni Reis sugere que a vítima ligue para o Disque 100. O canal de denúncia é um meio eficaz de assegurar sua integridade, já que todo professor deve seguir a Constituição e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. “Todos nós somos diferentes na sua sexualidade, na sua religião ou no seu time de futebol, mas no direito somos todos iguais”, declara. Já Ana Rita encoraja as mulheres a levantarem suas vozes. “Torço e luto para que encontrem em seus caminhos educadoras e educadores sensíveis e engajados em uma educação não machista. Uma menina jamais pode ser silenciada, julgada e tolhida por seu sexo”. *Nomes fictícios: os personagens pediram anonimato (Foto de capa: Reprodução/Facebook de Maria Clara Bubna)