Ecologia ou exclusão?

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Desde março, a paisagem da Cidade Maravilhosa está ganhando um ar sombrio: muros de concreto de três metros de altura já começaram a ser construídos ao lado da favela Dona Marta, e serão estendidos por mais 11 mil metros até rodear 11 favelas da zona Sul da cidade. E isso é só a primeira parte. O governo do estado, autor do projeto, promete ampliar o muro também para as regiões Oeste e Norte da capital até 2010, ano eleitoral. O argumento usado para a construção do muro – ou “ecolimite”, como o governo prefere tratar – é a expansão das favelas sobre a Mata Atlântica dos morros cariocas.

“É pra ficar bem claro para todo mundo: ali é um ecolimite. Daqui pra lá é mata e daqui pra cá é urbanização e [a população] pode ocupar”, aponta Ícaro Moreno, presidente da Empresa de Obras Públicas (Emop), empresa contratada para executar o serviço. De acordo com o governo do estado, o crescimento das favelas tem sido responsável pela devastação das matas que cobrem as encostas da cidade. Mas o argumento se mostra frágil se analisados os dados de uma pesquisa recente do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP), vinculado à própria prefeitura e responsável pelo planejamento urbanístico e execução de obras de infraestrutura.

A pesquisa indica que as áreas escolhidas para a execução da primeira parte do projeto foram justamente as que menos cresceram nos últimos anos. De 1999 a 2008, enquanto a área total registrou uma ampliação de 6,88%, as favelas da Zona Sul cresceram, somadas, somente 1,18%. Na comunidade de Santa Marta, a primeira a receber os três metros de concreto ao seu redor, o terreno chegou a registrar inclusive uma redução de 0,99% nesse período, segundo o instituto que fez a medida em termos de área ocupada a partir de fotos aéreas, sem levar em conta o crescimento vegetativo. Também por isso não se pode dizer que a favelização não tenha se intensificado nos últimos anos. O aumento foi notado por 61,6% dos moradores das comunidades, segundo uma pesquisa da Central Única de Favelas (Cufa) realizada em 2008. Mas o pulo do gato é que o crescimento das favelas na cidade tem sido, em sua maior parte, no sentido vertical: é o “puxadinho”, o barraco construído em cima a laje.

A próxima favela a ser cercada pelos ecolimites é a Rocinha, que até pouco tempo era considerada a maior favela do Rio de Janeiro, perdendo o posto para a favela Fazenda Coqueiro, na zona Oeste da cidade, considerando-se o tamanho da área ocupada. A lista de favelas a serem muradas conta com o parque da Cidade, na Gávea; os morros dos Cabritos e a Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana; da Babilônia e Chapéu Mangueira, no Leme; Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, em Ipanema; Vidigal, no Leblon; e Benjamim Constant, na Urca. O projeto custará aos cofres públicos R$ 40 milhões, sendo que R$ 22 milhões serão gastos somente nos 634 metros do Dona Marta e nos 2,5 km da Rocinha.

A notícia de que muros seriam erguidos em volta das favelas cariocas não demorou a ser criticada pela sociedade e por grandes nomes de defensores de direitos humanos, como José Saramago. O escritor destila sua crítica em seu blog “Caderno de Saramago”: “Cá para baixo, na Cidade Maravilhosa, a do samba e do carnaval, a situação não está melhor. A ideia, agora, é rodear as favelas com um muro de cimento armado de três metros de altura. Tivemos o muro de Berlim, temos os muros da Palestina, agora os do Rio. Entretanto, o crime organizado campeia por toda a parte, as cumplicidades verticais e horizontais penetram nos aparelhos de Estado e na sociedade em geral. A corrupção parece imbatível. Que fazer?”.

Histórico

O projeto de erguer barreiras entre mata e favela não é invenção do governador Sérgio Cabral. Foi durante a primeira gestão de César Maia (1993-1996) na cidade do Rio de Janeiro que o atual prefeito Eduardo Paes, então subprefeito da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá, idealizou e propôs a construção de limites físicos, batizados de ecolimites. A ideia não teve adesão na época, mas manteve-se no ideário dos políticos cariocas que acham que crescimento da pobreza se combate com barreiras físicas.

O arquiteto Luiz Paulo Conde, que foi prefeito da cidade e vice-governador do estado na gestão de Rosinha Garotinho, retomou a proposta em 2004, tendo a oposição justamente de Paes, que até o fechamento desta edição não respondeu às perguntas enviadas pela Fórum. A proposta de Conde ia além da contenção da ocupação irregular de barracos nas matas ao redor. Segundo o então vice-governador, um muro conteria a fuga de criminosos pela floresta. Novamente o projeto não se concretizou. O assessor de Conde afirmou que o ex-prefeito não está concedendo entrevistas porque, acredita, “a imprensa já tomou uma posição sobre o assunto”.

Nas últimas eleições, Gabeira voltou a colocar em pauta a construção dos muros. Sua proposta era de ampliar ecolimites digitais já existentes, que, segundo ele, preveria participação da comunidade para evitar a ocupação para fora dos limites e o estabelecimento de postos de orientação urbanística que instruiriam moradores a construírem suas casas dentro da lei. “Com a boa-vontade da população, talvez não precisasse do muro”, opina.

O Rio de Janeiro não escolheu Gabeira, mas continuou com Cabral. Eduardo Paes, que já mudou de opinião, agora mostra-se favorável à medida, conforme declara seu vice Carlos Alberto Muniz. A um ano das eleições para governador, Sérgio Cabral recuperou o projeto e pretende estendê-lo em três áreas da cidade, uma próxima à área nobre da capital. Muniz, que também é secretário municipal do Meio Ambiente, afirma que a prefeitura está agindo em complementação à construção do muro com arborização interna das comunidades e reflorestamento dos entornos em mutirão com a comunidade, além de estar implementando “telhados verdes”, coberturas vegetais sobre as lajes das casas.

Disputa de discursos

A ação do governo estadual apela para um dos discursos mais mobilizadores da atualidade: o ambiental. “Os interesses sociais só podem ser defendidos de forma mais ampla e no longo prazo se os interesses ambientais também forem defendidos”, observa Eduardo Cesar Marques, pesquisador e diretor do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), de São Paulo. O argumento verde começou a ganhar corpo na década de 1970, quando vários desastres ambientais e a primeira crise do petróleo levaram a sociedade a buscar na área saídas para seus entraves sócioeconômicos. A militância política em torno do discurso ambientalista começou em 1972, com a criação do Partido Verde na Tasmânia, na Austrália, e chegou ao Brasil na forma institucional em 1986. De acordo com o pesquisador Rui Lima Ramos, da Universidade Minho, de Portugal, “há [atualmente] uma onipresença do discurso do ambientalismo” na imprensa que geralmente se reveste de um “caráter técnico”. Em seu artigo “Dimensões do discurso ambientalista nos media: uma abordagem exploratória”, Ramos aponta que o discurso descreve a chamada “sociedade de risco”, em que qualquer espécie de desenvolvimento “é ensombrada pelos riscos produzidos, que se democratizam e estendem-se a todas as classes sociais”. O pesquisador do CEM vai no mesmo sentido. “A questão é a mobilização dos discursos. O discurso ambiental no Rio de Janeiro é repetidamente mobilizado nos últimos anos para legitimar ações contra as favelas, para culpabilizá-las”.

Coordenador do Instituto de Terras no Rio de Janeiro, Maurício Ruiz defende os muros e a proteção que eles podem dar à Mata Atlântica. “Tem que construir o muro sim”, afirma argumentando que qualquer crescimento registrado é significativo para a devastação das matas da cidade. “Mas essa medida e outras devem ser aplicadas a todas as classes sociais”, assegura. Em sua visão, não existe contradição entre a militância ambiental e a social. “O movimento ambiental e o movimento social estão de mãos dadas. Quem entra para o ecologismo não pode deixar de lutar contra a pobreza”, finaliza. Já Sérgio Cabral chegou a declarar que o muro não seria segregador, mas “de inclusão”. “Ele significa o fim da omissão do poder público”, declarou à imprensa.

Vítimas ou culpados?

Francisco Valdean dos Santos veio da cidade de Cachoeira Grande, quase divisa com o Piauí, e mora no Complexo da Maré desde 1995. Apesar de as duas escolas de ensino médio mais perto estarem fora da comunidade, beirando a avenida Brasil, Francisco completou o ensino médio e hoje cursa ciências sociais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “O muro cria um imaginário de que existe uma violência muito grande nas favelas e que tem que ser combatida dessa forma. Mas existem violências muito maiores do que a que se vê na imprensa, como falta de escola, baixa qualidade na saúde pública... Nesse processo tem uma violência muito maior”, reflete Francisco, que hoje trabalha no Observatório de Favelas no Rio. Ele acredita que o projeto materializa a criminalização da pobreza, e desabafa: “o morador da favela é sempre o culpado, agora inclusive pela destruição da mata”.

“O Rio de Janeiro tem uma longuíssima história de culpabilização das favelas, desde 1920, da viagem do rei da Bélgica, quando se removeu a favela do Calabouço por sua visibilidade no caminho que o rei iria fazer”, retoma o pesquisador Eduardo. “Diz-se que a cidade está sendo agredida pela favela, mas é o contrário”, indigna-se Carlos Vainer, urbanista do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ. “Não bastasse essa população estar penalizada pela situação dramática em que se encontra, agora ainda é culpabilizada”, completa, classificando a política de Sérgio Cabral como um “urbanismo policial”.
Há quem ainda contemporize, como Eduardo, que acredita que uma mureta com baixa agressão visual submetida à fiscalização seria “plenamente suficiente”. A proporção do muro e o local em que está sendo erguido é que constituiriam um problema. “(Os muros) são de grande visibilidade, próximos à classe média, formadora de opinião. É uma tentativa clara de mostrar a ação do poder público dura em uma área sensível”, coloca.

Carlos acredita que as intenções da medida vão além do mero interesse eleitoreiro. “Trata-se de atender aos reclames do capital imobiliário, que pretende ocupar as encostas e disputar espaço com as favelas”, acredita. As primeiras onze favelas que receberão os três metros de cimento até o fim deste ano são vizinhas dos bairros mais nobres da Cidade Maravilhosa, como Botafogo, Copacabana, Ipanema e Leblon.

Apesar das críticas, o Datafolha perguntou a 644 pessoas de diversas classes sociais se elas eram contra ou a favor da construção: 47% afirmaram ser a favor, e 41% contra. “A discussão do meio ambiente vem sendo jogada muito na mídia, então tem aceitação”, opina Francisco. “Junta-se esse apelo mundial pelo meio ambiente a uma reivindicação de contenção das favelas”. Mas há quem conteste o número apresentado pelo Datafolha, como os moradores da Rocinha, que por meio de sua associação de moradores realizaram uma consulta que chegou a ter 1.173 votos. O resultado foi que a esmagadora maioria, 1.111 votos, se posicionou contra a construção dos ecolimites, enquanto 56 foram a favor e seis se abstiveram. A discrepância dos números das duas pesquisas e a própria evidência na do Datafolha de que não é a maioria absoluta que está a favor da medida colocam a questão como um debate a ser construído na cidade do Rio de Janeiro.

A elite também desmata

O plano dos 11 km de muro em torno das favelas dá a entender que elas são as únicas responsáveis pelo desmatamento da encosta dos morros. A devastação é incontestável: em pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) no ano passado, a região metropolitana do Rio de Janeiro teve 205 hectares de sua floresta suprimida em três anos. Na pesquisa anterior, foi registrada, entre 2000 e 2005, uma diminuição de 94 hectares de matas. No entanto, a região metropolitana engloba municípios que registram níveis muito mais críticos de desmatamento do que a capital, como Itaboraí e Nova Iguaçu, onde se tem derrubado árvores do entorno da Reserva Biológica do Tinguá.

Mas será que a Mata Atlântica carioca é alvo somente do crescimento das favelas? Não, de acordo com o IPP. Em recente pesquisa, o instituto apontou que 69,7% das encostas acima dos 100 metros de altitude são ocupadas por famílias de classe média e alta. O governador cercará comunidades que respondem pela ocupação de 30% da área das encostas cariocas.

Confrontados os dados, o diretor da Emop sustenta que, “se tiver [ocupação de classes médias e ricas], construiremos o muro também”. O importante é a Mata Atlântica”. No entanto, não consta no projeto a construção de muros em outras áreas que não sejam favelas. Já o secretário municipal do Meio Ambiente questiona a pesquisa do IPP, afirmando que o instituto estaria se restringindo à análise urbanística, e diz que são poucas as áreas de classe média e alta que estariam causando algum impacto ambiental. Os argumentos da prefeitura acabam indo contra sua própria estrutura, uma vez que o IPP é uma autarquia ligada ao município, e tem como função justamente realizar análises e planejamentos urbanísticos para a cidade. Essa diferença com que se trata as classes sociais na questão ambiental, como observa Vainer, “é uma maneira de dizer que os favelados não são cidadãos como os outros”. F

Pobres e itinerantes

"Eu fico pensando: onde vão colocar os pobres?”, indaga Francisco, um dos moradores da Maré. Eles estão limitados verticalmente a um crescimento de até três pavimentos, e agora foram coibidos horizontalmente. O poder público ainda não respondeu como fará para remanejar a população crescente das favelas. A própria construção dos muros já desalojará mais de 550 famílias que, conforme garante Ícaro, terão direito a um aluguel-social de R$250,00 a R$350,00 por mês até receberem do governo do estado uma casa dentro da própria comunidade, “com condições melhores e título de propriedade”.

A política de realocar ou simplesmente despejar os moradores de favelas tem um longo histórico. Já no início da década de 1920, o prefeito Pereira Passos marcou sua gestão ao demolir os cortiços do centro da cidade para dar lugar a avenidas largas de luxo. Os encortiçados foram para os morros, já que ao nível do mar já não encontravam onde ficar. A gestão de Carlos Lacerda na prefeitura da cidade, 40 anos depois, recuperou a linha de Passos e marcou a história do Rio de Janeiro ao derrubar duas favelas da zona Sul, Catacumba, na Lagoa, e Pasmado, no Botafogo. As famílias foram realocadas para a Cidade de Deus, planejada para ser um bairro de conjuntos habitacionais que acabou crescendo vertiginosamente e hoje ocupa uma área de mais de 120 hectares e conta com uma população de 38 mil habitantes.

Porém, ao contrário do senso comum, seu crescimento não foi desordenado. É o que defende a pesquisadora e socióloga americana Janice Perlman. Seus estudos apontam que essas comunidades foram planejadas desordenadamente pelo poder público, mas encontraram uma dinâmica interna de “coesão social e confiança mútua”. Para ela, existe um planejamento dos próprios moradores que, ao se verem obrigados a construir suas residências em locais de risco ou com espaço limitado, desenvolvem “técnicas criativas de construção em encostas que os urbanistas consideram demasiado íngremes para edificações”. Porém, esse “jeitinho” garante a sobrevivência, mas não o bem-estar. “As pessoas têm que entender que a favela é a última saída para quem não tem recursos de habitar adequadamente e próximo ao trabalho”, argumenta o urbanista Carlos. A Rocinha, por exemplo, ainda é conhecida como um dos focos mais alarmantes de tuberculose no país, por conta da falta de saneamento ambiental e condições adequadas de moradia. Carlos não vê outra saída que não a habitação popular: “O resto é mistificação”. F