“Estamos vivendo um período grave de bastante inclinação autoritária”, diz professor da Unifesp

Renan Quinalha também afirma que momento atual, em certo sentido, é pior que na ditadura, pois, os ataques à liberdade de imprensa e aos Direitos Humanos irradiam de vários pontos, o que torna o combate e análise mais difíceis de serem realizados

Foto: arquivo pessoal
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Na mesma semana que foi divulgado o relatório do Repórteres Sem Fronteiras, onde o governo Bolsonaro e os filhos do presidente são apontados como os responsáveis por 85% dos ataques à imprensa, o presidente voltou a atacar, de maneira virulenta, os jornalistas.

Ao ser questionado sobre a compra milionário de leite condensado, Bolsonaro respondeu que fez a comprar para enfiar os leites condensado no "rabo da imprensa".

A relação conflitante entre extrema-direita e imprensa é uma questão que assola o Ocidente neste momento histórico. Países como Hungria e Polônia, e também o Brasi, atuam cotidianamente contra a liberdade de imprensa e aplicam uma política de Direitos Humanos seletiva, onde alguns grupos são dignos de mais direitos do que outros.

Para falar sobre os riscos da democracia brasileira e os ataques por parte do governo Bolsonaro à política de Direitos Humanos, conversamos com o pesquisador e professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Renan Quinalha, que também é autor do livro, em parceria com o historiador James Green, "Ditadura e Homossexualidades: Repressão, Resistência e a Busca da Verdade".

À Fórum, Quinalha afirmou que o Brasil vive, neste momento, uma campanha de descrédito da imprensa e que isso partir do governo federal e algo "muito grave" e que revela uma "inclinação autoritária" do governo Bolsonaro.

Sobre semelhanças com a Ditadura militar (1964-1985), Quinalha afirma que hoje, em certo sentido, é pior do que na ditadura. "Na época da ditadura você tinha o censor" que ficava nas redações, "hoje a campanha vem de vários pontos […] que torna as coisas mais difíceis do ponto de vista do combate e da análise".

Revista Fórum - De acordo com último relatório do Repórteres Sem Fronteiras, 85% dos ataques à imprensa vieram do governo federal, principalmente dos filhos e do presidente. Como você analisa tal fato?

Renan Quinalha - É muito sintomático que a maior parte dos ataques à imprensa venham do governo federal e a gente sabe que está ocupado por um grupo político, praticamente uma família mesmo, que irradia uma série de tentativas de centralização do poder. Isso é típico de regimes proto-autoritários, em democracias com baixo teor democrático em que os governos, ao invés de protegerem o direito à liberdade de expressão, de valorizarem a liberdade de imprensa, a integridade dos jornalistas, dos trabalhos de Direitos Humanos vão contra isso tudo. É bastante grave que a gente veja que a grande maioria, 85% dos ataques venham diretamente do governo federal.

Os níveis de confiança na imprensa também caíram muito entre a população, de acordo com levantamentos de institutos como o DataFolha e DataPoder. Acredita que haja uma relação?

Há um descrédito geral da imprensa por uma série de razões: a imprensa sempre foi muito oligopolizada no Brasil, sempre defendeu os interesses de determinados grupos políticos e econômicos muito claros, isso contribuiu para uma deslegitimação da imprensa. Mas o problema que nos temos hoje é outro: a imprensa tradicional se pauta por um fact-checking (checagem dos fatos), por um tipo de jornalismo a partir de fontes, que busca informar, uma tentativa de dar o mínimo de credencial para o que se possa chamar de uma verdade.

A gente está vendo um movimento muito mais geral, mais amplo e profundo na sociedade que é anti-ciência, que é anti-apuração, que é um discurso negacionista, obscurantista em vários sentidos e que é, em última instância, anti-iluminista. Há uma descrença na razão, na possibilidade do conhecimento, da construção de verdades, de consensos e paradigmas científicos que também, de alguma maneira, comprometem o nível de confiança da população na imprensa.

Há uma campanha em curso de desqualificação da imprensa e não para colocar algo melhor no lugar, mas ao contrário pra generalizar esse regime de produção de verdades completamente absurdas que vão circulando por grupos de WhatsApp e por outras redes de informação atacado sempre a imprensa, a sociedade civil organizada, partidos de esquerda que contribui para uma desinformação geral.

Esse tipo de ataque à imprensa possui alguma semelhança com os tempos da ditadura?

NA época da ditadura a gente teve uma censura muito grande por parte do governo em relação a imprensa, não há o aparato legal e institucional de hoje que foram utilizados no passado para esse tipo de repressão, de censura e de controle do conteúdo da imprensa, mas a gente está vivendo um período grave de bastante inclinação autoritária e que atualiza esse tipo de intervenção do Estado no discurso e na estrutura da imprensa.

Um presidente que quase que diariamente critica a imprensa de maneira desrespeitosa e vil acaba comprometendo a integridade do trabalho dos jornalistas e dos órgãos de imprensa. É preciso guardar algumas proporções da analogia com a ditadura porque em certos sentidos o que a gente vive hoje é até pior porque é menos fácil de identificar. Na época da ditadura você tinha o censor que ficava ali na imprensa colocado e que ficava dando as diretrizes do que podia e o que não podia.

E hoje, na verdade, é uma campanha que vem de vários pontos e se irradia para vários lugares e que não é fácil de mapear, de saber de onde vem a desinformação, de onde vem aquele tipo de ataque e que torna as cosias mais difíceis do ponto de vista do combate e da análise.

Entre os ministros, Damares Alves, ministra da Família e Direitos Humanos, lidera os ataques à imprensa. O acesso à informação e a comunicação é um Direito Humano, pode-se dizer que o governo Bolsonaro atua contra os Direitos Humanos?

Sem dúvida o governo Bolsonaro atua contra os Direitos Humanos e o ministério da Damares é o maior exemplo disso, é uma pasta que centraliza as funções e políticas no campo dos Direitos Humanos e que trabalha em sentido contrário.

O governo Bolsonaro não é marcado só por uma paralisia nas políticas de Direitos Humanos, por uma omissão, mas por uma atividade em sentido contrário. É uma inversão de sinal que é feita nas políticas de Direitos Humanos.

Então, se tenta ressignificar um discurso seletivo de Direitos Humanos só para “humanos direitos”, é um discurso de Direitos Humanos que não abrange a totalidade da população, que não dá conta das discriminações estruturais que marcam a sociedade brasileira, uma visão abstrata e bastante minimalista que orientam a postura do governo nesse campo.

Esse discurso não está afinado com nada dos tratados internacionais. O Brasil está se notabilizando na política externa justamente porque tem apoiado o que há de mais obscurantista e atrasado no mundo em relação as construções de tratados, convenções e acordos no campo dos Direitos Humanos.

O governo federal tem se destacado nesse sentido e a ministra Damares tem disso uma das principais porta-voz desse movimento conservador em âmbito nacional, mas que tem se espraiado para fora também e é preciso compreender essa dimensão transnacional dessas articulações conservadoras de extrema direita que tem tomado conta do Brasil e além daqui também.