Em meio a protestos antirracistas, homem de extrema direita é morto nos EUA, por Heloisa Villela

O que assusta, agora, é o resultado dos discursos de Trump, pois ele praticamente autorizou a truculência no combate aos protestos que se espalhavam pelo país

Protesto em Kenosha no sábado (29) contra a violência policial depois que Jacob Blake levou 7 tiros pelas costas e ficou paralítico (Reprodução)
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Em mais de três meses de protestos diários contra o racismo da polícia em Portland, no Oregon, a cidade tem agora uma vítima fatal. Na noite de sábado, um homem branco foi baleado e morreu. As informações sobre a identidade dele e a do atirador ainda são desencontradas. Mas testemunhas garantem que o homem morto fazia parte de uma caravana em favor do presidente Donald Trump que percorreu as ruas da cidade e estava no fim quando a tragédia aconteceu. O homem morto aparentemente vestia uma camiseta e usava um boné com emblemas do grupo Patriot Prayers, uma organização de extrema direita conhecida por provocar manifestantes na cidade. Em uma troca de tiros, ele errou e o manifestante, em quem ele mirou, acertou. O presidente Donald Trump ainda não se manifestou sobre a tragédia, mas no Twitter, continua oferecendo um novo envio de tropas federais à cidade.

O que esperar de um governo que promove o crime para vender a segurança? Com os olhos arregalados, meu filho de 19 anos pintou o cenário futuro: “se Trump for reeleito, aposto que ele vai dar o perdão ao cara lá de Wisconsin e isso vai ser um sinal verde para as milícias irem para as ruas matar manifestantes”. Na hora, achei um certo exagero. Mas na verdade, o presidente dos Estados Unidos já deu esse sinal verde. E foi por escrito, nas mídias sociais, em maio.

No auge dos protestos contra a violência racial que mata negros americanos sem pudor, diante do registro de telefones celulares, Trump avisou que “quando os saques começam, os tiros começam”. Deixou claro que qualquer protesto seria tratado à bala. E usou a Guarda Nacional como uma milícia particular, para intimidar prefeitos e governadores democratas. Foi o que se viu em Portland, no Oregon, quando tropas da Guarda Nacional desembarcaram na cidade para reprimir protestos. Sem identificação nos uniformes, eles prenderam manifestantes que foram levados em carros também não identificados. A resposta foi o aumento dos protestos e a criação de um grupo de mães que passou a sair na frente dos manifestantes, como um muro de proteção.

Na convenção que terminou na última quinta-feira, os republicanos reuniram uma constelação de profetas do apocalipse. O mais radical de todos: Rudolph Giuliani. Ex-prefeito de Nova York, ele se tornou mundialmente conhecido porque era quem comandava a cidade durante os ataques do 11 de setembro. Mas Giuliani já era ídolo de direitistas mundiais porque se apresentou como o prefeito durão no combate ao crime. Adotou a tolerância zero. Ele transformou Nova York em um grande shopping center para turistas de todas as línguas. Caiu no anonimato por um bom tempo e voltou ao cenário nacional e mundial graças a Donald Trump.

Giuliani se portou como fiel escudeiro do presidente e foi alçado à posição de advogado particular de Trump. Ele é considerado um dos grandes articuladores da ultradireita no mundo. Não é à toa que a família Bolsonaro se reúne a portas fechadas com Giuliani sempre que passa por Nova York. Dizem também que foi Giuliani que levou à Casa Branca um “especialista” para vender o milagre da Cloroquina a Donald Trump. Na convenção republicana o ex-prefeito fez o papel de arauto do fim do mundo. Apresentou um quadro da cidade onde moro como se ela estivesse à beira do abismo. Tomada por vândalos, assassinos e incendiários. Quase levantei da cadeira para dar uma olhada lá fora. Mas me lembrei que estava assistindo à exposição de uma realidade paralela. Uma ficção que insiste em assombrar o eleitorado. O índice de criminalidade em Nova York, hoje, é metade do que era quando Giuliani era prefeito.

O que assusta, agora, é o resultado dos discursos de Trump. Como já disse, em maio ele praticamente autorizou a truculência no combate aos protestos que se espalhavam pelo país. Kyle Rittenhouse, um rapaz de 17 anos, levou ao pé da letra a autorização presidencial. Kyle foi fotografado na primeira fila de um comício de Trump, no começo do ano, em Des Moines, Iowa. Na semana passada, um policial branco de Kenosha, em Wisconsin, foi flagrado dando sete tiros a queima roupa, pelas costas, em Jacob Blake, um homem negro que estava com os três filhos pequenos no carro. Quando os protestos começaram em Kenosha, Kyle pegou um rifle AR-15, cruzou a fronteira de Illinois com Wisconsin e já no trajeto cometeu o primeiro crime. Não poderia ter entrado no estado vizinho armado.

Na cidade, ele se postou diante de um estabelecimento comercial. Ali, foi até entrevistado e disse: “meu trabalho é garantir a segurança aqui”. Ninguém contratou Kyle para montar guarda. Mas alguns policiais foram gravados agradecendo a presença dele no local. Kyle não estava sozinho. Havia outros como ele na cidade. Aliás, grupos de homens brancos armados estão se tornando mais frequentes nas cidades onde a população ousa ir às ruas protestar. Um deles, chamado Proud Boys (Rapazes Orgulhosos), ficou famoso em Portland, no Oregon.

Em Kenosha, Kyle se desentendeu com manifestantes que tentaram desarmá-lo. Matou dois jovens e deixou um terceiro ferido. Quando passou pelo carro da polícia com as pessoas gritando que ele devia ser preso, os policiais não deram a menor importância e ele voltou para casa, onde foi preso no dia seguinte. Enquanto isso, Jacob Blake estava algemado à cama do hospital como se não fosse a vítima e sim, alguém perigoso. Aliás, em consequência dos disparos, ele ficou paralítico.

No último sábado, milhares de pessoas se reuniram em Washington para marcar o aniversário de 57 anos da manifestação na qual Martin Luther King fez o discurso histórico do sonho de um país mais justo. Meio século depois, os negros americanos ainda precisam gritar: “tirem o joelho dos nossos pescoços”, uma referência ao assassinato de George Floyd. Meio século depois, um negro baleado pelas costas, por um policial, luta pela vida algemado à cama do hospital. Meio século depois, homens brancos se sentem autorizados a pegar armas e matar quem vai às ruas brigar por igualdade, por dignidade. Meio século depois o presidente, candidato à reeleição, diz a seu eleitorado branco que só ele vai manter intactos os subúrbios, um código claro para quem lê entre as linhas entende bem: não vai permitir que os negros invadam os bairros onde apenas os brancos vivem.

Decidi me levantar e olhar longamente, com atenção, para as ruas de Nova York. Foi mesmo apenas o discurso do medo. Não encontrei vândalos, assassinos, incendiários. Vi, sim, muita gente de máscara no rosto, preocupada com o futuro, com o desemprego, e com a possibilidade de mais quatro anos…