Estupro: onde mora o perigo?

Percepção sobre crimes sexuais poupa família, criminaliza rua e engana. Em cada quatro casos, três ocorrem na casa das vítimas

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O perigo não mora ao lado mas, literalmente, dentro de casa. Se somados, parentes, amigos e conhecidos são 63,4% dos agressores de crianças. Não custa lembrar, metade das vítimas Por Marcos Aurélio Souza, no Outras Palavras A recente pesquisa divulgada pelo IPEA “Estupro no Brasil: uma radiografia da violência” teve um papel pedagógico nas discussões públicas sobre o tema da violência sexual no Brasil. Trouxe para luz do dia a obtusidade agressiva e animalesca que se esconde nos porões da consciência individual de muita gente. Detectou concepções que revelam completa incapacidade de alguns para viver em sociedades, seja qual for seu grau de educação formal. Um dado importante da pesquisa, dentre outros igualmente fundamentais para entender ou estimar em que ponto está a percepção do brasileiro sobre as condições de violência contra mulher, diz respeito à ideia de que a culpa pela violência sexual sofrida pela mulher reside nela mesma, em particular pelo modo como se veste. Ao serem perguntados se mulheres que usam roupa mostrando o corpo merecem ser atacadas, nada menos que 65,1% dos entrevistados afirmaram que sim, concordavam total ou parcialmente com a afirmação. Mais ainda. Para 58,2% dos pesquisados, se a mulher soubesse se comportar, haveria menos estupros. Os números ganharam repercussão nas redes sociais e um movimento #NãoMereçoSerEstuprada iniciado pela jornalista Nana Queiroz ajudou a disseminar o debate, nem sempre com opiniões razoáveis. Segundo Nana, “amanheci de uma noite conturbada. Acreditei na pesquisa do Ipea e experimentei na pele sua fúria. Homens me escreveram ameaçando me estuprar se me encontrassem na rua, mulheres escreveram desejando que eu fosse estuprada”. Nana, no entanto, ganhou reforço de peso na sua luta corajosa. A presidenta Dilma Roussef usou seu twitter para apoiá-la. E mais recentemente personagens como Daniela Mercury emprestaram sua imagem em um nítido apoio ao movimento. Ao mesmo tempo em que a pesquisa do IPEA ganhou tanta repercussão, uma nota técnica1 também do instituto, e que infelizmente não ganhou a mesma visibilidade, divulga números essenciais para evidenciar que a percepção da culpabilidade feminina pela agressão sexual sofrida é apenas isso, uma percepção, e está anos luz da brutal realidade, em termos de violência sexual, de fato vivenciada pelas mulheres. O submundo de abusos mostrado por essa nota é bem mais alarmante. O estudo foi produzido a partir dos dados do Sinan (Sistema de Agravos de Notificação) base gerenciada pelo Departamento de análise de Situação de Saúde, vinculado ao Ministério da Saúde. Em 2011, as notificações tratando de violência doméstica e sexual foram incorporadas ao sistema. Apoiando-se nelas, os pesquisadores debruçaram-se para trazer à tona um diagnóstico que foge do senso comum sobre a violência sexual praticada contra a mulher. Como já esperado, a quase totalidade das vítimas de abusos sexuais é mulher, sendo 88,5%. Entretanto, um dado valioso, diz respeito à faixa etária. Nada menos que metade das vítimas são crianças até 13 anos de idade. Se somados com jovens e adolescentes de 14 a 17 anos (19,4% do total) crianças e adolescentes perfazem o total de pouco mais de 70% das vítimas. Bem, o que não surpreende é que quase 100% dos agressores sejam homens. Se 70% dos agredidos são crianças, jovens e adolescentes, cabe uma questão. Onde essa violência ocorre? Se você fez essa pergunta, provavelmente já tem a resposta. É no lar. Dentro de casa. São 79% dos casos entre crianças; 67%, entre adolescentes e 65% dos casos entre adultos. E se você chegou até aqui, saiba que poderá se assustar um pouco mais. Entre crianças, apenas 12,6% dos casos de violência são praticados por desconhecidos. Isso mesmo. Os atos de violência sexual praticados contra criança acontecem na inviolabilidade do lar, por pessoas conhecidas ou muito próximas das vítimas. Os números se distribuem do seguinte modo: em 11,8% dos casos, o agressor é o pai; 12,3%, o padrasto; 7,1%, namorado; por fim, 32,2% amigo. Ou seja, o perigo não mora ao lado mas, literalmente, dentro de casa. Se somados, parentes, amigos e conhecidos são 63,4% dos agressores de crianças. Não custa lembrar, metade das vítimas. Naturalmente, não se pode dizer que crianças se vistam de um modo provocativo ou tenham comportamento sedutor a tal ponto que leve as pessoas mais próximas a elas a distúrbios emocionais que resultem em um impulso para a prática de violência sexual. Tudo isso se torna estarrecedor, porque essas vítimas podem sofrer violência durante anos a fio, sem a possibilidade de manifestação do seu martírio. Isso significa que a resposta positiva dos brasileiros sobre roupas ou comportamentos como determinantes do estupro está calcada numa terrível ignorância que, se por um lado esconde a realidade tal como é, também serve de conveniente sonífero. Sua função é evitar que nossa sociedade se depare com uma visão terrível: há um mundo de mutilação física e psicológica acontecendo debaixo de nossos tetos, envolvendo maridos, ex-maridos, amantes, amigos, conhecidos, e não sabemos absolutamente o que fazer. Parodiando Zé Geraldo, tudo isso acontecendo e a gente aqui na praça dando milho aos pombos. O estudo conclui com outro dado igualmente assustador. Estima-se que mais de meio milhão de pessoas são estupradas no Brasil anualmente. Dessas, apenas 10% dos casos chegam à polícia. As razões para isso devem ser evidentes, dado que o aparato policial não está preparado para lidar de forma humana com essas mulheres. Os números desse estudo deveriam ser mais aprofundados e deveriam articular entes públicos e a sociedade para enfrentar e quebrar, de forma corajosa, esse pacto de silêncio que insiste em vitimizar todos nós. –
1Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde. Em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf