Está aberta a temporada de minimização do crime ambiental de Mariana

Professor da UFRJ proclama ressurreição em 5 meses do Rio Doce e imprensa adora; como ele também quer retirada de povoados vizinhos, não se trata somente de ciência

Lama que saiu da barragem de Mariana (Foto Reprodução)
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Professor da UFRJ proclama ressurreição em 5 meses do Rio Doce e imprensa adora; como ele também quer retirada de povoados vizinhos, não se trata somente de ciência Por Alceu Luís Castilho, em seu blog no Outras Palavras A BBC Brasil publicou a entrevista e logo os jornais ficaram exultantes: um professor de Engenharia Costeira da UFRJ disse que os efeitos da lama da Samarco (Vale, BHP) no mar serão “desprezíveis” e que o Rio Doce estará ressuscitado em cinco meses. Paulo Rosman logo ganhou a manchete do UOL. E ganhou porque não se trata somente de ciência. E sim de disputa por discursos. Com origem filosófica e, como não poderia deixar de ser, uma determinada posição política. Basta observar a visão que o pesquisador tem dos povoados vizinhos à Samarco – os que sobreviveram. Ele diz que seria “criminoso” não retirar os outros povoados no caminho de outras possíveis avalanches e que seria “Inaceitável” o governo – observemos que o estudo foi feito para o Ministério do Meio Ambiente – permitir que os moradores retornem aos povoados destruídos. Ele faria ali um parque memorial: “Fazer um projeto bonito, fazer um paisagismo, uma correção de solo, um jardim, e ficaria como memória, com homenagem às pessoas que sofreram essa desgraça toda”. Não se vê a mesma ênfase na palavra “crime” ao se falar do rompimento da barragem. A morte de 23 pessoas (contando os desaparecidos) aparece como “desgraça”, um “evento”. Perguntado sobre irresponsabilidade dos envolvidos, ele evita até esse termo mais ameno: diz que não há como falar em irresponsabilidade porque não se sabia, “irresponsabilidade é quando você tem consciência do fato e não faz nada”, “tudo é óbvio depois que você já sabe o que aconteceu”. Ora, isso simplesmente não é verdade. O risco de rompimento de barragens existe. Tanto é que elas se rompem anualmente, pelo mundo, já se romperam em Minas Gerais, com menos repercussão. E isto conforme a própria literatura científica – o histórico de acidentes com barragens, especificamente com barragens de resíduos. E o professor sabe disso. O que há é um processo de minimização da catástrofe. Como se tivesse mesmo sido um acidente. O retorno de Voltaire A fala do professor lembra a de um personagem de Voltaire, o Cândido. Protagonista do livro homônimo. Ele e o Doutor Pangloss consideravam que tudo poderia ficar sempre melhor, mesmo após um revés, ou mesmo uma catástrofe gigantesca. O nome do livro tem um complemento significativo: “Cândido, ou O Otimismo” (1759). Mais de 250 anos depois, atual. O filósofo francês estava sendo absolutamente sarcástico. Em jogo, a ideia de providência, a perspectiva religiosa de que tudo poderá ficar sempre melhor – embora os personagens vivessem a experiência contrária. “Todos os acontecimentos estão devidamente encadeados no melhor dos mundos possíveis”, dizia o guru Pangloss, incorporando o otimismo do alemão Leibniz. Voltaire escreveu o livro em 1758, três anos após o Terremoto de Lisboa. Fez sua obra-prima justamente a partir da perplexidade com que via a aceitação passiva de tudo o que de ruim acontecesse, como se já estivesse designado. O filósofo francês fazia um libelo contra o fatalismo – bastante conveniente para os governantes – e defendia o protagonismo do homem frente ao “mal”. Aceitação e 'limpeza' A visão de mundo do professor da UFRJ – ele não é somente um especialista em assuntos técnicos, ele tem uma visão de mundo – é bem diferente. Ele evita falar em responsabilidades humanas (ou empresariais) em relação ao que já aconteceu. Apenas diz que seria “crime” manter os povoados remanescentes na mira de outras “avalanches”. Ou seja, ele naturaliza (utilizando um termo que remete à natureza, avalanche) o despejo de resíduos tóxicos por uma empresa. Como se fossem um evento divino a ser aceito candidamente pela sociedade. Os povoados é que têm de ser retirados. Mesmo que já existissem muito antes de serem construídas mineradoras na região. A atividade destas é tomada como algo anterior, central, primordial – elas que teriam a primazia. A partir de uma visão como essa, que celebra o poder econômico, nada mais coerente que, após minimizar a matança de espécies no Rio Doce por cinco meses (caso se confirme sua previsão ousada), minimizar o impacto da morte do Rio (ainda que temporária) para indígenas, pescadores e camponeses, o cientista diga ao governo – sob pena de que esse cometa um crime – para retirar essas pessoas que moram por ali, vejam só, elas estão incomodando as inevitáveis mineradoras. Foto: Bruno Bou/Jornalistas Livres