Estados (Des)Unidos da Viadagem

"Tudo começou com o recrudescimento do moralismo, em conjunto com a mistura nefasta de política e religião. Em pouco tempo, as rachaduras existentes na comunidade LGBT transformaram-se em abismos".

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"Tudo começou com o recrudescimento do moralismo, em conjunto com a mistura nefasta de política e religião. Em pouco tempo, as rachaduras existentes na comunidade LGBT transformaram-se em abismos" Por Fabrício Longo, d'Os Entendidos A maioria venceu e todo mundo perdeu. Pais renegaram seus filhos, irmãos brigaram entre si e amizades foram desfeitas para sempre. Drama define. A vontade de uma maioria estúpida e raivosa prevaleceu: os viados foram excluídos para sempre da sociedade normal. Tudo começou com o recrudescimento do moralismo, em conjunto com a mistura nefasta de política e religião. Em pouco tempo, as rachaduras existentes na comunidade LGBT transformaram-se em abismos e os gays, que já eram misóginos e transfóbicos, passaram a perseguir os outros, acreditando que por “se dar ao respeito” seriam poupados do “bichocausto”. A disseminação dessas ideias preparou o terreno para que os brados separatistas fossem ouvidos, e em pouco tempo o “Muro da Decência” foi erguido. Em suas guaritas, os guardas encapuzados usavam capas largas que não mostravam o corpo, pois o fetiche de homens de farda tinha virado tabu. Do lado normal, os tijolos eram cinzas e no lado desviado, arco-íris. Ser mandado para o lado gay era a coisa mais fácil do mundo, bastava conhecer alguma música da Beyoncé. A volta para o lado hétero era completamente impossível, pois “não existe ex-viado”. Todos que insistiam em tentar, tornavam-se apátridas, perseguidos pelos dois lados. O Estado hétero seguiu com sua normalidade e perdeu muito da graça. Seu cinema e sua música ficaram chatos, não tinha mais novela e aquela coisa que os habitantes chamavam de “moda” era digna de pena! No Estado LGBT, a arte e a cultura regiam o dia, enquanto festas sofisticadas e baladas concorridas dividiam a noite. Os dias nasciam no After e o sexo era uma festa, com todos experimentando a dor e a delícia da liberdade, com seus gostos e suas cores. Não existia pecado deste lado do arco-íris, e os jovens expulsos pelo lado cinza eram acolhidos com alegria. Porém, durou pouco. O Estado LGBT só era LGBT no nome. Na prática, era apenas gay. E essa cultura continuava obcecada por corpos perfeitos e por um simulacro estúpido de hipermasculinidade. A felicidade se media por roupas de marca, perfumes caros, drogas gourmet e a troca incessante de iPhones. As lésbicas, as travestis, as pessoas trans e os efeminados foram segregados. A construção do muro não era ruim, já que a pegação estava muito mais fácil agora, mas eles deveriam pagar o preço por ter provocado a cisão. Tudo estava bem antes, então só pode ter sido por causa deles – com seus gostos extravagantes e modos antissociais – que fomos todos jogados para o lado imoral da divisão… Sim, era ótimo escolher homens via celular e promover orgias em boates, mas todos sabiam que isso era puro escapismo. Uma ajuda para engolir o recalque de ser segregado e de ser marcado como diferente. No fundo, ainda tínhamos os valores aprendidos na infância e não existia motivo prático para abandoná-los. Quem sabe se rezássemos – até literalmente – pela mesma cartilha que os héteros, o muro não seria derrubado? Está certo que não fomos nós que o construímos e está certo que temos potencial para viver muito bem sem a aprovação deles, mas talvez… Talvez… Com esse pensamento, o Estado Gay foi instaurado e qualquer manifestação de feminilidade – especialmente em homens – passou a ser reprimida. Novos muros foram construídos e famílias que tinham se formado por laços de afeto sangraram mais uma vez, enquanto amigos caíam na clandestinidade e voltavam a ser cidadãos de 24ª classe. No fim, nada adiantou. O muro continuou intacto e as bichas continuaram sendo tratadas como anormais e imorais, com a diferença de que agora não tinham nem a mesma graça e nem a alegria de outrora. eram como os héteros separatistas, em cinza, por mais que suas camisetinhas coladas fossem sempre em cores neon. Os apátridas sofriam, mas eram divertidos. Já os gays, tinham sido domesticados e higienizados a troco de nada, pois nenhum tratado de respeitabilidade podia derrubar o muro. Nos tweets e perfis, as imagens eram de luto e o chororô era interminável. De que adiantara tanto trabalho e tanto sofrimento, se o esforço foi inútil? Além de segregados e oprimidos, ainda nos dividimos e passamos a oprimir, sem ter sequer o consolo de uns bons drink!