Universidades em Tempos de Pandemia: PUC-SP e UFMT

A Fórum, em sua primeira reportagem do especial Universidades em Tempos de Pandemia, traz um olhar de dentro das instituições mais respeitadas do país. Para isso, ouviu gestores e docentes que mostraram suas visões sobre esse processo de adaptação e sobre perspectivas na área; confira

Divulgação/Ministério da Ciência e Tecnologia
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POR LUCIANA FREITAS*

A pandemia trouxe grandes desafios para a área da educação, em todos os sentidos, uma vez que, antes dela, os alunos utilizavam a estrutura das escolas no seu processo de aprendizagem, como as salas de aulas, laboratórios e bibliotecas. Especialmente nas instituições universitárias essa infraestrutura sempre foi muito benéfica. Agora, estão todos realizando seus estudos à distância.

Muitas instituições já tinham como prática o ensino EAD, no entanto, as mais tradicionais ainda priorizavam as aulas presenciais. Assim, com a chegada do novo vírus no cenário tiveram que rapidamente adaptar seus cursos para o sistema online.

A Fórum, em seu primeiro especial Universidades em Tempos de Pandemia, traz um olhar de dentro das instituições mais respeitadas do país. Para isso, ouviu gestores e docentes que mostraram suas visões sobre esse processo de adaptação e sobre perspectivas na área.

Não há dúvidas que nesse momento a cultura de inovação na área de educação será o ponto diferencial de como cada instituição responderá a esses obstáculos e de como implementarão uma cultura empática que unirá ensino de qualidade, tecnologia e um olhar sensível para a situação de seus stakeholders: alunos, professores, funcionários e familiares de alunos.

O maior nome de cultura da inovação no Brasil na atualidade é Victor Megido, ex-diretor do Instituto Europeu de Design (IED), consultor de projetos especiais para grandes empresas, como Escola Italiana Internacional Eugenio Montale, Bayer Brazil CropScience, Dolce & Gabbana e Abrass (Associação Brasileira de Sementes de Soja).

Megido é Executive Master em Marketing & Sales pela SDA Bocconi, de Milão, e pela Esade Business School, de Barcelona, é ainda graduado em Comunicação pela Università La Sapienza, de Roma.

De acordo com ele, “existe um modelo de ensino à distância que precisa ser mais conhecido e respeitado. Temos diferentes estudos e boas práticas de tal modelo, pois existem cursos universitários 100% EAD, por exemplo. O uso das plataformas digitais precisa ser conhecido quando os educadores buscam a adaptação do ensino presencial. Não acredito que já exista um ideal consolidado, pois estamos ainda naquela fase híbrida de transição do século XX para o século XXI, portanto, pensando ainda com a cabeça do século passado para muitas coisas”.

E completa, “acredito que estamos encontrando os caminhos, isso é experimental, isso se dá no respeito ao usuário aluno/professor. O ideal, na minha opinião, se encontrará no modelo que saberá harmonizar a pedagogia da escola com as práticas híbridas à distância e presenciais, sendo que à distância não significa necessariamente uso de plataformas digitais. Uma pesquisa de campo, fora da sala de aula, é uma prática à distância da cadeira da sala de aula. No futuro, a sala de aula não terá mais barreiras, as escolas não terão mais catracas para acesso. E teremos sempre mais o uso de metodologias ativas, o que forçará a quebra das paredes dessas salas”.

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) é uma instituição de ensino privada e católica brasileira, mantida pela Fundação São Paulo (FUNDASP) e está vinculada à Mitra Arquidiocesana da Cidade de São Paulo. A PUC-SP conta com cinco campi universitários: quatro estão localizados na capital de São Paulo e um em Sorocaba, interior de São Paulo. Trata-se de uma instituição filantrópica e confessional, cujo ingresso é por meio do vestibular. Possui reconhecimento nacional e internacional pelo seu ensino e tradição, destacando-se em rankings brasileiros e mundiais de universidades, figurando, em 2018, na conceituada classificação QS World University Ranking como a 21ª melhor universidade da América Latina e 52° melhor universidade dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), além disso foi considerada a 5° melhor universidade de todo Brasil,pelo mesmo ranking.

A maior parte da produção científica da instituição está voltada para as ciências humanas, em especial às áreas de direito, economia, sociologia, educação e comunicação.

Entre as faculdades que compõem a PUC-SP, a de Direito se sobressai, pois, formou grandes nomes da sociedade brasileira, entre eles, o ex-Secretário municipal e estadual de Educação de São Paulo, Gabriel Chalita, José Dirceu, ex-Ministro de Estado da Casa Civil, José Eduardo Martins Cardozo, ex-Ministro da Justiça, Luiz Edson Fachin, Ministro do Supremo Tribunal Federal, Michel Temer, ex-Presidente do Brasil, e o ator José de Abreu. 

Para entender como esta instituição está enfrentando os atuais desafios, entrevistamos um de seus professores, Claudio Langroiva Pereira. Langroiva é professor Doutor nos cursos de graduação e pós-graduação da PUC-SP.

Luciana Freitas: Diante do cenário da pandemia e medidas de isolamento social, o ensino remoto foi adotado como medidas de alteração estrutural e processual passando então do presencial para o virtual. Como a PUC-SP e, em especial, a faculdade de direito desenvolveu o ensino à distância e vem orientando junto ao corpo docente as diretrizes do plano de ensino?

Professor Dr. Claudio Langroiva: Nós sabemos que existem muitos cursos EAD já adotados, no entanto, o curso de Direito da PUC-SP nunca optou por esses caminhos. Porém, os professores da instituição já tinham métricas ligadas a algumas plataformas e outros tipos de trabalho, muitos deles também trabalhando em cursinhos e outras situações, com conhecimento técnico, mas não eram todos. Contamos com professores mais antigos, de outra geração que tiveram um pouco de dificuldade no começo. Então, posso dizer que nosso primeiro semestre foi uma mistura de adaptações de descobertas e superações. Mas, posso dizer que, instalado o isolamento, na semana seguinte já começamos a dar aulas à distância, a PUC-SP foi uma das primeiras instituições a cobrir a carga horária de aulas convencionais com o ensino à distância. Adotamos o Teams, da Microsoft. Alguns professores, com dificuldades iniciais, tiveram superações surpreendentes e, de maneira geral, todos se adaptaram rapidamente e tiveram, por parte da instituição, suporte e orientação para mexer com a plataforma, montar e apresentar suas aulas. E os alunos são na maior parte jovens que já tem facilidade e familiaridade com a tecnologia. Como seguir e continuar com esses jovens? Os professores conseguiram se reinventar surpreendentemente, temos vários com já mais tempo de casa que se desenvolveram muito bem com o ensino online. Invariavelmente, as coisas evoluíram naturalmente. Nossas reuniões com a coordenadoria mostram que os retornos dos alunos foram bastante positivos.

Os professores deram a maior parte das aulas online, sem gravações de aula, com alunos acompanhando. Na pós-graduação tivemos câmeras abertas e muita interação, já na graduação usamos muitos recursos de voz e chats, até as provas na graduação conseguimos aplicar em aula acompanhando a feitura das mesmas online. Isso nos deu muitas esperanças. No entanto, há uma questão importante: uma aula presencial desgasta menos do que as de ensino à distância, sobretudo, para os professores. Pessoalmente posso dizer isso e atestar também, é um desgaste muito maior ficar duas horas ou mais online, mas eu reforço que foi um sucesso, muito mais do que imaginávamos. O segundo semestre está mostrando isso para nós.

Luciana Freitas: Dentro do que é o contexto do plano de ensino, voltado para as faculdades, para as graduações de direito, especializações e pós-graduações, que análise podemos fazer como informação institucional de nosso ensino no Brasil, diante de outras situações, já que ensino remoto é para todos nesse momento?  E especificamente o direito como fica diante dessa situação?

Professor Dr. Claudio Langroiva: Farei aqui duas pontuações, Brasil e mundo. No Brasil nós temos realidades diferentes, com universidades particulares, comunitárias e públicas. Olhando para as particulares, muitas já trabalhavam com um sistema de ensino à distância ou misto, mas não em plataformas totalmente integradas, então eu diria que muitas delas, infelizmente, continuaram na pandemia com o nível muito baixo.

Mas, outras universidades como a PUC-SP, posso atestar no caso do direito, conseguiram manter um ritmo e um nível muito bom e com uma qualidade dos professores muito boa, com professores muito envolvidos. Eu, inclusive, assisti aulas de outros professores para comprovar.

Agora, quando você olha para as universidades públicas, há muitas dificuldades, algumas não deram aulas, outras deram poucas aulas, e isso foi muito complicado.

No Brasil, a situação é bastante complexa, pois observei também que muitas instituições de referência sofreram muito, sem compreender a sistemática escolhida por elas ou sem acesso pleno à essa sistemática.

Posto atestar que um dos exemplos de grande sucesso foi realmente a PUC-SP. Com muito apoio da Reitoria da Universidade e suporte da Mantenedora conseguimos fluir com muita valentia nesse momento de crise, com certeza pelo esforço dos professores, pela dinâmica e reinvenção das aulas, pela dedicação e disposição de nossos alunos; temos um tipo de aluno muito mais disposto a desafios e integrado com a tecnologia.

Em relação ao mundo, a situação não foi comum, embora já exista uma sistemática de apresentações de palestras nas universidades, especialmente na área do direito, de trabalhar com plataformas, entre elas, o Youtube.

Mas, a maneira de dar aula como a nossa, com o ensino online com os alunos presentes e essa substituição momentânea, pelo menos nos países democráticos, não aconteceu com tanta facilidade. Podemos citar Itália e Portugal, cada país fez uma opção diferente e teve um certo prejuízo no ensino do direito.

Aqui, falando no caso da PUC-SP, tivemos muito menos prejuízo do que imaginávamos, em alguns momentos arriscaria dizer que até tivemos mais sucesso.

Luciana Freitas: E dentro também deste contexto mundial e ainda mais voltado para o que se pretende com os cursos de pós-graduação e os demais e, especificamente do direito, quando olhamos para toda essa situação que a sociedade está passando, há já uma contribuição entre as instituições brasileiras em relação aos processos e cultura em relação a este momento?

Professor Dr. Claudio Langroiva: Tivemos sim um sucesso em interligações e construção de redes de comunicação por meio dos canais de comunicação social via internet. Participamos, por exemplo, no primeiro semestre, de congressos remotos, com plataformas virtuais, lives nas plataformas de relacionamento pessoal e técnicas, encontros e discussões acadêmicas A internacionalização realmente aconteceu.

Este momento triste de isolamento que a humanidade vive, na área do direito, no tocante a diminuir as distâncias por meio das redes sociais e ferramentas remotas de comunicação - e discussões do pensamento para melhorar a academia e aprimorar o ensino do direito -  surpreendeu muito. Todos estão animados, eu mesmo estou cheio de convites e avisos sobre encontros e apresentações de profissionais que estão na China, nos EUA etc.

Houve um movimento das pessoas na busca dos meios tecnológicos para manter a discussão e construção do pensamento. Ainda não sabemos como isso se dará na cabeça dos estudantes ou como estarão no ano que vem, por exemplo, além de não sabermos como será sua expectativa de voltar à aula presencial, mas eu tenho certeza de que eles terão uma outra visão de mundo, assim como os professores e os pesquisadores.

 Dou aqui um exemplo básico, professores e pesquisadores sofrem muito com o acesso à bibliografia, em geral no Direito, temos uma preferência por bibliografias físicas em detrimento de virtuais. Antes, no caso das virtuais já haviam diversas plataformas disponíveis, no entanto, hoje a busca por bibliografias virtuais se tornou a regra e não a exceção, o material físico foi rapidamente digitalizado.

Na PUC-SP, aumentamos esse acesso e temos possibilidades vastas de pesquisas online, além dos instrumentos de pesquisa já disponíveis e ampliados na internet, para o qual existe treinamento de pesquisa já disponíveis e ampliados na internet para o qual existe treinamento contínuo proporcionado pela Reitoria, através de salas para professores, na plataforma Teams.   O que talvez no direito antes era olhado com uma certa reserva, hoje não pode ser mais visto assim.

Luciana Freitas: O senhor acredita que isso trará um impacto para todo o sistema educacional? No caso, por exemplo, da aplicação correta de direitos autorais, entre outros?

Professor Dr. Claudio Langroiva: Sobre direitos autorais, o que posso garantir é que teremos uma releitura sob a ótica da apropriação do conhecimento.

Então, quando se publica um material e as pessoas querem ter acesso à íntegra ou querem ter ou ser proprietários desse bem de conhecimento que se constituiu, uma indústria de comércio se estabelece, mas quando as pessoas publicam materiais para gerar conhecimento científico e não para ganhar efetivamente com a publicação do conhecimento científico, a situação é outra.

Então, percebemos que o conhecimento hoje está tão acessível por meio dessas plataformas remotas que acredito, cada vez mais, que aqueles que sobrevivem do comércio de obras acadêmicas, principalmente físicas, precisarão repensar sua vida porque o acesso está tão mais fácil e simples e com tanta qualidade que virá a substituir rapidamente a opção pela produção de obras físicas.

Como exemplo posso citar minha experiência, estou escrevendo um artigo para o qual acessei diversos artigos científicos que talvez eu nunca acessasse, se não estivesse dedicado à internet como minha principal fonte de pesquisa e localização de material científico. São trabalhos das mais diversas áreas do conhecimento, como na área de medicina com uma qualidade e facilidade em línguas inclusive, com plataformas que já disponibilizam traduções para o inglês, o espanhol e até para o português. É possível até comparar as traduções para fazer uma leitura dinâmica, mas tenho textos técnicos de medicina, biologia, matemática, economia de uma forma transdisciplinar que eu nunca tinha me permitido trabalhar antes.

Então, acredito que tudo isso vai mudar muito e vai permitir uma evolução. E também uma questão concreta: há uma aproximação sistêmica, na área do direito estamos vendo isso, quem não é da área de direito também sente isso. Os sistemas de colaboração premiada e outros que não são típicos do nosso modelo jurídico, que tem influência no direito francês, italiano e alemão, por exemplo, passaram a aceitar modelos que são australianos, norte-americanos, canadenses, americanos, e essa ligação virtual fez com que isso fosse mais rápido ainda, com conceitos que vão se interligando, causando na nossa mente uma revolução de ideias que modifica a visão de como percebemos o direito.

Alunos e professores estão ficando mais abertos e trazendo questões mais qualitativas e quantitativas. Acho que a complexidade do direito vai mudar muito para a próxima geração que vai exercer a profissão em nossa sociedade.

Porém, as relações físicas e sociais não poderão desaparecer, o direito é uma área a serviço dos seres humanos, portanto, podemos usar ferramentas digitais, mas não podemos perder de vista que estas estão a serviços das relações reais, físicas, sociais.

Luciana Freitas: Agora, como está sendo na prática a vida dos docentes nesse momento remoto? Poderia nos contar algumas situações, o que o surpreendeu?

Professor Dr. Claudio Langroiva: Acho que mudou muito a percepção de como avaliar o estudante, e falo por mim e pelos meus colegas também. Temos ainda uma percepção arraigada na questão da prova, a avaliação da prova e a prova de estudo, etc. Estamos descobrindo que é possível trabalhar de outras formas.

Veja, a socialização dizia muito mais e nós perdemos isso, não demos muita importância para a socialização física e agora estamos vendo isso. Os alunos existiam fisicamente e davam um suporte humano e físico que inspirava o docente a ser melhor.

Então, estamos agora refletindo sobre como ser melhor sem este suporte físico. É tentar enxergar além, ser mais humano ainda, por incrível que pareça, mas sim, ser mais humano é possível.

O acesso à tecnologia e à pesquisa, inclusive durante a aula, foi muito facilitado e funciona muito bem nesse momento. Trazer convidados para complementar a aula, muitas vezes, é até melhor e para mim fluiu melhor do que em sala ade aula.

Então, há uma mudança positiva no ensino à distância. Esse outro olhar que nós professores precisamos ter, para reaprender nossa função - e que existe um limite para evoluir também -  foi muito bom. Foi sofrido, hoje eu saio mais cansado nesse modelo de aula do que no físico, mas certamente há muitos pontos positivos.

Luciana Freitas: E sobre os próximos profissionais?

Professor Dr. Claudio Langroiva: Seja aquele profissional que vai se formar hoje, com o mundo como está, seja o profissional que vai formar essas pessoas, ambos devem tomar dois cuidados: o primeiro -  não fazer do universo virtual um hábito e nem uma regra; segundo – apesar disso, não dispensar essa nova realidade e as novas tecnologias como instrumentos de trabalho. 

Então, vejo que temos uma dificuldade de compreender de onde vamos tirar um ganho, um ganho complementar, não podemos achar que vamos transformar um curso de direito em um curso remoto com a mesma qualidade. Isso não é possível, porque a presença humana, a integração e interação de sentimentos e de sensibilidades humanas são essenciais para alguém que quer trabalhar nesta área.

Eu tenho certeza que todos os professores, assim como eu, sentem a falta da sala de aula física, no entanto, não podemos negar que o ensino retomo nos trouxe um outro nível positivo de reflexões e devemos usar isto para crescer e melhorar como docentes e como cidadãos.

 Universidade Federal do Mato Grosso

As universidades federais são muito importantes para o Brasil, com uma relevância ímpar, uma vez que possuem ensino de excelência, um corpo docente de alto nível, formado pelos maiores pesquisadores do país e estão em todos os cantos do território nacional.

Assim, cada instituição traz também a riqueza de pesquisa de sua região. Elas produzem conhecimento, com espaços de troca da comunidade: professores, funcionários, alunos e a comunidade de seu entorno.

Segundo o Censo de Educação Superior, divulgado em 2018, o Brasil contava com 109 universidades federais, com cerca de 1,5 milhão de estudantes. Nessas instituições, também se desenvolvem projetos e pesquisas científicas importantes para a sociedade, além disso, elas disponibilizam também serviços gratuitos ou acessíveis de saúde, educação e cultura. São polos de inovação em diversos contextos.

Entre as instituições federais, uma das que mais se destaca é a Universidade Federal do Mato Grosso. Criada em 1970, a Fundação Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) tem sede em Cuiabá e conta com campi em outras cidades: Barra do Garças, Pontal do Araguaia, Sinop e Várzea Grande. A instituição desenvolve ações sociais que beneficiam o crescimento regional, sempre preservando o ecossistema, a cultura e formação profissional locais.

Para entendermos a docência no contexto das universidades federais entrevistamos o professor Celso Luiz Prudente - Doutor em Cultura pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, pós-doutor em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e professor associado da Universidade Federal do Mato Grosso. É ainda pesquisador do Centro de Estudos Latina Americano de Comunicação e Cultura da ECA/USP e Curador da Mostra Internacional do Cinema Negro.

Luciana Freitas: As universidades federais recebem estudantes com vários perfis sócio econômicos e a virtualização do ensino intensifica ainda mais as diferenças de realidades entre os alunos. Como essa desigualdade se dá no processo de aprendizagem?

Professor pós-doutor Celso Luiz Prudente: Acredito que as relações de desigualdade se tornaram mais evidentes nestes tempos, pois com a crise sanitária mundial, a saída que a universidade encontrou para o isolamento social foi a flexibilização da aprendizagem.

Esta flexibilização abriu espaço para discussão do professorado e sensibiliza o corpo docente, nos diferentes níveis, e deve ser pensada também sob o olhar do problema da inserção nos aparatos da era tecnológica. Ou seja, é necessário   discutir a disponibilidade desses aparatos entre os alunos, num quadro de assimetria social.

Nesse campo existem diferenças consideráveis: em alguns casos há alunos que detêm acessos com ferramentas sofisticadas, para a maioria há acesso tímido com ferramentas precárias e há ainda os que não possuem instrumentalização mínima ao acesso à internet. Esta diferença é histórica no Brasil.

E com um dado mais agravante, somos um país que se mostra resiliente em relação à desigualdade, nós infelizmente a naturalizamos. A naturalidade diante da diferença social desconfortável em ambiente acadêmico em que o mínimo de aparência democrática é muito cara para este seguimento, além disso, a prática de formação universitária na flexibilização torna a contradição desta naturalidade mais evidente, questionando o anacronismo da universidade enquanto instituição, considerando que contemporaneidade e exclusão, por essência, são antitéticos, ficando no período de isolamento social.

Por outro lado, a visibilidade nua e crua do desprivilegiado social, que é visto pelo estabelecido, mais o agravante do momento pandêmico, coloca também à luz a contradição do privilegiado como nunca foi visto. Lembro que Sartre observou que o homem caucasiano sempre olhou o outro como diferente, sem que fosse olhado. Esta lógica de dominação, da euroheteronormatividade, que foi percebida pela acuidade da lente sartreana é posta em cheque agora, sendo desmitificada.

Ao olharmos para as grandes massas marginalizadas em relação ao ensino de qualidade ou aos instrumentos que permitem o acesso ao ensino próximo de proficiência e eficiência, olhamos também para os grupos privilegiados e percebemos que eles não constituem a excelência. Eles configuram simplesmente um privilégio que se dá com a virulência pela falta de igualdade de oportunidade.

As classes sociais privilegiadas se mostram estabelecidas no Brasil, por um princípio republicano, em que a excelência na formação é fundamental, mas há falta de igualdade e de oportunidade no processo de concorrência pelos postos de trabalho, além de qualidade. São beneplácitos do privilégio historicamente determinado. Isto, por sua vez, coloca em cheque a meritocracia.

O que estamos vivendo nesse momento de isolamento social, com a flexibilização do ensino, é a fragmentação do mito da meritocracia: não se tem, com efeito, meritocracia no Brasil, o que temos é uma dominação de classe, a ponto de ser desconfortável falar em excelência de formação, comenta-se que diante de um julgamento o juiz em voga apontou um réu como criminoso pela sua raça.  

O problema aqui parece ‘ao meu quase cego ver’ ir além do racismo, percebendo-o como resultado da má formação, que é própria da ausência de concorrência propiciada pelas garantias dos privilegiados -  em razão da ausência do direito de igualdade de oportunidade, um princípio inquestionável da democracia republicana.

O que se percebeu, neste caso, foi talvez um profissional, que custa caro para o Estado, tendo uma devolutiva negativa – que provavelmente decorreu da má formação. De certa maneira, o que estamos vendo é uma exposição das classes sociais que não se constituíram em elite social, mas sim em meras classes privilegiadas. Essas classes têm como comportamento político distante das amplas maiorias porque não se identificam, gerando assim a resiliência com a desventura dos grupos que elas próprias marginalizam.  

Assim, se impõe uma tentativa da dor da exclusão que a falta de aparatos tecnológicos, frente a flexibilização do ensino em tempo de pandemia, trouxe, sem os retoques políticos e ideológicos que amparam a naturalidade da convivência, um anacronismo excludente (que se faz presente na escolaridade, por meio da tecnologia da informação que tem mostrado ainda mais o despossuído, na medida em que revela o mais rico e alvejado o detentor de privilegio social, “constrangendo” as relações mitológicas de meritocracia).  

Luciana Freitas: Há uma desigualdade, um racismo estrutural que impõe barreiras, mas pensando na área de educação, o senhor acredita também que pode ser uma questão cultural, de como enxergamos a educação e o processo de aprendizagem?

Professor pós-doutor Celso Luiz Prudente: Em primeiro lugar, eu faço uma distinção: o que chamamos de educação é a aprendizagem, pois a educação é um princípio ético, de ética pública, um devir, aquilo que virá a ser, na construção ontológica que vê no altruísmo a possibilidade de relação ideal.

Quando estamos por demanda ética mais perto da perfeição, estamos também mais próximos da educação. Vivemos uma sociedade em que as relações são patológicas, criadas por uma série de contradições, portanto, estamos ainda longe do império da educação, vivendo relações de escolaridade e da aprendizagem que mostram ainda a impregnação patológica da euroheteronormatividade, pautando a verticalidade do euro-hetero-macho-autoritário -  o sujeito da escolaridade monocultural, desconsiderando a dinâmica emergencial multirracial, das relações étnico-raciais.

Porque se nós tivéssemos um processo de educação não existiria racismo, machismo, homofobia, não existiria distinção social por questões econômicas. A educação é a superação dos anacronismos sociais, considerando que preconceito e conhecimento são antitéticos.

O Brasil tem uma sociedade de aguda segregação sociorracial, de vocação euro-ocidental, na qual, os grupos privilegiados vivem melhor na sociedade, onde se estabelecem no processo de darwinismo racial as amplas massas miscigênicas da horizontalidade da imagem do ibero-asio-afro-ameríndio, implicando-lhes a tentativa de um inferno social, configurado na proibição do direito de igualdade de oportunidade na aprendizagem. 

Este inferno é visto agora de forma inequívoca na exclusão da tecnologia de informação, que ficou cristalina com a flexibilização do ensino na crise sanitária mundial causada pelo COVID 19. Somos vistos assim como atrasados, anacrônicos e excludentes.

Isto sugere às forças hegemônicas brasileiras um nível de “esquizofrenia”, chamado aqui de síndrome de espelho, um medo de se reconhecer nos outros grupos que lhe são objeto de negação. Temos uma classe dominante de ‘corporalidade miscigênica’ que se vê com alma euro-ocidental caucasiana.

Nesse momento de pandemia, a flexibilização do ensino, mediante à desigualdade do aparato tecnológico de informação dos estudantes concorreu para fragmentar o mito da meritocracia. Isto se soma à contradição do ENEM, que veio “para democratizar a escolaridade” mas mostra dificuldade para cumprir o seu fim, tornando-se na verdade um outro vestibular, influenciado pela indústria do cursinho.

Luciana Freitas: Então, quem vai se dar bem no ENEM são novamente as pessoas que têm mais acessos garantidos e tecnologia?

Professor pós-doutor Celso Luiz Prudente: São os estudantes quefrequentam os melhores hospitais e moram nos melhores bairros, nos lugares que se veem mais cuidados pelas municipalidades. Onde os jovens empobrecidos, miscigenados e escuros, configurados na horizontalidade da imagem do ibero-asio-afro-ameríndio, em que o branco pobre iberodescendente, o amarelo asiodescendente, o preto afrodescendente e o vermelho amerindiodescendente são mais suscetíveis à incidência de óbitos por violência do que os jovens brancos eurodescendentes residentes de lugares privilegiados.

Então, assistimos constantemente a uma contradição: em lugares frequentados pela classe média alta e clara, a irreverência do belo tecido da juventude, como se aprende em Vitor Hugo, é compreensivelmente e observado pela ordem estabelecida da localidade.  Por outro lado, os eventos de lazer, da juventude empobrecida e escura, tal como o baile funk e outras badalações são finalizadas com frequência pela violência policial.  

No entanto, nas baladas da classe média a polícia não aparece ou tem assistido com tranquilidade à movimentação característica do ambiente juvenil. O IVJ - Índice de Vulnerabilidade Juvenil de 2017, em conformidade com Marlova Jovchelovetch Noleto, Representante da UNESCO, demonstrou que o homicídio na juventude, viés de raça e gênero, nos estados brasileiros, excluindo o Paraná, a mulher negra tem maior incidência. Cumpre observar que a desventura que se tenta impor à juventude empobrecida de horizontalidade da imagem do ibero-asio-afro-ameríndio, enquanto minoria vulnerável vista como estranha ao ‘nomos da euroheteronormatividade’, que determina a verticalidade da hegemonia imagética do euro-hetero-macho-autoritário, também concorre para desvantagem deste jovem marginalizado no processo de formação escolar nos diferentes níveis.

Essa crise fez com que percebamos que não temos elite social e sim classes dominantes.  Para o estabelecimento do fenômeno da elite social faz-se necessário um fator identitário. Parece frágil ser elite de um grupo com o qual não se tem identidade, a rejeição da classe dominante da sua própria identidade étnica a impede de ter condição de elite social, colocando-a na mera condição de classe dominante.

Esse momento de isolamento social e de flexibilização, nos diferentes  níveis de ensino,  mostrou que  as relações de privilégios dos grupos possuidores cristalizaram a diferença de aparato tecnológico entre os estudantes de modo constrangedor, de tal sorte que esta contradição  social na demanda do aparato tecnológico e o problema do acesso à internet entre os educandos, formou um quadro de injustiça social exposto nas relações de escolaridade – o que debilitou o mito da meritocracia e deixou constrangidas as relações de institucionalidade, na medida em que isto coloca em questão a fragilidade das relações democráticas e mostra  que elas se estabelecem em um plano seletivo de natureza censitária.

Situação que parece chamar atenção para o inegável discernimento em que há possibilidades de consolidação da democracia, sem a integração sociorracial das amplas camadas miscigênicas, visto sobretudo na marginalização absoluta dos detentores dos fenótipos de africanidade e da amerindidade -  maioria entre os despossuídos de acesso de internet e do aparato tecnológico de qualidade.  

**Os entrevistados foram escolhidos pela jornalista responsável pela matéria.

*Luciana Freitas é jornalista, designer e docente de Ensino Superior Educação à Distância (EAD).

Na próxima edição do especial Universidades em tempos de pandemia, traremos a Universidade de São Paulo e Universidade 9 de julho