"Quando é com o Islã, é organizado e ideológico; quando é com a extrema-direita, é individualizado"

Professor de Relações Internacionais da PUC-SP discute a diferença de tratamento entre o atentado à revista francesa Charlie Hebdo e o ataque realizado em 2011 na Noruega: "Quando se descobriu que o autor era de extrema-direita, a explicação foi a de que era um louco. Quando se trata do islâmico, a tendência da grande mídia é associar um a todos".

Manifestação em solidariedade aos mortos no ataque, em 2015 (Foto: Arquivo)
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Professor de Relações Internacionais da PUC-SP Reginaldo Nasser discute a diferença de tratamento entre o atentado à revista francesa Charlie Hebdo e o ataque realizado em 2011 na Noruega: "Quando se descobriu que o autor era de extrema-direita, a explicação foi de que era um louco. Quando se trata do islâmico, a tendência da grande mídia é associar um a todos" Por Anna Beatriz Anjos | Foto: Mathieu Delmestre/Partido Socialista da França Para o professor de Relações Internacionais da PUC-SP, Reginaldo Nasser, especialista em Oriente Médio e colunista da Fórum, não há dúvidas de que o atentado à redação da revista francesa Charlie Hebdo, na última quarta-feira (7), foi um ataque terrorista, injustificável e trágico. Apesar disso, ele destaca as generalizações e preconceitos envolvidos no tratamento do episódio. "Não se pode generalizar um comportamento individual para o coletivo", diz, referindo-se à comunidade islâmica. Nasser acredita que o fato pode estimular o recrudescimento da islamofobia na França, um dos países que mais tem se destacado pelo endurecimento das leis anti-imigração e do discurso xenofóbico. "Qualquer tipo de acontecimento na Europa hoje que tenha alguma relação com a religião, sobretudo com o Islã, será utilizado por esses grupos", coloca. Leia na íntegra a entrevista:

Fórum - De que forma o ataque à revista Charlie Hebdo pode incentivar ainda mais a islamofobia na França e na Europa, além de legitimar o discurso da extrema-direita?

Reginaldo Nasser - Qualquer tipo de acontecimento na Europa hoje que tenha alguma relação com a religião, sobretudo com o Islã, será utilizado por esses grupos. Ainda que não haja relação alguma com religião ou imigração, esses grupos se aproveitarão disso. Se já havia esse sentimento islamofóbico antes de um atentado como esse, agora há ainda mais. Inclusive em um momento em que estão desencontradas as informações sobre a autoria – não se sabe a que grupo pertencem [os autores] –, mas já estão colocando islâmicos implicados nisso.

Fórum - Qual sua opinião sobre as charges publicadas pela revista satirizando símbolos do islamismo?

Nasser - Não conheço a fundo as charges da revista, mas acredito que não tenham relação com o atentado. Vamos supor que sim, sejam ofensivas e preconceituosas: isso não justifica nenhuma ação nesse sentido. As pessoas podem reagir a isso de diversas formas, fazendo uma manifestação, indo à Justiça, escrevendo contra.

Veja só, a França tem 5 milhões de islâmicos. Vamos supor que os autores do atentado sejam de fato islâmicos e que tenham realizado o ato em resposta às charges. Quantos teriam reagido, então?  De 5 milhões, três. Ou seja, 99,99% da população islâmica não deu importância. Que fenômeno sociológico é esse? Um ato muito pontual, localizado. Se isso atingisse mesmo a religião, coisa muito pior já teria acontecido. De que se tem notícia, nesses anos todos, quais incidentes ocorreram na redação da revista? Uma tentativa de incêndio em 2011 e só. O argumento, em termos do pensar em grupo sociológico, é muito frágil.

Não se pode generalizar um comportamento individual para o coletivo. É que quando se trata do islâmico, a tendência da grande mídia é associar um a todos. No atentado que houve na Noruega, anos atrás [em 2011, um ativista de extrema-direita, fundamentalista cristão, matou 76 pessoas], quando se descobriu que o autor era de extrema-direita, a explicação foi a de que era um louco. E a história ficou mal contada – o homem matou 76 e foi um ato tresloucado? Quando é com o Islã, é organizado, tem uma maquinação, tem várias pessoas por trás, é ideológico. Quando é da extrema-direita, é individualizado.

Fórum - O senhor acredita que a tendência é que sejam realizados cada vez mais atentados mais direcionados e seletivos?

Nasser - O que aconteceu ontem é uma mudança do padrão, mas não sabemos até que ponto vai se repetir. Não dá para saber que grupo é, o que estão pretendendo. Mas o fato é interessante porque mudou o padrão.

Agora, em relação ao número de atentados. No ano passado, foram 18 mil pessoas mortas no mundo por atentados terroristas – são dados oficiais. Quantas pessoas morreram na Europa? Nenhuma. Quantos atos terroristas foram praticados por islâmicos na Europa? Nenhum. Houve vários atentados terroristas na Europa, classificados oficialmente como terrorismo, a grande maioria atribuída a grupos separatistas, e nenhum islâmico. Há um exagero da ameaça islâmica. Há muito preconceito e pouca informação.

Fórum - O episódio ocorrido ontem pode ser considerado um ato terrorista? Se sim, por quê?

Nasser - Sim, porque houve uma ação violenta que passou uma mensagem. Veja, a mensagem não é escrita, é de percepção: jornalistas da Europa e do mundo, de uma forma geral, estão todos preocupados. A morte daquelas pessoas, para o terrorista, é o de menos, o que importa é a mensagem que quer enviar. Retomando, eles usaram de ação violenta, transmitiram uma mensagem provocando coação e temor nas pessoas de uma forma geral – as pessoas estão atemorizadas. Ou seja, o ato não se extingue ali. E têm um objetivo político: mostrar a vulnerabilidade da sociedade, daqueles que protegem a população.

Fórum - O senhor acha que a esquerda europeia tem dificuldade de lidar com a questão da imigração em geral?

Nasser - Uma parte da esquerda europeia acredita nessas questões. Uma parte do partido socialista francês, inclusive. Tivemos legislações e ações durante os governos socialistas na França que não devem nada à direita. Isso dá margem à questão de alimentar esse preconceito contra a imigração. Agora, aqui mesmo no Brasil, interpretando o que ocorreu na França, vi analistas políticos e jornalistas dizerem que [os autores do atentado] eram imigrantes. Ou seja, um filho de argelino que nasceu na França, mora na França, que nem fala árabe é visto como um imigrante. O mais fácil é sempre culpar o outro. Tanto é que, olhando as redes, percebe-se que as pessoas acham que é algo relacionado à fronteira. Vi jornalistas propondo o controle de fronteiras. Quando se fala isso, evidencia-se uma percepção de que o mal vem de fora. Centenas de franceses têm se alistado para ir lutar pelo ISIS na Síria. Para os árabes, por exemplo, são eles quem estão chegando.

Isso a gente viu aqui no Brasil também. Durante a campanha eleitoral, Serra e Aécio disseram que nossos problemas de criminalidade eram os países vizinhos e propuseram o controle de fronteiras – ou seja, é só controlar a fronteira entre Brasil e Bolívia que acaba tudo, simples assim. Infelizmente, essa não é uma retórica isolada.