Endurecido e perdendo a ternura

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O governo Kirchner pode estar dando seus últimos passos. Talvez Cristina Kirchner não deixe a Casa Rosada depois das eleições legislativas de junho, mas corre o risco de ficar isolada. Estarão em disputa metade das cadeiras da Câmara baixa e um terço das vagas no Senado. Tendo em conta que o apoio parlamentar ao governo já está altamente comprometido e que a presidenta tem maioria apertada nas duas casas, uma derrota colocará em jogo a possibilidade do atual projeto de se manter vivo.
O desgaste do governo é rápido e notório, e aumentam as vozes que falam que Cristina Kirchner terá que entregar o cargo, algo que obviamente não seria desejável para a solidez das instituições argentinas. De fato, uma renúncia já esteve perto de acontecer em julho do ano passado, depois de quatro meses de briga com o setor agrário. A votação de um projeto que o governo enviou ao Senado exatamente a respeito dos desentendimentos com o campo terminou empatada. Pela Constituição argentina, cabe ao vice-presidente dar o voto de minerva: Júlio Cobos migrou para a oposição e desde então não troca palavras com Cristina Kirchner nem com o “Pinguim”. Uma derrota que não marcou “apenas” a ruptura: deu início àquele que é conhecido como o pior dia do governo. Na ocasião, especula-se que em torno de 50 funcionários estiveram reunidos para anunciar a decisão de deixar a Casa Rosada e a carta de renúncia da presidenta começou a ser escrita. Nas horas de tensão que se seguiram, inclusive o presidente Lula teria sido acionado. Partiu de Cristina a decisão de seguir governando mesmo com um prognóstico pouco tranquilo.
Não há dúvidas de que os desentendimentos com o campo são parte fundamental do desgaste. A briga ganhou novos capítulos recentemente, quando o governo evitou a votação de uma lei que reduziria os impostos sobre a soja e, no dia seguinte, anunciou que repassaria às províncias e aos municípios 30% do arrecadado com as taxas sobre o grão. Omar Marchetta, secretário gremial da Federação Agrária Argentina (FAA), observa que “não podemos pagar 35% de retenções. Isso é claramente confiscatório. O que queremos é que o produtor pequeno tenha uma retenção menor. Na Argentina, temos 74 mil produtores de soja, mas apenas 2.800 respondem por 64% da produção”. Luis D’Elia, líder da Federação Terra e Vivenda (FTV), lembra que o governo acertou vários pontos com o setor agrário no início de março, e portanto “é inadmissível que a Mesa de Enlace pretenda obter resultados que se encarregou de negar e combater poucos meses atrás”.
Agora, o campo prepara um dos passos que afetarão seriamente a governabilidade de Kirchner. Os agraristas têm o apoio (direto ou indireto) de 108 dos 257 deputados, faltando pouco para atingir a maioria, o que pode acontecer nas eleições. Por sua vez, o oficialismo conta atualmente com o número exato de legisladores para a aprovação na Câmara e tem dificuldades no Senado. Só na província de Buenos Aires estarão em jogo 20 cadeiras da base aliada, e tudo indica que será difícil manter o número atual. O professor Diego Reynoso, coordenador do Programa de Governabilidade da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), aponta que restaria a Cristina Kirchner lançar mão de um recurso constitucional: o veto, que é um instrumento de exceção e que teria alto custo político.

O adiantamento A antecipação das eleições de outubro para junho foi resultado de uma conjunção de análises do governo. O ponto mais óbvio é a crise, que vai afetar muito seriamente a Argentina nos próximos meses, provocando desemprego em massa em uma região particularmente favorável aos Kirchner: Buenos Aires. Deixar a votação para outubro seria um ato quase suicida para o governo. Em outro ponto, o Partido Justicialista, presidido por Néstor Kirchner, sofreu recentemente uma derrota na província de Catamarca, que deu o sinal de alerta. Como cada vez menos governadores apoiam Cristina Kirchner, o temor era de que todos antecipassem eleições nas províncias e que a base aliada sofresse consecutivas derrotas, ficando ainda mais enfraquecida.
E, por último, o governo acredita que é necessário encurtar o tempo que a oposição tem para fazer articulações. A mais importante delas, no entanto, já vinha em andamento: o chamado PROperonismo, que une o direitista Maurício Macri, prefeito de Buenos Aires, e os ex-integrantes da base kirchnerista Felipe Solá e Francisco De Nárvaez. No entanto, para o professor Diego Reynoso, a união é altamente transitória e tem uma base muito frágil. “Há conflitos de interesses que não são assimiláveis. A curto prazo, Solá y De Narváez vão disputar quem encabeçará a lista da eleição para deputados. Depois, tanto Solá quanto Macri querem ser candidatos à Presidência”, adverte o docente da Flacso.
Formar coalizões é algo que parece cada vez mais complexo aos Kirchner. Com forte dissidência dentro do Partido Justicialista, Néstor Kirchner sairá como candidato a deputado pela província de Buenos Aires em uma tentativa de garantir a governabilidade no Congresso. Ainda não há projeções confiáveis, mas, de qualquer maneira, o cenário não é muito otimista: o Partido Justicialista pode não atingir o nível histórico regional. Fora da principal província, o governo deve sofrer derrotas em Córdoba, Mendoza, Santa Fé e Chaco, uma represália da população à briga com o setor agrário e a suposta distribuição desigual de verbas entre governos opositores e oficialistas.
Para o líder da FTV, Luís D’Elia, uma vitória governista na votação para o Legislativo define o futuro da política argentina a favor da atual gestão pelos próximos seis anos. Prevendo o triunfo da oposição, o secretário da FAA, Omar Marchetta, considera que “haverá um desastre para o governo nacional, que quer aparentar ser progressista e termina sendo de extrema direita. Estão concentrando cada vez mais a produção, fazem com que haja cada vez mais gente fora do sistema”. Contudo, se houver um desastre para Cristina Kirchner, aparentemente haverá um desastre para a Argentina: não há um líder de projeção nacional capaz de dar governabilidade a uma nova gestão, que teria de lidar com um país em profunda crise econômica.
Em 2011, as condições já seriam diferentes. O professor Diego Reynoso aponta que o kirchnerismo “está muito deteriorado e caindo a uma velocidade muito alta. Sem o apoio dos setores médios e da população do interior do país, perdeu suas bases eleitorais. Outro aspecto muito forte é o comportamento dos governadores e dos líderes do Partido Justicialista: estão insubordinados em relação à condução nacional e isso é algo que é muito difícil recompor”. São exatamente os líderes do PJ que vão decidir o candidato do partido nas eleições presidenciais e, mais uma vez, o partido rachado deve contar com mais de um nome.
Analisando as chances dos que se colocam hoje como possíveis presidenciáveis, Jorge Mayer considera que o nome mais forte é o do senador Carlos Reutemann, ex-piloto de Fórmula Um que recentemente rompeu com o kirchnerismo. Quanto a Maurício Macri, as chances são mais complicadas por ele não pertencer ao justicialismo. Além disso, em um momento de crise é pouco provável que tenha sucesso alguém que lembre tanto as políticas de Carlos Menem. A reeleição de Cristina Kirchner ou o regresso de seu marido mostram-se duvidosos por todos os fatores já apresentados. É também pouco provável que se escolha um outro nome de dentro do governo, já que os ministros têm pouca expressão.

¿Qué te pasa, Clarín, eh?
Os Kirchner já tiveram uma boa relação com a imprensa. Não têm mais. Pelo menos não com os todo-poderosos do Grupo Clarín, o equivalente vizinho das Organizações Globo: são donos do jornal de maior circulação, de alguns canais de TV aberta e a cabo, controlam a transmissão a cabo e as conexões de internet.
Durante o primeiro governo, as conversas foram as melhores possíveis: Néstor autorizou a fusão de duas firmas de TV a cabo para o grupo, estendeu as licenças concedidas para a empresa e chegou a aprovar leis de interesse do Clarín. A ruptura aconteceu com uma manchete do diário mais lido da Argentina que culpava o “Pinguim” por não baixar o dinheiro retido nas negociações da soja. Uma mudança de rumos suficiente para Jorge Mayer, diretor de Ciências Políticas da UBA, afirmar que não há qualquer lógica na política kirchnerista para os multimeios.
Em meio à guerra, uma batalha que pode ser decisiva: o governo apresentou o projeto da Lei de Radiodifusão, elaborado em conjunto com os movimentos sociais e que mexe diretamente com os interesses dos grandes grupos. Ainda em fase de discussão, o texto que chegará ao Congresso dias antes das eleições prevê a redução da quantidade de licenças de serviço de um mesmo operador de 24 para 12 e divide igualmente em três o espectro de frequências disponíveis para meios comerciais, públicos e sem fins de lucro (universidades, movimentos sociais, cooperativas, ONGs e igrejas).
Pepe Frutos, coordenador da Rede Informativa do Fórum Argentino de Rádios Comunitárias (Farco), comemora o que pode ser o fim de uma lei sancionada durante a ditadura. Para ele, a Lei de Radiodifusão não é uma represália ao Grupo Clarín: “é um projeto a favor da democratização e contra os monopólios. Há que abrir o jogo para outros atores, para que mais vozes possam ser ouvidas, e para isso é necessário democratizar a participação da população. Muito antes que essa briga midiática aparecesse já tínhamos nossas propostas, não estamos contra nenhum grupo em especial”.
O fato é que há vários pontos no projeto que contribuem para a democratização da comunicação na Argentina. Um deles prevê que uma prestadora dos serviços de TV a cabo não possa atingir mais de 35% dos assinantes – o Clarín tem 70%. Outro determina que um mesmo grupo não pode ser dono, simultaneamente, de uma rádio, um canal de TV a cabo e outro de TV aberta na mesma região. Além disso, as companhias telefônicas podem ser autorizadas a entrar no mercado de TV paga, mais um setor dominado pelo poderoso grupo.
Por fim, um negócio bilionário pode deixar de existir ou, no mínimo, tornar-se menos lucrativo. O governo Kirchner estuda declarar o futebol um esporte de “interesse nacional”, o que acabaria com a exclusividade do Clarín sobre a transmissão de partidas da Primeira Divisão. Hoje, o torcedor que quer acompanhar os jogos mais importantes tem duas opções: ir ao estádio ou ouvir pelo rádio. Na verdade, quem pode elege o terceiro caminho: pagar mais de 100 pesos ao mês para ter acesso à cobertura pela TV, um negócio estimado em 9 bilhões de pesos ao ano (em torno de US$ 2,5 bi). Para aprovar a mudança, Néstor Kirchner conta com o apoio dos clubes, hoje insatisfeitos com o pouco que recebem pelos direitos de televisão (Boca e River, os mais abonados, lucram menos de 20 milhões de pesos anuais, algo irrisório se comparado aos ganhos do Clarín com o negócio).
Mas a aprovação da lei vai depender de vários fatores, entre eles como se configura o Congresso depois das eleições de junho. Ao que parece, esse jogo está longe do fim... F