Ecologistas são reacionários ou revolucionários?, por Cléber Lambert

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Until the philosophy which hold one race

Superior and another inferior

is finally and permanently discredited and abandoned

Everywhere is war, me say war” War – Bob Marley

Este artigo leva adiante algumas reflexões iniciadas no texto “Discurso às nações indígenas”, publicado também na Fórum1 . Num e noutro nos esforçamos em, a partir de alguns conceitos da filosofia e da antropologia, pensar um problema concreto: as lutas indígenas no primeiro e o movimento ambientalista no segundo. Porém, partindo desses problemas, buscamos intervir critica e clinicamente (e, acreditamos, ambientalmente) nos combates do próprio pensamento, nas diferentes “imagens do pensamento” que se chocam quando é colocado o problema da relação entre “nós” e “os outros”, entre “primitivo” e “civilizado”, entre “humano” e “não-humano”, entre “razão” e seus “outros”2, entre “reacionário” e “revolucionário”. Ligada às lutas pela autodeterminação dos povos indígenas está aquela dos ecologistas. É preciso compreender sua crítica ao Desenvolvimentismo como inseparável daquela ao Colonialismo. Porém, é justamente essa fórmula que parece fazer problema, uma vez que uma certa imagem do pensamento pretende que o desenvolvimento seja responsável pela retirada dos povos da condição de dominação: incluir as pessoas no sistema produtivo. Uma das forças políticas dos ecologistas consiste justamente em romper com essa imagem ao tomar o Desenvolvimentismo como uma extensão das estruturas colonialistas do pensamento. Segundo a imagem moderna do pensamento, que o antropólogo Bruno Latour chamou de “Constituição Moderna”3 , haveria uma purificação cada vez maior e inelutável que conduziria os povos múltiplos sobre a terra na direção de uma total realização do destino histórico da “humanidade”. O Ocidente, sua sociedade técnico-científica erigida sobre a crença na possibilidade de domínio de uma Natureza previamente purificada, universalizada, reduzida a uma exterioridade física comum oposta à interioridade espiritual das culturas que a dominam e exploram (multiculturalismo), seria a destinação histórica dos povos, a Unidade a que finalmente tenderia o múltiplo. Essa ontologia naturalista passou incólume pelas guerras do século XX, mas é definitivamente questionada pela crise ecológica. Não sendo o efeito de uma “necessidade antropológica”, o Desenvolvimentismo supõe, como aponta Eduardo Viveiros de Castro4, na esteira de Marshall Sahlins, uma “antropologia da necessidade”, que é expressão de uma “concepção econômico-teológica” que coloca “a economia do Gênesis”, ou seja, aquela que faz o humano girar em torno da falta e da produção, na “gênese da Economia”, ou seja, aquela fundada no reino da necessidade e da insuficiência. Ou prolongando seu pensamento através de um de seus intercessores, Oswald de Andrade, o Desenvolvimentismo seria o último avatar do pensamento Messiânico, contra o qual o pensamento Ecológico, que Viveiros chama de Envolvimentismo, ou seja, uma “cosmo-pragmática” da suficiência, dos devires ou das passagens intensivas, insurge como a força de uma outra Humanidade. Devemos ser atentos a essa oposição. Com efeito, as duas imagens do pensamento aqui em choque são inseparáveis de uma disjunção entre dois potenciais ontogenéticos completamente distintos, na forma de um “desentendimento” (J. Rancière) ou equivocidade entre duas partilhas irreconciliáveis do “sensível”, compreendido como conjunto de práticas pelas quais um modo de vir-a-ser da existência se constitui (ontogênese)5. Como vimos no “Discurso às nações indígenas”, J.-Ch. Goddard sugere que a filosofia de Fichte igualmente se insurgiu como potência de afirmação de uma outra Humanidade, em combate com a Constituição Moderna e a redução dos povos múltiplos nativos situados na Europa a uma mesma e única humanidade homogênea e homogeneizante. Nesse sentido, o idealismo fichteano constitui uma potência indígena. Entretanto, como explicar que ele tenha sido utilizado pelos mais diferentes movimentos políticos em sua posteridade e que tenha sido caracterizado a cada vez como reacionário e revolucionário? A política não poderá romper com a ontologia naturalista a não ser que a própria oposição entre reacionário e revolucionário seja atravessada e deslocada pela equivocidade dos potenciais ontogenéticos. É evidente que, de Fichte, se tenham alimentado as “convicções” tanto de reacionários quanto de revolucionários. Goddard questiona: de qual lado devemos colocá-lo? Essa questão nos interessa na medida em que também os ecologistas são situados a cada vez do lado da conservação e do lado da transformação. Ou bem se pretende fazer deles revolucionários pela sua sensibilidade e defesa da autodeterminação dos povos indígenas, bem como das formas de vida não-humanas vítimas do avanço homogeneizador da Axiomática Capitalista, impondo modos de vida voltados para o consumo, assentados numa lógica de exploração predatória do meio ambiente. Ou bem se tenta reduzi-los, de diversas maneiras, a uma nova versão do velho campo reacionário: seja com a acusação paranóica de que constituem uma ameaça estrangeira à independência nacional, devido à presença de ONGs internacionais, aos personagens públicos estrangeiros envolvidos, à defesa da autodeterminação dos povos indígenas; seja com acusação, como bem indicou Flavia Cera6, de “santuarismo”, e que remete a um ponto de vista que coloca o antigo no novo. Com efeito, Viveiros de Castro mostra como os ecologistas são associados a uma “cosmologia do capitalismo tardio”, “neo-religião da classe média”, “fiadores da salvação planetária”. Enfim, uma nova máscara para o velho messianismo cristão num mundo desencantado, que veria nos índios, nas árvores, nos animais e demais formas de vida os santos do século XXI. De todo modo, diz Viveiros, é sempre possível “desativar algo, tomá-lo pelo lado morto que tudo que é vivo não pode deixar de ter”. Mas, lembra o antropólogo, “o ambientalismo pode ser visto como um discurso radicalmente novo” e liga essa novidade ao modo como ele “recusa algumas partilhas fundadoras da Razão ocidental”, mais precisamente, recusa aquelas alternativas dadas de antemão e encerradas no campo do possível da Constituição Moderna. No artigo “Fichte é reacionário ou revolucionário?”7 (FRR), Goddard, para além de um rápido apanhado histórico da apropriação de uma obra e de um filósofo, leva a termo uma operação pela qual ele exibe a instauração de uma equivocidade no próprio devir do pensamento, de tal modo que a questão política decisiva consistirá na passagem, para além das alternativas encerradas num campo do possível, de um potencial ontogenético a outro. Com efeito, Goddard faz referência à publicação da tradução da segunda seção da Doutrina-do-Estado em 1831, com o seguinte título “A ideia de uma guerra legítima”, pelo editor Louis-Pierre Babeuf, em Lyon. Sabe-se da proximidade de Babeuf, filho de Gracchus Babeuf, revolucionário francês morto na guilhotina em 1797, com a Revolta de Canuts, segunda insurreição socialista do início da era industrial. Sabe-se, igualmente, da proximidade das teses babeuvistes com o pensamento político e econômico de Fichte. Considerado precursor do comunismo “G. Babeuf via no crescente número de ‘improprietários’ [improprietaires] uma força capaz de logo extirpar as raízes da ‘fatal’ instituição da propriedade”. Já Fichte, vê nos “Nichteigenthümer”, os “não-proprietários”, “a esperança de ‘um combate de vida ou morte’ pela instituição do ‘reino da liberdade’ que ele apresenta, na terceira seção da Doutrina-do-Estado, como sendo capaz de realizar, ao mesmo tempo, a abolição de toda coerção jurídica, a supressão de toda ‘desigualdade de propriedade particular, ‘todos podendo ser donos e podendo fazer usufruto comum das terras’”. Isso é possível, para Fichte, graças ao fato de que os não-proprietários “são livres de toda dependência aos meios de vida” (FRR). Ora, Goddard observa que o tradutor do texto de 1813, Pierre Lortet, escolhe traduzir o termo “Nichteigenthümer” justamente por “proletários”. “Notar-se-á, é claro, que o ‘Eigenthümer’ é, primeiramente, para Fichte, o ‘Grundeigenthümer’, o dono de propriedade, em relação ao qual (...) o não-proprietário é, sobretudo, o ‘Ackerbauer’, o camponês sem terra. Porém, confrontado à guerra moderna, que provoca a emergência de uma nova crítica social, o proprietário fichteano torna-se ‘der Bürguer’, ‘der Gewerbtreibende’, o burguês, o proprietário dos meios de produção e de distribuição dos bens, por oposição ao não-proprietário que pode, então, ser entendido como aquele que não possui ‘os meios de vida’” (FRR). É assim que aparece em Fichte, pela primeira vez, a oposição entre burguês e proletário que, lembra Goddard, não aparecerá em língua francesa antes de Saint-Simon e os saint-simonistas que a popularizam nos anos de 1830. É assim que, 17 anos antes da publicação do Manifesto Comunista, o público francês pode ler em Fichte, “quase palavra por palavra”, a “famosa frase” de Marx e Engels, segundo a qual “a sociedade inteira se divide, cada vez mais, em dois vastos campos inimigos, em duas classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletário”. “Com efeito, página seis da tradução francesa das Conferências sobre a guerra, lia-se: ‘a humanidade se divide em duas classes principais: os proprietários e os proletários” (FRR). No entanto, se não cedemos às tentações de uma fadiga que atinge um pensamento voluntarista movido por esforço, podemos avançar e descobrir novas nuances, capazes de mudar o problema. Com efeito, a tradução das Conferências sobre a guerra, que trazia “pré-inscrita” a frase do Manifesto de 48 é a seguinte: “a humanidade se divide, se decompõe, se quebra (se queremos devolver o pleno sentido ao ‘zerfällt’), não em duas classes, mas em duas “Grundstämme”, ou seja, duas estirpes, ou antes, duas linhagens fundamentais”. Em alemão: “die Menschheit zerfällt in zwei Grundstämme : die Eigenthümer, und die Nichteigenthümer”. E Goddard conclui: “não há ai um dualismo, mas uma dicotomia”. A partir daí, seguindo um exercício de rigor e precisão conceitual sem o qual não seria possível realizar um movimento autêntico de pensamento, Goddard liga diretamente Fichte ao problema central do pensamento político de Deleuze e Guattari. [caption id="attachment_753" align="alignleft" width="199" caption="Fichte (1762-1814)"][/caption] O que Fichte instaura, em 1813, em sua reação à invasão napoleônica, não é uma “máquina binária de classe social” do mesmo teor daquelas “inúmeras máquinas binárias que são as máquinas de sexo, homem-mulher, de idade, adulto-criança, jovem-idoso, de raça, branco-negro, de subjetivação, daqui-de fora, etc.”. Essas máquinas binárias formam uma das linhas de que somos feitos: “a linha molar de segmentaridade dura” que as disjunções exclusivas vêm recortar com suas alternativas: ou bem... ou bem... “Aliás, o corte que divide a humanidade, segundo Fichte, não é um corte propriamente dito, a cisão de uma mesma linha em dois segmentos, em dois blocos globalmente e sincronicamente opostos, tanto mais solidários quanto mais eles são opostos: ele é zerfall, des-integração, ela vem rachar uma unidade mais originária e a desintegra carregando as duas partes que ela divide segundo duas linhas de movimento radicalmente opostas e incompatíveis, de tal maneira que não se pode mais passar de uma a outra ao longo de uma mesma linha segmentada”. Ou seja, não mais passagem de um segmento de linha a outro, ou entre dois pólos do movimento de um pêndulo no interior do qual, a rigor, nada se passa. Em suma, a divisão é entre duas linhas. Para Goddard, desdobrando uma dimensão essencialmente política do bergsonismo de Deleuze, já indicada anteriormente por François Zourabivhvili, essa divisão é a do reacionário e do revolucionário. “De um lado, o proprietário, o territorializado, para quem a vida, o ser dado, é o fim último e que é, portanto, em relação ao ser, essencialmente conservador – conservador de sua vida, de seus bens, de seu território (...) visceralmente sedentário...; de outro lado, o não-proprietário, para quem o fim derradeiro é a liberdade e que ‘não possui pátria sobre a terra’”. Para Goddard, é essa divisão que atravessa e torna coerente o movimento de pensamento fichteano desde 1793 e permite que se compreenda o nacionalismo dos “Discursos à nação alemã”. Compreende-se, assim, que essa reflexão de Goddard, embora anterior ao Metaphysiques cannibales de Viveiros de Castro, já colocasse um problema político que nos parece fundamental para pensar as cosmologias indígenas que é aquele não da alteridade, não da diferenciação (tal como Deleuze pensa a realização de um possível) entre dois pólos constituídos no interior de uma totalidade ou campo dado (a oposição entre nacional e estrangeiro, p. ex.), mas da alteração, do devir-outro, de qualquer processo de individuação que é diferença/ciação (tal como Deleuze pensa a différenciation/différentiation como atualização/virtualização): esse último é o problema da oposição entre o nativo e o invasor que Goddard desenvolverá quatro anos mais tarde em seu “Fichte e a revolução aborígene permanente”. Com efeito, segundo Goddard, o pensamento reacionário e fascista “funda a ordem social sobre a identidade nacional e a concebe sob a forma de um pertencimento gregário e exclusivo”, ao passo que os “Discursos à nação alemã” separam o Estado e a nação, ao pensar o primeiro como “o meio [para manter a] ordem social”, “a paz interior” e a “conservação da vida e dos bens materiais”, enquanto a segunda, “a nação transcende o Estado” e deve ser compreendida “propriamente como o que libera da ordem social, conservadora e burguesa, garantida pelo Estado”. Esse sentido de “nação” refere-se à possibilidade de se “deixar uma ordem social por uma outra”, ou seja, é definida pelo “nomadismo político essencial ao homem da segunda linhagem (aquela dos não-proprietários)” que já não se ocupa de nada que seja relativo à produção, pois concebe a vida como devir, ou seja, para ele o possível não consiste numa alternativa, mas numa potencialidade, não é dado, mas deve ser criado8. É notável que tal idéia de nação permita a Goddard definir um “espaço” no qual essa linhagem da “humanidade efetua sua essência que é de ser constantemente em devir”. Ora, essa definição de 2007, anterior às Métaphysiques cannibales, comunica imediatamente com a definição que Viveiros de Castro oferece do socius Tupinambá, ou seja, dessa “topologia [que] não reconhecia totalidade, não supunha nenhuma mônada ou bolha identitária a investir obssessionalmente em suas fronteiras e a fazer uso do exterior como um espelho diacrítico de uma coincidência consigo mesmo. A sociedade era aqui, literalmente, um ‘limite inferior da Predação’ (Lévi-Strauss 1984 : 144), o resíduo indigerível; o que a movia era a relação com o fora. O outro não era um espelho, mas um destino”9. Não é exagero dizer que o devir-outro, “a inconstância da alma selvagem”, é o problema próprio tanto à metafísica da predação Tupi quanto à filosofia transcendental de Fichte, pois o que as aproxima não é uma simples analogia, mas uma mesma compreensão genética da vida, que Goddard define como “nomadismo político” ou “concepção desterritorializada do espaço nacional” e que, nisso que se chama de “Brasil”, alcançou sua forma rigorosa e precisa com a antropofagia oswaldiana10. [caption id="attachment_755" align="alignright" width="300" caption="Ana Gabriela Person Ramos protesta contra Belo Monte ao receber prêmio. Foto: AE."][/caption] Essa concepção nomádica tem a força de instaurar um novo ponto de vista sobre o ponto de vista. Com efeito, segundo Goddard, a distinção entre senhor e servo, entre proprietários de bens materiais e soldados que os defendem, entre burguês e proletário, “não tem sentido a não ser do ponto de vista do conservador”, ou seja, do proprietário. Do ponto de vista do não-proprietário, que não é, pois, o improprietário babouvista, ainda definido em referência às maquinas sociais binárias (diferença entre un-eigenthümer e nicht-eigenthümer no alemão), a humanidade não se divide em dois estados sociais, mas em duas linhas ontogenéticas: de um lado “a própria linha segmentada, com suas máquinas binárias”, “linha reacionária” e “sedentária”; de outro lado, “uma linha refratária a toda segmentação dura”, “linha revolucionária” e “nomádica”, “que libera do interesse de classe”, que não foge para a margem do social, mas na fuga, faz fugir o social. Goddard lembra aqui essa especificidade da fuga criadora pensada por Deleuze e Guattari em “O anti-Edipo”. Ao fazer fugir o social, a linha revolucionária forma uma nova polaridade com a linha reacionária: “não um dispositivo binário como o é todo dispositivo de poder, mas uma alternativa entre o binário, o dual, ou seja, o dispositivo reacionário de poder, e o simples, compreendido como multiplicidade não segmentada, excluindo todo poder – propriamente an-arquica”. A alternativa, dessa vez, não se deixa compreender como objeto de uma escolha, mas como alteração. Dessa maneira, é o próprio dualismo entre reacionário e revolucionário que se desfaz no momento em que a linha revolucionária atravessa os próprios termos em oposição nesse dualismo: “a oposição não é mais, então, entre o reacionário e o revolucionário, mas entre a máquina de poder que mantém tenazmente a oposição do reacionário e do revolucionário, da direita e da esquerda, do proprietário e do proletário, como instrumento de codificação da vida social, e a guerra revolucionária que descodifica o fluxo informe e infinito da vida para devolvê-lo ao livre movimento criador, ao ponto de recusar a oposição do reacionário e do revolucionário como acesso à própria essência do revolucionário” (FRR). Nesse sentido, quão decepcionante, raquítico11 e fatigante um pensamento como aquele de Emir Sader que se diverte, primeiro fazendo passar Marina Silva e todo o movimento ambientalista de um pólo a outro de um pêndulo, para em seguida declará-los fora desse pêndulo que é, para ele, todo o campo do possível e suas alternativas dadas. Com efeito, ao afirmar que, no Brasil, o “campo político está constituído, é uma realidade incontornável, em que a esquerda e a direita ocupam seus eixos fundamentais”, é o próprio dispositivo de poder, de codificação social que ele coloca em ação. Curioso que ele encerre o artigo afirmando: “pode situar-se no campo da esquerda ou, se buscar subterfúgios, pode terminar somando-se ao campo da direita, ou ficar reduzido à intranscendência”. Ora, justamente por estar preso ao dispositivo de poder, ele é incapaz de pensar qualquer via política que não busque aceder à transcendência da linha dual. Por exemplo, uma via que seja nela mesma abertura de outro espaço, aquele da imanência, da passagem que faz fugir o social numa linha criadora, recusando as alternativas ou disjunções exclusivas que fecham a situação dentro do que é dado: o ambientalismo atualiza justamente essa linha aberrante, um conjunto aberto de práticas que fazem o social fugir abrindo um campo de possíveis. Mas a linha nela mesma não é social, ela é propriamente afetiva, implica a afetabilidade como capacidade de “abertura à formação e ao encontro infinitos”. “Ora, é preciso coragem para amar a afetabilidade, para não se amar a si mesmo através de uma forma de vida determinada e segura”. Ou seja, a linha revolucionária envolve a criação de novos modos de vida pela destruição dos interesses sociais determinados pelo dispositivo de poder – o que exige, certamente, coragem e vontade de mudar de vida. Assim, “a linha revolucionária que passa entre os segmentos duros instituídos pela máquina binária de assujeitamento separa aqueles que têm a coragem de fugir e aqueles que têm a covardia de ficar”. É notável, assim, que a tradução do texto fichteano pela edição de Babeuf seja “Da ideia de uma guerra legítima”, e seu uso não tenha captado sua novidade política. Com efeito, não se tratava, para Fichte, de legitimar uma guerra justa, mas de autenticar o que lhe parece a verdadeira guerra. Ora, tanto os fascismos quanto os nacionalismos, tanto a esquerda quanto a direita fizeram uso desse texto para exaltar a guerra e “obter o apoio das massas”. Porém, a guerra verdadeira não se refere a um “afrontamento” entre “entidades globais” (nações, classes, raças), não “determina rivalidades segundo uma ordem de pertencimento” (oposição, situação, direita, esquerda). Ela consiste em “relançar constantemente ao infinito os processos de fuga”, de tal maneira que a fuga entre num “agenciamento” capaz de constituir o que Deleuze e Guattari chamam de “máquina de guerra”. Porém, ela corre sempre o risco de constituir uma linha de destruição pura e simples (paixão da abolição), ou ainda de reconstituir a ordem opressiva que ela combate. Como assegurar que ela não se perca nem numa linha de morte, nem numa recodificação reacionária? Para Goddard a guerra verdadeira implica um entrecruzamento entre a linha revolucionária e a linha segmentada de tal modo, entretanto, que “a energia neutra liberada pela fuga não resulte na produção de uma nova máquina de poder (para a qual a oposição entre reacionário e revolucionário seria novamente uma segmentação dura – tal que ‘revolucionário’ se tornaria uma categoria reacionária)”. É aqui que se pode explicar o fracasso das revoluções, e também sua confusão com o estado de coisas, mas também o devir-revolucionário enquanto acontecimento, liberação de uma energia neutra e invenção de um povo. A questão é a das mais difíceis, pois implica em pensar como permanecer na criação, sem recair no constituído e suas alternativas entre conservar (direita) e transformar (esquerda), ou mesmo transformar o que se conserva ou conservar o que se transforma (reformismo). É preciso um esforço atlético, por parte de um pensamento involuntarista, em se permanecer nessa paradoxal estação no movimento, ao passo que a segmentação dura implica sempre uma fadiga fatal em decorrência do esforço de um pensamento voluntarista. É que a máquina de guerra revolucionária é, segundo Goddard, uma máquina antropológica. Com efeito, Fichte fala, em sua Staatslehre, em dois gêneros humanos originários que nos remete a dois potenciais ontogenéticos diversos. Essa distinção “retoma e precisa para além de sua significação social” as duas linhagens de que tratamos acima. “Ela opõe dessa vez, diz Goddard, citando Fichte, um primeiro gênero humano por revelação ao qual ‘o estado da humanidade conforme à razão é dado como qualquer coisa que não pode não ser desejado, porque ele é absolutamente na humanidade’, e um segundo gênero humano sem revelação, livre, que é ‘o verdadeiro gênero humano propriamente dito’, para o qual o estado da humanidade conforme à razão precisa devir por liberdade’”. É a oposição entre aqueles que lutam pela conservação do ser (proprietários) e aqueles que lutam pelo que deve ser conquistado pela liberdade (não-proprietários). A oposição entre dois gêneros humanos é, na verdade, entre “duas formas da vida temporal”, dois regimes sensíveis ou ontogenéticos do vir-a-ser da existência: “a vida na forma do ser e a vida na forma da gênese”. Fichte caracteriza desta maneira, segundo Goddard, o segundo gênero: “a característica fundamental para si do segundo gênero originário é o desencadeamento ilimitado da faculdade de formar/imagear (Bildunsgvermögen) em sua relação com a prática, sem possuir em si mesmo um ponto de parada ou uma lei qualquer” (FRR). A linha nômade, de fuga, revolucionária mostra aqui seu perigo, pois, com efeito, se ela ganhasse a guerra contra o primeiro gênero humano, a linha do poder, o risco seria o de se deixar levar pela paixão de abolição, de si e dos outros. A solução fichteana parece, num primeiro momento, bastante questionável. Trata-se de fazer com que o primeiro gênero, através do categórico (do Solldeve), de sua regra ou lei, determine o segundo, conservando sua liberdade, a energia neutra, a vida na forma da gênese, para que o máximo de criação seja a cada vez liberado (devir). Onde reside o problema nessa solução? Na clara determinação do livre pelo necessário. Mas é justamente ai que Goddard vê uma nuance. Na determinação do segundo gênero pelo primeiro é a forma categórica que se torna hipotética: “a imagem revelada e imposta como a única possibilidade se re-possibiliza”. Justamente porque o categórico se apresenta na forma do Soll é que ele constitui um problema para a liberdade, de tal maneira que esta última não mais foge seguindo a destruição do ser dado, mas faz fugir seguindo uma linha de “problematização e de genetização” do dado, deslocando a ordem dada, esgotando o possível e suas alternativas, ao longo de um devir criador de novas formas de vida. Passamos de um simples modelo subversivo, encerrado nas alternativas de um campo constituído, para um processo perversivo12 capaz de alterar o dado, devorá-lo, instaurando o novo. Somente esse processo pode dar conta de uma revolução permanente que nega toda determinação do exterior (linha sedentária) para afirmar a autodeterminação como lei vital, como lei imanente pela qual o novo se engendra incessantemente segundo uma atividade formadora pura ou ideal. O alcance filosófico do idealismo fichteano apenas pode ser medido levando-se em conta o sentido preciso e rigoroso dessa atividade ideal. Com efeito, na Doutrina-da-Ciência de 1812, Fichte propõe conduzir o real a um sistema de imagens que não repousa nem sobre um ser objetivo, nem sobre um fundamento subjetivo. Em outras palavras, o que Fichte recusa aqui é a metafísica clássica, grega, mas também a metafísica moderna, num gesto que Bergson saberá retomar por conta própria mais tarde. Esse sistema de imagens repousa sobre a própria atividade imageante criadora. “Pois o idealismo fichteano, se ele afirma o princípio de uma autodeterminação da atividade espiritual, ele recusa também o dualismo do espírito e da matéria” (FRR). Mundo material e mundo espiritual não existem fora da “atividade imageante e formadora de um mundo essencialmente em devir”. Esse idealismo tem, negativamente, a força de recusar a objetidade que caracteriza toda filosofia do Ser: seja enquanto objetidade material das coisas, seja enquanto objetidade imaterial do sujeito abstrato, seja enquanto objetidade do Em-si teológico. Por outro lado, ele tem, positivamente, a força de oferecer um conceito de idéia completamente inovador: elas são visões (Gesichter), imagens (Bilder), aparições (Erscheinungen) que envolvem uma relação com coisas imageadas, mas que delas não procedem, engendrando-as na relação mesma, tal como a “experiência luminosa” dos xamãs Yanomamis13. “Essas imagens são sem substrato, nem objetivas, nem subjetivas; mas elas são as determinações, as modificações múltiplas de uma única força ou de uma única vida imageante/formadora, de que elas afirmam tanto mais a potência quanto mais elas são diretamente submissas à lei prática de auto-determinação. Somente essa submissão é propriamente revolucionária”. Vale dizer, perversiva! [caption id="attachment_756" align="alignleft" width="226" caption="Antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro"][/caption] Ora, o ambientalismo dos ecologistas, como força política, é propriamente revolucionário na medida em que afirma uma tal lei prática de auto-determinação, não segundo uma simples vontade de “preservação” da natureza, dos diversos seres vivos e biomas, o que faria dele apenas uma manifestação da Constituição Moderna e sua separação entre o sujeito de direito (política), os “assuntos humanos” (praxis), de um lado, e o objeto de conhecimento (ciência), a “gestão-produção das coisas” (téchne), de outro (cf. I. Stengers). Ou seja, se assim o fosse, ele seria mais uma expressão de um potencial genético que está na base de uma política sensível de distribuição hierárquica/hierarquizante dos corpos em lugares e funções, segundo operações de mediação (estratificação) cada vez mais sofisticadas ligando o molecular ao cósmico (comunidade midiática). Bem diferente disso, os ecologistas criam outro potencial ontogenético que faz da “perseverança” a lei de um elã vital, de que os diversos seres são os modos múltiplos, quer dizer, as multiplicidades livres, moventes e mutantes, os graus intensivos ou perspectivas de uma diferença virtual que os percorre a todos. Seria preciso pensar uma política heterogênea e heterogeneizante, “fonte de relançamento processual” incessante de que a diplomacia xamânica dos ameríndios é uma prática das mais rigorosas e sofisticadas (comunidade imidiática)14. É bem o que faz Viveiros de Castro, ao falar do Ambientalismo como de uma nova “geofilosofia política” que oferece, no seio de uma drama decisivo, um outro sentido de futuro : “deixando para trás a dialética do Estado e a da Natureza, estas duas totalidades imaginárias entreconstituídas por um confronto de onde sempre estiveram excluídas a gente humana e suas miríades de associações com outras gentes, outras forças – pois ela se via ora convenientemente representada no primeiro, ora compulsoriamente assimilada à segunda” – a geofilosofia política troca “a naturalização da política pela politização da natureza, ligando diretamente a terra à Terra por cima das fronteiras, códigos e outros estriamentos das velhas territorializações estatais”, enfim, ela constitui uma “cosmopolítica do ambientalismo” que “recusa ao Estado a guarda do infinito e o privilégio da totalização” e à “Natureza”, a “ sua função tradicional de Supremo Tribunal Ontológico”, efetuando a abertura “a uma cosmopraxis polívoca, múltipla, e simétrica” que desfaz os pressupostos da Constituição Moderna. Aqui a diferença entre o “desenvolvimentismo econômico” e o “reenvolvimentismo intensivo” pode ser compreendida segundo a dicotomia instaurada pela máquina de guerra revolucionária ambientalista. Com efeito, a perseverança, ou regime sensível na insistência, no acontecimento (homo tantum), não deve ser entendida como permanência nos segmentos duros (conservação do ser). Ela se refere à relação genética que as práticas, inclusive a filosófica, em ruptura com o dado, instauram, ligando o pensamento, ele próprio entendido como multiplicidade, às multiplicidades que povoam a Terra, criando um ambiente, um meio, uma habitação: enfim, fazendo do si mesmo um devir-outro ou alteração, de tal modo que o natal não é aqui delimitação de um interior em relação ao exterior, mas devoração ou dobra da exterioridade, instaurando novos dinamismos espacio-temporais intensivos, socioambientais15. Em nada essa natividade tem a ver com uma identificação nacionalista, racista, integrista, etc. Ao contrário, ela é uma condição transcendental de experiências reais de tipo “transnacionalistas” e “transversalistas” que, como viu Guattari, são as únicas capazes de nos tirar do “impasse planetário” a que nos conduziu o sistema capitalista. Como se sabe, Guattari chamou de ecosofia à articulação transversalizante entre as diferentes ecologias (ambiental, científica, econômica, urbana, social, mental, etc.). Essa “concatenação” em nada se assemelha a um englobamento numa “ideologia totalizante e totalitária”, mas uma “escolha ético-política” pelo “dissenso criador”, pelo “nomadismo existencial”, que Guattari aproxima, sem propor como um retorno, daquele dos “Índios da América pré-colombiana ou dos Aborígenes da Austrália”. Portanto, a guerra verdadeira ou legítima do ambientalismo não é outra coisa a não ser esse combate ontogenético entre diferentes potenciais comunitários. O ambientalismo estende cada vez mais uma linha de “alianças demoníacas” entre as tecnologias e as artes, a memória geológica e a “imaginação conceitual”, a invenção científica e o atletismo filosófico, a partir das quais os diferentes agentes se interpenetram e se envolvem num processo criador de novas possibilidades de diferir a potência da Vida lá onde – ou seja, aqui na imanência da Terra – o possível é adequado forçadamente ao desenvolvimento de um modelo cujo limite é a Morte. Nesse sentido, o ambientalismo renova o sentido do apelo de Bergson que, diante das ameaças decorrentes dos modos de vida frívolos da “sociedade afrodisíaca”, no limiar da Segunda Guerra Mundial, constatou que era chegada a hora de a humanidade decidir se queria continuar a viver. Cleber Lambert, Cambuí, 27 de dezembro de 2011

Notas:

1 https://revistaforum.com.br/idelberavelar/2011/11/22/discurso-as-nacoes-indigenas-por-cleber-lambert/ 2 P. ex. o erro, a ilusão, a loucura, mas também o sonho, a imaginação, etc. Cf. Bento Prado Jr, Erro, Ilusão e Loucura. Ed.34, Rio de Janeiro, 2004. 3 Cf. Bruno Latour, Jamais fomos modernos. Ed.34, Rio de Janeiro, 1994. 4 Eduardo Viveiros de Castro, “Desenvolvimento econômico e reenvolvimento cosmopolítico: da necessidade extensiva à suficiência intensiva”, Sopro 51. 5 A ontogênese resulta sempre de um conjunto aberto de práticas que envolvem relações diversas tais como aquelas entretidas com o corpo, a sexualidade, a imaginação, a diversidade socioambiental, o trabalho, o esporte, etc. Ela exprime assim a constituição de modos de existência imanentes, interessantes ou repugnantes, potentes ou ignóbeis. Resultado a cada vez de uma avaliação imanente, em campos de forças, tensões e distâncias, um potencial ontogenético em nada se assemelha à “identidade cultural” de uma civilização que, tal como em Huntington, resulta de traços arbitrariamente escolhidos, meramente decalcados de uma certa doxa (opinião) e, portanto, redutores, cf. Samuel P. Huntington, The Clash of Civilizarions and the Remaking of Word Order. 6 Cf. A natureza é mundo, disponível em http://www.culturaebarbarie.org/mundoabrigo/flavia-cera/2011/12/ 7 J.-Ch. Goddard, « Fichte est-il réactionnaire ou révolutionnaire? », in Fichte et la politique, Polimetrica, 2008. 8 F. Zourabichvili mostrou que, longe de todo voluntarismo, seja na forma da boa vontade ou da vontade de nada, a instauração de um novo regime sensível implica a passagem a um “outro regime de possibilidade”, no qual o que conta é a má vontade ou o nada de vontade. Cf. “Deleuze et le possible, de l’involontarisme em politique”, in Deleuze, une vie philosophique. Org. Eric Alliez. Les empêcheurs de penser en rond, 1998. 9 Cf. Eduardo Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem. Ed. Cosac Naify, 2002, p.220 et Métaphysiques cannibales. Ed. Vrin, Paris, 2009. 10 Como já havia dito no “Discurso às nações indígenas” e no “Modernisme brésilien et anthropophagie”, é segundo uma tal concepção genético-antropofágica que é preciso ler Darcy Ribeiro, de tal modo que o “povo brasileiro” não remete a uma totalidade extensiva e suas diferenças exteriores, mas a um ovo intensivo e suas diferença/ciações internas. Aliás, esse ovo intensivo é inseparável de um brasil-menor que faz fugir o Brasil, cf. http://www.europhilosophie.eu/recherche/IMG/pdf/Modernisme_bresilien_et_anthropophagie_Cleber_LAMBERT.pdf 11 Glauber Rocha já chamava a atenção para esse efeito das estruturas colonialistas do pensamento: o raquitismo filosófico que delas resultam. O regozijo com o “crescentismo” e sua forma predatória de desenvolvimento apenas expressa o quanto um certo nacionalismo de esquerda vive da importação de “consciência em lata”, com todo o potencial ontogenético alienígena, modos de viver e de pensar, que ela encerra. Por isso, do ponto de vista do “homem nu” oswaldiano, tais homens “vestidos” jamais entenderão. R. Sganzerla também afirmava: “quem não entendeu até agora não vai entender nunca”. 12 Cf. a preciosa leitura de F. Zourabichvili, ver nota 6. 13 Cf. o belo texto de Viveiros de Castro “A Floresta de Cristal” (disponível em http://amazone.wikia.com/wiki/A_Floresta_de_Cristal). Já havíamos insistido na potência política dessa experiência luminosa em outro artigo, “La fôret de cristal de millevaches: ecosophie et cosmopolitiques amazoniennes”, a ser publicado em março de 2012 no número especial da revista Chimères em torno da Ecosofia. 14 Tratamos dessa dicotomia entre dois potenciais ontogenéticos como uma equivocidade entre dois modos de comunidade em nossa dissertação de mestrado, « Comunicação imidiática: para colocar de vez o problema comunicacional”: o comum (diferença) como efeito de uma síntese disjuntiva, do dissenso, de um encontro, de um lado, e o comum (identidade) como operação de inclusão exclusiva, de consenso, de pertencimento, de outro. Ela pode ser acessada no endereço: http://www.faac.unesp.br/posgraduacao/Pos_Comunicacao/pdfs/cleber.pdf 15 Cf. a relação entre diversidade, informação e ocupação estabelecida por Viveiros de Castro: “A diversidade das formas de vida na Terra é consubstancial à vida enquanto forma da matéria. Essa diversidade é o movimento mesmo da vida enquanto informação, tomada de forma que interioriza a diferença – as variações de potencial existentes em um universo constituído pela distribuição hete­rogênea de matéria/energia – para produzir mais diferença, isto é, mais informação. A vida, nesse sentido, é uma exponenciação: um redobramento ou multiplicação da diferença por si mesma. Isso se aplica igualmente à vida humana. A diversidade de modos de vida humanos é uma diversidade dos modos de nos relacionarmos com a vida em geral, e com as inumeráveis formas singulares de vida que ocupam (informam) todos os nichos possíveis desse mundo que conhecemos. A diversi­dade humana, social ou cultural, é uma manifestação da diversidade ambiental, ou natural – é a ela que nos constitui como uma forma singular da vida, nosso modo próprio de interiorizar a diversidade “externa” (ambiental) e assim reproduzi-la”. Ver nota 3.