Eles querem você

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Feriado. Você acorda de manhã e vai ver desenhos junto com seu irmãozinho. Espera encontrar as versões mais recentes do He-man, dos Thundercats ou dos Comandos em Ação, como sempre foi desde sua época. Em vez disso, o que encontra são figuras com olhos e bocas enormes envolvidos em histórias que variam da costumeira salvação do mundo ao insólito primeiro dia na escola. Você se lembra de coisas assim, afinal, já assistiu ao Robô Gigante e até pegou uma parte dos Cavaleiros do Zodíaco. Mas de onde saíram tantos desenhos japoneses?

Animações e quadrinhos japoneses estão em franca expansão no mercado brasileiro. Hoje, mais da metade dos desenhos exibidos nos programas infantis de televisão são nipônicos, chamados de animês. Quanto aos quadrinhos, a situação é mais assustadora. Mesmo antes da chocante retirada da gigante editora Abril, os mangás já eram maioria absoluta entre as publicações regulares, com mais de quinze títulos contra cerca de dez americanos. “É uma onda que já dura alguns anos e ainda não mostra sinais de fraqueza”, conta Sidney Gusman, editor executivo da linha de mangás da Conrad Editora, uma das primeiras a investir pesado no estilo. “No Brasil, hoje com certeza nós vendemos mais que os quadrinhos de super-heróis norte-americanos”, completa.


Esse fenômeno não é tupiniquim. No mundo todo os heróis nipônicos vêm ganhando espaço, mesmo em países com tradição em histórias em quadrinhos, como Espanha e Itália. Até mesmo nos EUA, berço de alguns dos maiores ícones da cultura de massa, como Batman e Homem-Aranha, cujo filme está rendendo bilhões aos cofres de Hollywood. É por cima desse tipo de lenda que a cultura oriental está passando para chegar até nossas casas.

E não pense que a invasão não tem importância. Junto com a avalanche de personagens carismáticos de desenhos caricaturais, sem muita preocupação com o realismo, vêm costumes e valores do povo japonês, da mesma forma que Hollywood nos bombardeia há décadas com o “american way of life”. É o início de um embate entre duas poderosas indústrias, no qual as maiores vítimas podem ser, como até agora, as culturas dos países periféricos.

Essa silenciosa invasão oriental não aconteceu de uma hora para outra. Os mangás e animês são produtos conhecidos há muito tempo pelo público ocidental, mas numa escala menor. Mas é dentro do Japão que essa máquina mostra sua força. Lá, os mangás atingem tiragens gigantescas, na casa dos milhões de exemplares. A revista Shonen Jump, por exemplo, é uma das semanais mais vendidas e de longe a revista em quadrinhos com maior circulação do mundo, com cerca de 6 milhões de exemplares por semana.

Uma explicação sobre o modo de editoração japonês. As revistas não são destinadas a um personagem, como nos EUA. A Shonen Jump traz entre dezessete e dezoito histórias de personagens diferentes em suas 420 páginas. Apenas as histórias de maior sucesso ganham edições especiais para colecionadores. Como são baratas, são consideradas descartáveis e jogadas fora logo após o consumo. É bastante comum encontrar mangás nos metrôs e trens do Japão.

Quanto aos animês, geralmente são subprodutos dos mangás. “Existe um caminho básico no mercado japonês, em que um personagem começa nos quadrinhos, depois vira desenho animado e, se for ainda mais bem-sucedido, videogame”, diz Júlio Moreno, publisher da JBC editora, que divide o mercado brasileiro de mangás com a Conrad. “E no caminho sempre surgem bonecos, brinquedos, sapatos e todo tipo de produto inspirado nos personagens”, ressalta.

É um complexo sistema de merchadising que favorece muito na divulgação. Um ajuda a vender o outro, inundando o mercado com produtos interligados. Esse foi um dos fatores que influenciaram nesse crescimento dos mangás. “Os leitores de quadrinhos de hoje cresceram assistindo Cavaleiros do Zodíaco. A próxima terá crescido com Pokemón, Digimon e outros. Eles estão acostumados com a linguagem oriental”, destaca Moreno.

Outra característica do mercado editorial japonês é sua quantidade de gêneros. Enquanto no ocidente as histórias em quadrinhos são destinadas a um público infantil ou adolescente, geralmente masculino, no Japão todas as faixas etárias estão representadas, bem como os dois sexos. É comum ver executivos ou mães de família lendo mangás. “Os japoneses não têm o preconceito que há por aqui, de que quadrinhos é coisa de criança e adolescente”, lembra Gusman. “Uma revista séria como a Vagabond, que visa a um público adulto, vendeu cerca de 22 milhões de cópias só no Japão”, completa.

Os mangás, na verdade, são parte importante da cultura japonesa. “As pessoas crescem com eles dentro de casa e adquirem o hábito. É como as novelas aqui no Brasil, são parte de um contexto”, compara Moreno. Isso que gera uma extrema segmentação do mercado. Existem mangás para garotos, com heróis ou sobre esporte, para meninas, que falam de amor, para homens adultos, para senhoras, para jovens mães, entre tantos outros, cada um com sua revista específica. A já citada Shonen Jump (algo como pulo jovem) destina-se a adolescentes masculinos entre 12 e 15 anos. Ela gerou alguns filhotes, como a Shojo Jump (para meninas), a Young Jump (para adolescentes mais velhos), Business Jump (para jovens de negócios) e Super Jump (para jovens adultos). “A indústria do mangá, com seus diversos gêneros, é mais sofisticada do que a do quadrinho americano”, destaca Waldomiro Vergueiro, coordenador do Núcleo de Pesquisa em Histórias em Quadrinhos da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP). “A tendência das editoras ocidentais é essa, sair um pouco dos adolescentes masculinos e buscar outros públicos”, prevê.
Mas por que os quadrinhos exercem tanto fascínio sobre os japoneses? Para Vergueiro, os mangás são uma válvula de escape para eles. “A sociedade japonesa é muito regrada. Todas as relações sociais são regidas por uma disciplina extrema”, lembra. “No mangá as coisas são mais leves. O homossexualismo, por exemplo, é tratado com naturalidade, bem como os relacionamentos entre adultos e adolescentes, quando lá ambos sofrem preconceito muito forte, mais até que aqui”, defende.


Entretanto, se a reprimida sociedade nipônica precisa dessa fuga tão drástica, o mesmo não pode ser dito do ocidente, mais liberal e expansivo. E os heróis tradicionais, com seus superpoderes e sua disposição para fazer justiça, pareciam sólidos até agora em nosso imaginário. Mas as vendas de quadrinhos ocidentais estão caindo em todo lugar, desmascarando nossos heróis. “As histórias dos quadrinhos tradicionais não se renovam. Elas se tornaram narrativas fechadas que giram em círculos e os personagens se tornaram caricaturas deles mesmos. Isso inibe a entrada de novos leitores”, explica Vergueiro.

Nossa cultura foi e ainda é fortemente influenciada pela inundação feita pela indústria cultural norte-americana. Isso dificulta, por exemplo, a formação de uma linguagem nacional característica no cinema. A entrada de um novo pólo dominador não vai melhorar as coisas. “Toda indústria cultural busca a hegemonia”, diz Vergueiro. “Os mangás e animês estão se estruturando para dominar outros mercados. Guardadas as proporções, é a mesma idéia de Hollywood”.

De uma forma ou de outra, é mais uma complicação para os quadrinhos nacionais. “A indústria nacional não está criando novas saídas. Alguns utilizam elementos americanos, outros elementos japoneses, mas não há uma criação com características próprias”, lamenta Vergueiro.