Eles sabem que são culpados

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Em 1995, no momento em que assumia a presidência do Banco Mundial, James Wolversohn aceitava o desafio de uma avaliação comum com importantes organizações não governamentais de desenvolvimento, especialmente norte-americanas, para avaliar os efeitos dos Programas de Ajuste Estrutural (PAE). De fato, são programas que, ao condicionarem o acesso ao crédito a uma redução dos gastos do Estado, à privatização de certos serviços públicos, à abertura dos mercados etc., haviam provocado inúmeras críticas por causa de seus efeitos sociais particularmente negativos e do caráter não democrático de sua imposição. Ora, noventa países em todo o mundo haviam sido submetidos a tais programas, sobretudo no Sul.


Criou-se um órgão comum, a Iniciativa para a Revisão Participativa dos PAE. A coordenação das Ongs foi organizada no seio da Rede Internacional da Sociedade Civil para uma Revisão dos PAE (Saprin). O compromisso do presidente do banco era apenas aceitar as conclusões desses trabalhos para, eventualmente, agir de outra maneira.

Para garantir a independência do trabalho, o financiamento foi assegurado conjuntamente pelo governo da Noruega, da Suécia, da Bélgica e da Alemanha, pela União Européia e por algumas fundações norte-americanas, como Rockefeller, W. K. Kellog, C. S. Mott etc. O estudo incidiu sobre Gana, Uganda, Zimbábue, Mali, El Salvador, Equador, Bangladesh e Hungria. Em três outros países: México, Filipinas e Argentina, para os quais o Banco Mundial e os governos locais se recusaram a colaborar, as ONG parceiras do projeto montaram uma iniciativa paralela, chamada Avaliação Cidadã do Ajuste Estrutural - Evaluation citoyenne de l’ajustement structurel. 

No dia 15 de abril de 2002, em Bruxelas, a Saprin tornou público o resultado de mais de seis anos de pesquisas e de consultas. O documento publicado se intitula The Policy Roots of Economic Crisis and Poverty (As Raízes Políticas da Crise Econômica e da Pobreza). O Banco Mundial, no entanto, recusou-se a se associar a essa apresentação, tendo criado mais e mais dificuldades para o projeto à medida que os resultados dos trabalhos se mostravam negativos. Já depois da cúpula do G8, em Gênova, o presidente James Wolversohn brilhou por sua ausência em uma apresentação preliminar dos trabalhos em Washington. De uma operação que, se presumia, deveria restabelecer a credibilidade do banco após a campanha 50 Anos é o Bastante, a iniciativa se revelava, de fato, altamente prejudicial. Porém, como o mal já estava feito, a única saída era evitar o pior. Um número muito pequeno de informações provenientes das análises foi incorporado aos relatórios dos países e quase nada chegou a Washington. Nenhuma referência nos relatórios de auto-análise do banco nem, é claro, nos programas de ajuste.

Ora, ninguém podia duvidar da seriedade da operação. Ela provinha de respeitadas organizações da Sociedade Civil e a origem de seus recursos estava acima de qualquer suspeita. A metodologia do trabalho havia sido preparada junto com o Banco Mundial. Os resultados foram submetidos a grupos de especialistas e discutidos com representantes de diversas sociedades locais. Nada foi deixado ao acaso e deu-se o tempo necessário ao projeto a fim de não chegar a conclusões precipitadas nem a resultados discutíveis. Por outro lado, o orçamento alocado era considerável, permitindo a ampliação dos meios científicos necessários e a organização das inúmeras consultas. E tudo isso não foi suficiente para convencer o Banco Mundial, cada vez mais acuado no banco dos réus.

Os resultados desses trabalhos estão contidos em vários volumes. Foram resumidos num texto-síntese muito documentado, em que se verifica que nenhum dos objetivos dos PAE foi atingido. Ao contrário, evidencia-se nele que essas políticas contribuíram amplamente para fragilizar os grupos sociais mais vulneráveis, para aumentar as distâncias sociais e a pobreza e para agravar alguns problemas de natureza macroeconômica. Estes são, de modo sucinto, os principais elementos do que se constatou.

Políticas precipitadas e indiscriminadas de liberalização comercial e financeira enfraqueceram, sistematicamente, a capacidade produtiva dos países que aplicam as políticas do Banco Mundial e aumentaram sua incapacidade para gerar emprego. A pobreza ampliou-se por causa das taxas proibitivas dos serviços essenciais. O relatório da Saprin cita seis conclusões principais.

Neoliberalização
As políticas de liberalização, a redução das ajudas públicas e o enfraquecimento da demanda de bens e serviços locais arrasaram as indústrias dos países estudados, principalmente as pequenas e médias empresas que fornecem a maior parte dos empregos. Elas não podem concorrer com a enxurrada de importações, com freqüência subsidiadas, nem se permitir ter acesso ao crédito, que se tornou caro demais, o que facilita a especulação às expensas da produção.

Um exemplo disso é o Equador onde, durante o período de liberalização (de 1990 a 1998), as importações aumentaram 15% e as exportações, 5,6%. O valor dos bens de consumo importados nesse período multiplicou-se por seis. As vendas dos produtos industriais locais caíram de 40%, em 1985, para 31% em 1998. No Zimbábue, a produção industrial local diminuiu 20% entre 1991 e 2000. Tudo isso ilustra o fato de que a abertura indiscriminada dos mercados destrói a possibilidade de um real desenvolvimento das empresas nacionais.

Em Bangladesh, depois de feitas as reformas, 1% dos que emprestam dinheiro monopolizaram 70% dos fundos disponíveis, enquanto 95% deles tiveram acesso a apenas 14% do crédito. Mais de 2/3 das pequenas e médias empresas não puderam conseguir crédito por causa do custo muito alto das taxas de juro e da impossibilidade de satisfazer as exigências das instituições bancárias para um empréstimo. Em resumo, o resultado dessas políticas foi uma concentração da capacidade financeira nas grandes empresas, sobretudo urbanas, o estímulo à especulação e ao investimento em atividades não produtivas. Por outro lado, a diminuição dos controles públicos enfraqueceu a ação do Estado.

Concentração rural
As reformas estruturais e setoriais impostas pelo Banco Mundial nos setores agrícola e de mineração alteraram gravemente a viabilidade dos pequenos camponeses, diminuíram a segurança alimentar e deterioraram o meio ambiente. A importação de alimentos a preço baixo, a supressão dos subsídios à produção agrícola, a retirada do Estado das atividades de suporte técnico, financeiro e comercial e a tônica na exportação aumentaram a marginalização dos pequenos agricultores, obrigando-os a superexplorar os recursos naturais. A concentração das terras para as culturas de exportação em grande escala teve como conseqüência o abandono da produção de alimentos para o consumo local. Em vários países, uma causa importante da insegurança alimentar foi a baixa produtividade, ligada às políticas de reformas que reduziram as intervenções do Estado em favor dos serviços de extensão e as ajudas à produção.

Em Uganda, os pequenos camponeses não puderam usufruir dos frutos da cultura de exportação de café porque não possuíam terras suficientes e os preços dos insumos subiram consideravelmente. A desigualdade da renda entre as regiões exacerbou as desigualdades já existentes.

Por outro lado, a liberalização, a desregulamentação e a privatização do setor de mineração aprofundaram a erosão do meio ambiente e diminuíram a fertilidade da terra de muitos pequenos agricultores e de populações indígenas. É o que se deu em Gana, no Tarkwa, onde o sistema tradicional de alqueive, que facilitava a produtividade do solo, teve de ser abandonado por causa da atividade de mineração, enquanto a redução da vegetação destruía a diversidade biológica. Na ilha de Manicani, nas Filipinas, a contaminação dos rios e riachos tornou-os impróprios para o fornecimento de água potável e impraticáveis para pesca e atividades de recreação.

Emprego
As reformas do mercado de trabalho e as demissões – frutos das privatizações, da redução do setor público e do desmoronamento dos setores de alto nível de emprego – enfraqueceram seriamente a posição dos trabalhadores. O nível de emprego caiu e se tornou mais instável ainda. Os salários reais deterioraram-se. O caráter desigual da distribuição da renda cresceu e a flexibilidade do trabalho reduziu os direitos dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que desestruturava a atuação dos sindicatos. Muitas empresas públicas foram privatizadas sem regulamentação adequada.

No México, o poder de compra dos trabalhadores caiu 75% ao longo dos dezoito anos de aplicação de medidas de ajuste, ao passo que havia aumentado 54% durante os 45 anos anteriores. No Equador, o desemprego cresceu mais que o dobro durante o período de ajuste, passando de 6%, no fim da década de 80, a 14,4 %, em 1999. Os 20% mais pobres da população sofreram o aumento da taxa de desemprego de 10% para 24%, conforme o setor, enquanto os 20% mais ricos continuavam num nível praticamente inalterado. O subemprego passou de 45,5% para 50% no mesmo período. No decorrer da segunda metade da década de 90, 72% das grandes e médias empresas começaram a admitir trabalhadores temporários, enquanto que 38% delas demitiam empregados do quadro permanente. No Zimbábue, o emprego na indústria manufatureira caiu 3% em seguida às reformas.

Privatizações
A privatização dos serviços públicos, a imposição de pagamento pelos tratamentos de saúde e pela educação, bem como a diminuição dos orçamentos sociais, reduziram de forma considerável o acesso dos pobres aos serviços coletivos. O aumento do custo do ensino escolar fez crescer a taxa de abstenções e o aumento do custo dos tratamentos médicos afastou grande número de pobres de seu uso. Dessas políticas resultou também uma deterioração das infra-estruturas, principalmente nas regiões rurais. A formação e os salários do pessoal desses setores foram seriamente afetados. Por outro lado, é sempre o capital estrangeiro que é investido na recuperação de alguns serviços públicos, aumentando o fenômeno da dependência. Na Hungria, a proposta é de 40%.

Destaca-se, em relação a El Salvador, um aumento das tarifas de eletricidade após a privatização do setor: os que consumiam pouco, sobretudo os pobres, tiveram um aumento de 47% em sua conta, ao passo que, para os outros, o aumento foi de 24%. O relatório explica também que a privatização da energia elétrica aumentou a degradação do meio ambiente por conta do uso mais intenso do carvão, o que contribuiu para o desmatamento. No que diz respeito aos processos de privatização, foram freqüentemente mal gerenciadas e desembocaram numa maior concentração da riqueza.

Pobreza
O empobrecimento – fruto das políticas de ajuste estrutural – afetou sobretudo as mulheres. A baixa qualificação fez delas as primeiras vítimas das demissões. Com freqüência, a flexibilização do trabalho negou seu direito à maternidade. A redução do acesso aos serviços públicos por causa de seu custo, significou uma carga maior para seu papel de mãe ou de chefe de família.

Em El Salvador, onde o fenômeno da maquila (trabalho por subempreitada) é particularmente desenvolvido, sobretudo no setor têxtil, as reformas legais aboliram as medidas de proteção às mulheres. Para conseguir a contratação, é prática comum elas terem que se submeter a um teste para verificar se estão ou não grávidas, ou terem que assinar um contrato estipulando sua demissão caso venha a ocorrer uma gravidez. Em Uganda, indica-se que muitas mulheres tiveram que renunciar aos serviços médicos depois que passaram a ser pagos. No Zimbábue, se dá a mesma coisa atingindo até as mulheres que buscam assistência à maternidade.

Macroeconomia
Problemas de nível macro acompanharam também os fracassos locais dos programas de ajuste. Um bom número das vantagens esperadas nos domínios da eficácia e da competitividade pelo viés das privatizações e da flexibilização do trabalho não aconteceu. A liberalização do comércio fez aumentarem tanto os déficits da balança de pagamento quanto a dívida externa, em virtude do efeito mecânico das exportações sobre o tipo de importações, sob o regime dos programas de ajuste. O aumento da presença e do poder das empresas multinacionais, com freqüência as primeiras beneficiárias dessas políticas, reduziram de modo grave a soberania econômica de inúmeros países, bem como a capacidade de seus governos para responder, segundo as prioridades, às necessidades econômicas e sociais de suas próprias populações.

E o relatório da Saprin conclui afirmando que “a intransigência dos autores internacionais dessas políticas faz crescerem a pobreza, a desigualdade e a insegurança no mundo. Essas medidas aumentam, por sua vez, as tensões entre as diversas camadas sociais, alimentando os movimentos extremistas e deslegitimando os sistemas políticos democráticos. Seus efeitos, principalmente sobre os pobres, são tão profundos e generalizados que nenhuma medida social específica pode resolver as crises que deles decorrem. Só uma reestruturação dos setores produtivos, associada a políticas adequadas, pode garantir que a abertura econômica, os recursos e os benefícios se distribuam pelo conjunto dos diversos segmentos da população”.

Segue, então, um certo número de recomendações para o desenvolvimento de atividades econômicas locais, para o estabelecimento de políticas comerciais destinadas a apoiar os setores agrícola e industrial nacionais, para o estímulo às pequenas e médias empresas, para a ampliação do crédito e a redução das taxas de juro, para o equilíbrio entre exportações e importações, para a orientação da agricultura no sentido do mercado interno, para a adoção de legislação eficaz quanto à proteção do meio ambiente, para uma política de emprego e de defesa dos direitos dos trabalhadores, para o desenvolvimento de serviços públicos acessíveis a todos.

A experiência adquirida por meio dessa iniciativa mostrou, segundo os autores do relatório, que a sociedade civil, inclusive os pobres, pode mobilizar-se e organizar-se para formular políticas econômicas e que sua participação é indispensável para começar um processo construtivo. Steve Hellinger, principal dirigente da rede que comandou o estudo em Washington, tinha razão ao afirmar que o Banco Mundial havia sido testado e que havia fracassado. E, durante uma entrevista, concluía que, apesar desse duro fracasso, o Banco Mundial não estava disposto a mudar nem sua teoria nem sua prática.

O sociólogo belga François Houtart é diretor do Centro Tricontinental de Alternativas e um dos Coordenadores do Fórum Mundial de Alternativas.
Tradução de Iraci D. Poleti.