Eneida, a voz poderosa

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"É possível arriscar a hipótese de que as novas gerações brasileiras, mesmo nos seus segmentos letrados e que passam pela academia, não conheceram/conhecem Eneida. Se a hipótese tem pertinência, agora o que há a fazer é contribuir para que este público se interesse por conhecê-la. Estas gerações só têm a ganhar – sob todos os aspectos – se também ouvirem a voz poderosa de Eneida" Por José Paulo Netto***, no Blog da Boitempo No seu clássico Memórias do cárcere, Graciliano Ramos conta como soube da existência da “sala 4” do “pavilhão dos primários”, na Casa de Detenção do Rio de Janeiro: contactando Nise da Silveira, agarrado a umas altas grades, verificou que na célula onde ela estava, a “sala 4”, uma “vigorosa conversa política ali se desenvolvia […] dominada por um vozeirão de instrutor. Quem seria aquela mulher de fala dura e enérgica? […] Despedi-me de Nise e desci, uma pergunta a verrumar-me, insistente, os miolos: quem seria a criatura feminina de pulmões tão rijos e garganta macha? […] Foi Valdemar Bessa quem me satisfez a curiosidade: a mulher de voz forte era Eneida. E apertava-se uma dúzia delas na sala 4. Olga Prestes, Elisa Berger, Carmen Ghioldi, Maria Werneck, Rosa Meireles […]” (a passagem encontra-se à p. 190 do vol. 1 das Memórias…, Martins, S. Paulo, 6ª ed., 1969). E, logo a seguir, ele recorda (à p. 191) que, na programação da “Rádio Libertadora” – que entrava no ar no mesmo horário em que o Estado Novo impunha aos ouvidos brasileiros a sua “Hora do Brasil” –, era a “voz poderosa de Eneida” que enchia o ambiente carcerário. A “voz poderosa” de Eneida não se fez ouvir apenas entre aqueles prisioneiros, encarcerados durante a vaga repressiva que se seguiu ao movimento insurrecional de novembro de 1935: ela já ressoava desde 1932, quando Eneida se vinculou ao Partido Comunista Brasileiro – vinculação que manteve até seus últimos dias de vida – e fazia agitação em S. Paulo e arregimentava trabalhadores (diz-se que Pedro Pomar, depois tornado importante dirigente comunista, assassinado pela ditadura em 1976, foi recrutado por ela). E continuou ressoando até meados dos anos 1960. Vale a pena relembrar Eneida de Vilas Boas Costa de Moraes, que desde o fim dos anos 1920 assinava seus textos tão somente como Eneida. Nascida em Belém/PA em 1903, teve educação formal esmerada (esteve no Colégio Sion, do Rio de Janeiro) e concluiu um curso superior (Odontologia, em Belém). Estreou na literatura com um livro de poemas (Terra Verde, 1929). Em 1930, veio para o Rio de Janeiro, passou algum tempo em São Paulo e retornou definitivamente ao Rio – onde, trabalhando como jornalista, firmou-se como cronista. Mulher combativa, as perseguições e prisões (somente sob o Estado Novo, foram 11) que sofreu jamais lhe abateram o ânimo. Mulher militante, foi uma ativista da imprensa comunista – traduziu textos para a Editorial Vitória nos anos 1940 e foi presença marcante no periódico Momento feminino, órgão do PCB que circulou, a partir de 1947, por cerca de uma década. Sua formação política deu-se nos tempos de Stalin (aliás, Eneida teve um gato com o nome do próprio…), mas ela nunca incorporou os traços que caracterizaram a estreiteza ideológica da época. Nos anos 1950, andou por Paris e Moscou (onde, em 1959, assistiu ao III Congresso dos Escritores da URSS). O largo elenco das suas atividades culturais registra a sua participação na criação da União Brasileira de Escritores/UBE e, quase ao fim dos seus dias, na fundação do Museu Paraense da Imagem e do Som. Depois de 1966, doente, Eneida praticamente parou de escrever – mas ao falecer, no Rio de Janeiro, em 1971, deixou, para além dos seus mais de 10 livros publicados (entre os quais Paris e outros sonhos, 1951, Cão da madrugada, 1955, Aruanda, 1957, Caminhos da terra, 1959, Banho de cheiro, 1962, Boa noite, professor, 1965) alguns materiais inéditos. Mas não vale relembrar Eneida considerando apenas e/ou enfaticamente a sua intervenção política. Vale relembrá-la como escritora e pesquisadora. É claro que não se pode – seja no caso de Eneida, seja no de todos os que se dedicam seriamente à escrita e à pesquisa – divorciar opções políticas de realizações artísticas e científicas; mas, se não se pode separá-las, também não se deve identificá-las. Ora, com alguma frequência, isto tem ocorrido em relação a Eneida: desde o princípio deste século, depois de anos de uma constatável marginalização, ela tem sido objeto de um tratamento (especialmente acadêmico) que privilegia uma ou outra dimensão/componente da sua trajetória1. Um exame cuidadoso do que Eneida escreveu indicaria que ela, como poetisa (já o antecipa o juvenil Terra Verde), não mereceria destaque. A qualidade literária de Eneida se revela no âmbito determinado da crônica – é no relato breve, sob a aparência enganadora de uma linguagem simples, que Eneida se situa como autêntica mestra: domina como poucos a dosagem dos afetos, a documentação do cotidiano filtrada pela elaboração estética, o insinuante que se esconde sob a placidez do dado.2 Reler livros como Aruanda e Banho de cheiro3 não proporciona apenas prazer: propicia a apreciação das possibilidades que a crônica, espécie de gênero literário menor, tem atualizadas nas mãos de uma artesã extremamente hábil. E há também a dimensão da pesquisa no trabalho que Eneida nos deixou: refiro-me ao seu livro, de 1958, História do carnaval carioca (a edição original é da Civilização Brasileira; ampliada por Haroldo Costa, a segunda edição veio à luz pela Record, em 1987). A paixão de Eneida pela festa nunca foi apenas intelectual – era parte da vida que ela sempre viveu em plenitude: torcia pela escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, que a homenageou no desfile de 1973; antes, em 1957, criou o baile do pierrô e, depois, foi a primeira madrinha da conhecidíssima Banda de Ipanema. E ela fez dessa paixão um objeto de estudo: pesquisou intensamente por dois anos, documentou-se – recorrendo inclusive a fontes vivas – para apanhar a evolução da festa dos tempos do entrudo até a década de 1950 e produziu a História do carnaval carioca. Não se trata de obra orientada por um rigor científico qualquer, muito menos acadêmico. É obra de jornalista – de jornalista inteligente, que pensa com a própria cabeça, que sabe distinguir o essencial do acessório, que ao estudar singularidades não as dissolve no aleatório do exótico. Especialistas reconhecem que Eneida foi a pioneira que estabeleceu com precisão noções até então difusas na abordagem do carnaval carioca (corso, rancho, cordão etc.) e que, depois dela, consolidaram-se consensualmente como instrumentos descritivos do fenômeno carnavalesco carioca. Em suma: Eneida levou a cabo uma pesquisa que, efetuada embora no quadro de uma aproximação impressionista ao seu objeto, mostrou-se capaz de apreender muito da sua essencialidade. História do carnaval carioca permanece, ainda hoje, como uma contribuição indispensável para apreender tanto o processo evolutivo do carnaval no Rio de Janeiro quanto o seu significado social. Linhas acima, foi dito que vale relembrar Eneida. Talvez a expressão não seja a melhor para dar conta do que há a fazer – só se relembra o que um dia se conheceu. E é possível arriscar a hipótese de que as novas gerações brasileiras, mesmo nos seus segmentos letrados e que passam pela academia, não conheceram/conhecem Eneida. Se a hipótese tem pertinência, agora o que há a fazer é contribuir para que este público se interesse por conhecê-la. Estas gerações só têm a ganhar – sob todos os aspectos – se também ouvirem a voz poderosa de Eneida.
NOTAS 1 Especialmente a partir do ano 2000 há um visível interesse acadêmico por Eneida. Entre vários que têm contribuído no seu estudo, a pesquisadora (e professora da Universidade Federal do Pará) Eunice Ferreira dos Santos tem revelado um competente equilíbrio no trato de Eneida – cf., por exemplo, o seu ensaio Eneida: memória e militância política. Belém/PA: GEPEM, 2009. 2 O curta Promessa em azul e branco, dirigido (2002) por Zienhe Castro e produzido pela Novelo Filmes explora e explicita tais qualidades da escritura de Eneida. 3 Eneida publicou cerca de uma dezena de livros nos anos 1950/1960, boa parte dos quais atualmente só encontráveis em sebos e antiquários – cito apenas esses dois porque foram reeditados num único volume em ano menos remoto (e sequer sei se ainda hoje esse volume está acessível): Aruanda e Banho de cheiro. Belém: Secretaria Estadual de Cultura, 1989. ***
José Paulo Netto nasceu em 1947, em Minas Gerais. Professor Emérito da UFRJ e comunista. Amplamente considerado uma figura central na recepção de György Lukács no Brasil, é coordenador da “Biblioteca Lukács“, da Boitempo. Recentemente, organizou o guia de introdução ao marxismo Curso Livre Marx-Engels: a criação destruidora (Boitempo, Carta Maior, 2015). No Blog da Boitempo escreve mensalmente, às segundas, a coluna “Biblioteca do Zé Paulo: achados do pensamento crítico“, dedicada a garimpar preciosidades esquecidas da literatura anticapitalista.