“Eu não fui assistir porque é muito doloroso para mim”, diz filho de Marighella sobre filme de Wagner Moura

Esta segunda-feira marca os 50 anos do assassinato do guerrilheiro pelas forças de repressão da ditadura militar; aos 70 anos, Carlinhos Marighella sente orgulho de seu pai

Carlinhos Marighella - Foto: Arquivo Pessoal
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Por Geovanna Bispo, Helena Mandarino e Luiz Claudio Ferreira, da Agência de Notícias UniCEUB 4 de novembro de 1969. Carlinhos era um jovem de apenas 21 anos de idade quando recebeu a notícia de que o pai, o guerrilheiro e líder comunista Carlos Marighella, então com 58 anos, havia sido assassinado em São Paulo. Hoje, aos 70 anos, lembra que era acostumado a receber falsas informações de emboscadas contra o pai. O filho vivia em Salvador com parentes. Era o jeito do revolucionário para manter o rapaz em segurança. Até que naquela data, a notícia da morte iria vir com uma imagem e forma cruéis. Ele foi chamado por jornalistas da Tribuna da Bahia para reconhecer, por fotografia, um corpo crivado de balas. “Eu fui para lá achando que era mais uma notícia falsa, mas, quando eu cheguei no jornal, vi que as notícias apresentavam fotos e só então eu percebi, horrorizado, que as fotos eram realmente do meu pai e que ele estava realmente morto”. Marighella foi assassinado em uma emboscada chefiada pelo delegado Sergio Fleury, do DOPS. Em entrevista, Carlinhos diz que ainda não assistiu ao filme dirigido por Wagner Moura, que já foi disponibilizado pelo diretor à família e que foi exibido em festivais em outros países. “Eu não fui assistir porque é muito doloroso para mim. Inclusive ver essas cenas. Eu geralmente mando meus filhos assistirem primeiro”. Carlinhos, hoje aposentado, é pai de três filhos: Ana Rita, de 50 anos, Maria, de 42 anos, e Pedro, de 39 anos, e avô de dois netos. A vida profissional dele foi de altos e baixos. Por causa do sobrenome, chegou a perder uma vaga na Petrobras. Ficou desempregado por sete anos. A perseguição atingiu toda a família. Apesar de homenagens a períodos ditatoriais por membros e apoiadores do atual governo, Carlinhos é otimista com o futuro do país. Crê que ameaças à democracia gerariam reações muito maiores do que em 1964. Agência UniCEUB – Como era a sua relação com o seu pai? Carlinhos Marighella – Eu só fui morar com ele em 1958 (10 anos de idade). Até então, eu não tinha sequer sido registrado por ele, já que eu nasci exatamente no período que ele teve o mandato cassado e teve que sumir. Os comunistas foram mandados para a clandestinidade e, em determinado momento, eles constituíram uma importante bancada de deputados e senadores. Em seguida, houve a cassação do registro do partido e depois a cassação dos mandatos e mandados de prisões contra deputados federais. Meu pai sumiu. Mas, ainda assim, eu sabia que era filho de Marighella, eu cresci como filho de Marighella, sabia a qual família eu pertencia. Então, resultado, eu só fui conhecer ele em 1958, com a eleição de Juscelino Kubitschek, quando, dentro do espaço político, não houve mais perseguições. Só então eu fui conhecer o meu pai e morar com ele no Rio de Janeiro. Foi uma coisa maravilhosa. Ele era extremamente alegre, um pai desses brincalhões, embora exigisse muito resultado e desempenho na escola, ele era muito legal. Eu fiquei muito feliz em conhecê-lo e conviver com ele nesse período. Agência UniCEUB – O senhor tinha quantos anos? Carlinhos Marighella – Eu o conheci em 1956 e eu sou de 1948, então eu tinha oito anos de idade. Agência UniCEUB – Onde o senhor estava quando recebeu a notícia que o seu pai tinha sido assassinado pelos agentes da ditadura? Carlinhos Marighella – Eu fui morar com ele e com a Clara (esposa dele) em 1958 e vivemos muito bem até 1964. Naquele ano, com o golpe militar, eu tive que ir embora da casa do meu pai porque a polícia invadiu nossa casa. Naquele ano, inclusive, meu pai foi baleado no cinema do Rio de Janeiro. Então, eu voltei para Bahia já com 15 anos. Mais uma vez a política me afastou do meu pai. Foi uma grande tragédia e sofrimento para mim. A partir daí meu pai passou a ser o inimigo número um da ditadura, já que ele denunciava a ditadura, explicava que havia sido um golpe militar e que não era uma quartelada que ia acabar em pouco tempo. Ele começou a ser perseguido e eu tive que voltar para a Bahia. Aqui na Bahia, eu convivi muito tempo com as notícias de que ele estava sendo procurado, que ele havia sido encontrado, morto, mas ele logo reaparecia. Aquilo acabou criando em nossa família uma espécie de crença de que ele nunca morreria, que nunca chegaria a esse desfecho. Então, quando a notícia chegou de que ele havia sido morto, foi de uma maneira bem peculiar. Eu estava em casa, em 1969, e um jornalista (da Tribuna da Bahia) foi até a minha casa me dizer que gostaria que eu fosse até a redação do jornal para confirmar a notícia que estava circulando nas redações dos jornais de que meu pai havia morrido. Eu fui para lá achando que era mais uma notícia falsa, mas, quando eu cheguei no jornal, vi que as notícias apresentavam fotos e só então eu percebi, horrorizado, que as fotos eram realmente do meu pai e que ele estava realmente morto. Agência UniCEUB – O que o senhor fazia na época? Estava estudando? Carlinhos Marighella – Eu tinha acabado de passar no concurso da Petrobras e fazia um curso de especialização em produção. Na época, a Petrobras fazia seleções e recrutava alunos com nível para tornarem técnicos da empresa e eu era um dos que tinham as melhores notas. Era bom trabalhar lá, tinha um salário bom. Mas aí depois de um tempo descobriram que eu era filho do Marighella e me demitiram. Agência UniCEUB – Isso o senhor passou algumas vezes ao longo da vida? Carlinhos Marighella – Muitas vezes. Eu já fui expulso de escolas no Rio de Janeiro. Foi um fardo que eu suportei por muitas vezes com muito orgulho de ser filho de quem eu sou. Não só eu, toda a minha família, tias, tios, primos. Eu tinha até um primo que queria ser militar. Minha tia criou ele para ser militar e ele prestou todos os exames para ser oficial, notas máximas etc. Quando a lista saiu, ele não havia passado. Minha tia foi reclamar, já que o filho dela teve nota máxima nas provas, e o sargento disse “minha senhora, como a senhora quer que um Marighella seja aceito no Exército brasileiro?”. A nossa família se tornou perseguida. As pessoas olham esses embates políticos como se eles fossem distantes da vida. Mas a verdade é que esses acontecimentos, como a ditadura, afetam todo o país, todos vivem essa restrição. Agência UniCEUB – O senhor acabou não ficando muito tempo na Petrobras? Carlinhos Marighella – Eu fui demitido. Naquela época não é como hoje. Às vezes, a gente fala e as pessoas não tem noção como que era a realidade. Naquela época, eles levaram algum tempo para me relacionar com o meu pai. Eu levei na Petrobras cerca de um ano  e pouco até que eles, exatamente no ano de 1970, descobriram que trabalhando na refinaria estava um filho de Marighella. Disseram que eu era contra-indicado. Uma pessoa cuja permanência na Petrobras não era bem vista. Aconteceu inclusive que meu próprio chefe na época me chamou dizendo: “acabei de receber uma ordem e estou muito constrangido, afinal você é uma pessoa que corresponde aos padrões regidos, nós não temos muitas pessoas com seu nível, com seu treinamento, mas se eu não lhe demitir quem vai ser demitido sou eu”, e era mais ou menos assim que as coisas funcionavam na época. Agência UniCEUB – Aí o senhor foi trabalhar com o quê? Carlinhos Marighella – Quando eu fui demitido da Petrobras, por volta dos anos 1970, eu me tornei por conta da própria Petrobras um técnico muito qualificado em produção de petróleo e em produtos petroquímicos. Então, eu trabalhei com algumas empresas que lidavam com isso, não podia ser qualquer empresa porque as empresas que a Petrobras tinha participação eu era vetado. Muitas vezes fiquei sem emprego por causa de empresas que faziam trabalhos com a Petrobras ou empresa que pertencia ao sistema Petrobras, eu era identificado como um Marighella, era demitido e obrigado a sair da empresa. Agência UniCEUB – O senhor é aposentado? Carlinhos Marighella – Atualmente, sim, eu tenho 71 anos de idade, ainda bem que estou assim aposentado, aproveitando o que a aposentadoria permite. Agência UniCEUB –  O senhor ficou preso em Salvador? Carlinhos Marighella – Sim. Fui preso em Salvador em uma operação comandada por aquele coronel “brilhante” (Carlos Alberto Brilhante) Ustra. Depois de ficar preso por dez dias, em um lugar clandestino, não fui levado para nenhuma prisão. Só então houve a simulação de um processo onde as pessoas que foram presas comigo e eu fomos condenados a cumprir dois anos aqui em Salvador. Agência UniCEUB –  Como o senhor e a sua família reagiram quando o filme do Wagner Moura teve o lançamento adiado?  Carlinhos Marighella – Quando o Wagner se propôs a fazer o filme, ele nos procurou. Inclusive, recebeu autorização formal a levar adiante o projeto dele, porque o filme, de qualquer maneira, embora de ficção, demandaria uma série de detalhes e autorização de parentes e familiares. Então, a gente acompanhou a luta do Wagner Moura para concluir o filme. Esse filme foi feito com muitas restrições financeiras, com base no contexto político diferente que a gente tá vivendo. Em um governo que quer negar a história do Brasil e às vezes quer justificar a ditadura e todos os crimes cometidos, então não foi uma surpresa para a gente que o filme tenha recebido as restrições que recebeu para ser exibido no Brasil. Pelo que eu compreendo com as conversas com a equipe de Wagner Moura, o filme vai ser exibido em breve e vai ser muito interessante, porque embora seja um filme de ficção vai atingir a população jovem, principalmente para conhecer esse personagem maravilhoso que é Marighella. Vão ver a história de um brasileiro que corajosamente se negou a sair do Brasil com o advento do golpe militar, denunciou a ação fascista dos militares que decretaram esse golpe, e cometeu a suprema ousadia de enfrenta-los. Vai ser muito legal quando esse filme for exibidos e acredito que não vai demorar muito. Agência UniCEUB – O senhor chegou a assistir ao filme? Carlinhos Marighella – Não, não assisti, porque é muito doloroso para mim ver essas cenas, eu geralmente mando meus filhos assistirem primeiro. Agência UniCEUB – De que forma o senhor explicou para filhos e netos sobre quem foi Marighella? Carlinhos Marighella – Claro que agora a gente vive em um país em que a população tem mais consciência das atrocidades vividas. Durante toda a minha vida, no alto dos meus 70 anos, eu vejo que vivi um período em que as mentiras sobre Marighella eram recorrentes. Ele era apontado como um criminoso, um assassino… Diziam que quando ele foi assassinado, foi em combate. Naquele combate havia morrido uma jovem policial, então era isso que predominava. Nos tempos atuais estão mais do que esclarecidas as circunstâncias da morte dele, que ele foi morto mais do que covardemente, ele já estava preso e sob domínio das forças policiais. Enfim, eu noto que há, em relação a Marighella, o oposto do que eles queriam, sobretudo a juventude vê Marighella como uma inspiração, como um exemplo. Eu vejo surpreso que nas manifestações de rua sempre tem alguém com uma bandeira “Marighella vive”, e essa é mais ou menos a realidade que meus filhos vivem, embora eles tenham sofrido mesmo que indiretamente com a perseguição. Minha filha Maria nasceu enquanto eu estava preso. Eu a conheci ali na prisão e ela tem claro no relato de vida dela, que ela ainda bebê foi levada à prisão para conhecer o pai que estava lá encarcerado. Eles foram criados assim como eu, fui a ter orgulho de pertencer a essa família e acredito que eles são totalmente entusiastas desse vínculo familiar que tem com uma personalidade que foi meu pai, o velho Marighella. Agência UniCEUB –  O senhor vê semelhanças desse momento com aquele anterior à ditadura militar?  Carlinhos Marighella – Eu acho que sim. Se a gente pensar com perspectiva histórica, embora o Brasil tenha desenvolvido muitas coisas, a gente vive uma situação pendular, em que certos temas voltam, e que às vezes a gente retoma temas que pareciam esquecidos. Por exemplo, pessoas do governo eleito defendem a ditadura. Esse tipo de pensamento era presente em 1964. Esses temas vão e voltam como se a gente não houvesse aprendido nada nesse tempo todo, então me parece que vendo e ouvindo, lendo jornais que não deixo de pensar que é como se a gente estivesse vivendo aquele momento que eu pensava que já tínhamos superado. E por isso mesmo Marighella é importante, porque se a gente for procurar hoje inspiração para negar, testemunhar, não aceitará que tais pensamentos sejam legitimados e aceitos. A gente pode reler o que Marighella escreveu sobre isso e pode inclusive buscar inspiração nele, porque o que pega era o que diziam: comunista, intolerante. Mas o fato é que Marighella era um libertário, toda atuação política dele estava centrada na ideia de que a gente não devia aceitar uma ditadura no Brasil. Então, realmente eu vejo muita atualidade, inclusive no pensamento de Marighella. Agência UniCEUB – Depois dos anos 2.000, a gente acaba tendo um maior número de publicações sobre Marighella, como documentários, biografias. O senhor acha que essas produções culturais são fundamentais para trazer um novo olhar sobre Marighella? Carlinhos Marighella – Hoje em dia é indiscutível que não se pode falar de luta contra a ditadura no Brasil sem falar de Marighella. Então, nós tivemos pessoas consideradas grandes personalidades, Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, cada um deles ao seu modo. Então, é natural que essas pesquisas e biografias tenham surgido e cada vez mais publicadas. O filme de ficção originou-se da biografia, por exemplo. Minha filha estudou com o Wagner Moura e ela esclareceu para ele quem ele era. Agência UniCEUB – O senhor é otimista com o futuro do país? Carlinhos Marighella – Totalmente. Eu acho que mesmo que a gente tenha esses riscos do qual a gente tá falando agora, eu acho que a população brasileira está muito mais preparada para entender esse processo e participar dele. Se um louco, um político translocado tomasse a decisão de interromper esse processo de liberdade e democracia, haveria em si de fato muito mais reação do que 1964.