Fernando Haddad: tranquilão, mas na briga

Haddad deixa a prefeitura de São Paulo com reconhecimento internacional e preocupado em fazer parte da construção de um novo projeto nacional. Para ele, a formação de uma frente ampla tem de começar pelo programa.

Escrito en POLÍTICA el
Haddad deixa a prefeitura de São Paulo com reconhecimento internacional e preocupado em fazer parte da construção de um novo projeto nacional. Para ele, a formação de uma frente ampla tem de começar pelo programa Por Paulo Donizetti de Souza e Rodrigo Gomes, da RBA Ao deixar o comando da maior cidade do continente e a casa em ordem em um tempo de estados e municípios falidos, Fernando Haddad revela uma ponta de tristeza por não conseguir se reeleger. Para se completar um ciclo baseado num conceito humanizado de gestão, oito anos estariam de bom tamanho. “Em 2020, não estaríamos discutindo velocidade nas vias ou De Braços Abertos, seriam programas já consolidados”, acredita. Mas ele próprio entende que as vitórias da esquerda na capital paulista “são pontos fora da curva”. ­Haddad lembra que mesmo com governos sob aprovação de até 80%, como os de Luiz Inácio Lula da Silva, seu partido, o PT, perdeu as eleições presidenciais de 2006, 2010 e 2014 na cidade. E pondera que o país não vive situação normal, depois de um período de mais de 10 anos de intenso ataque dirigido a demonizar a política, como um todo, e a ­esquerda em particular. Apesar de sucedido por um conservador que vê a cidade como negócio, o agora ex-prefeito duvida que programas que caíram nas graças da população sejam desmontados, por constar de um planejamento “muito bem amarrado”. O Plano Diretor Estratégico, que rendeu à administração reconhecimento internacional e prêmios urbanísticos, pode ser ajustado, mas não desmontado, acredita. A disputa será mais no plano do simbólico do que conceitual, aposta Haddad, agora prestes a retomar carreira de professor de Ciência Política na Universidade de São Paulo. Ele afirma que não tem ambições políticas pes­soais em seu horizonte e que seu compromisso é estar à disposição das forças progressistas para a construção de um programa para o país. “Quero colaborar para recompor uma condição que permita ao Brasil retomar o processo que foi começado em 2003. Crescemos de forma importante, mas o processo foi abortado e temos de encontrar um caminho de resgatar aquele projeto de um novo Brasil.” A esquerda se afastou da população? Por exemplo, houve críticas à campanha de Marcelo Freixo (Psol) no Rio, porque muito se falou em desmilitarização da polícia, descriminalização das drogas, direitos humanos, e não se discutiu o que mais preocupa a população em geral, como saúde, tarifa de ônibus, emprego... Existe esse risco. Se a gente não tiver atenção para aquilo que mais aflige a população, corre o risco de ter uma pauta setorial, que vai dialogar com nichos da sociedade, mas não vai dialogar com o todo. E o que o todo quer é viver num ambiente de prosperidade, que foi a marca do governo Lula. O sr. disse algumas vezes que não se preocupava com a reeleição, e que importante é fazer o que tem de ser feito. Mas uma preocupação com a continuidade dos programas não seria uma postura republicana? Faltou preocupação com a política? Olha, procurei alinhavar o desenvolvimento da cidade o quanto eu pude. Eu aprovei a reestruturação da dívida de uma maneira duradoura. São Paulo hoje está na melhor condição financeira dos últimos 20, 25 anos. Deixei o planejamento da cidade pensado até 2030, amarrei o desenvolvimento a um plano de longo prazo, que é o Plano Diretor Estratégico. E licitei o maior conjunto de obras da história da cidade. Muitas eu entreguei, outras estão em curso ou vão ser iniciadas, porque estão conveniadas com o governo federal. Do ponto de vista, tanto do PDE quanto dos planos setoriais, hospitais, UPAs, UBS, habitação, mobilidade, corredores, eu acho que está bem estruturado. Será difícil descontinuar. Acho que a descontinuidade vai ser mais no plano simbólico que no real. Como no caso da marginal Tietê... O trânsito da cidade se tornou muito mais civilizado, com corredores e faixas de ônibus, ciclovias, calçadas, diminuição de velocidade, transporte individual por aplicativo, carpooling. Organizamos uma série de coisas e está se discutindo a velocidade em duas vias. É mais simbólico do que real. Pega os programas sociais que eu desenvolvi. O único que está em disputa é o De Braços Abertos. Os outros nem se discute. Às vezes se discute a perfumaria para demarcar território no campo simbólico. Mesmo passando de uma gestão que se propunha pensar em cidade humanizada para uma que pensa na cidade para os negócios? Se a disputa simbólica se desdobrar em efeitos práticos e as pessoas não se verem mais como o centro da política, você pode ter um prejuízo civilizacional. Houve um ganho civilizacional importante na cidade de São Paulo. A cultura bombou, os espaços públicos, a apropriação das ruas. É muito simbólico colocar uma ciclovia na principal avenida da América Latina, fechar aos domingos, botar artista de rua, food truck, parklets. Vamos ver até aonde vai a coragem para desmontar essas coisas. E também até onde vai a disposição da cidade, de setores esclarecidos, em defender isso. Se houver essa disputa simbólica, acho que o lado republicano vai ganhar. O Doria já sinalizou rever o Plano Diretor. E já há um histórico de quando a Marta aprovou Plano Diretor e não houve continuidade. Eu conhecia as fragilidades e procurei prevenir desta vez. O Plano Diretor está muito bem amarrado. Vai ser pedreira mexer com ele. Foi elogiado pela ONU, teve repercussão internacional. O PDE de São Paulo foi premiado pelo site de urbanismo mais acessado do mundo, o ArchDaily. O representante da ONU participou da sanção e o melhor discurso foi o dele. Ajustar, pode ser, mas desmontar vai ser difícil. Em 2006, 2010 e 2014, mesmo “apanhando” muito da imprensa, Lula e Dilma venceram eleições por terem alcançado resultados perceptíveis na vida das pessoas. Faltaram em sua gestão ações mais “perceptíveis”? Aqui a disputa ideológica é muito maior do que em qualquer outro lugar do país. A imprensa é toda alinhada com o ponto de vista conservador. A Erundina ganhou uma vez, a Marta ganhou e eu ganhei. Mas são pontos fora da curva. Nas três eleições que você menciona, perdemos na cidade. E estamos falando de um presidente que teve mais de 80% de aprovação. Por quê? Vamos sair um pouquinho da capital. Veja o que aconteceu no ABC. O Luiz Marinho não conseguiu fazer o sucessor em São Bernardo. O Carlos Grana, em Santo André, e o Donisete Braga, em Mauá, não foram reeleitos. E não foi por falta de realizações, todos fizeram boas administrações. É um contexto muito complexo. Dificuldades não eram esperadas? Eu vou te falar uma coisa: quando eu estava na reunião com o papa, em Roma, com prefeitos do mundo inteiro, e disse que a OAB havia entrado com ação contra a redução da velocidade nas vias, as pessoas me perguntaram mais de uma vez se era verdade. A entidade representativa dos advogados está processando a prefeitura por seguir uma orientação da OMS? Eu poderia citar dezenas de casos desse tipo. O que acontece aqui não é disputa, virou carnificina em torno de ideologia. O déficit de republicanismo no Brasil é uma coisa que só não percebe quem não quer. Eu nunca vi uma coisa dessas acontecer. A pessoa chamar ciclista de comunista. Criticar faixa de ônibus. Tudo por ideologia. Se fosse outro prefeito a fazer, iriam elogiar. Sua gestão não foi condescendente com os grandes veí­culos de comunicação? Integrantes da administração deram mais atenção a eles, ofereceram “furos”, enquanto houve desatenção aos menores e alternativos. Pode ser. Se você está falando, eu acredito. Vocês talvez tenham sido vítimas desse processo. Isso pode ter acontecido, mas não por minha vontade. Não é algo a ser repensado? Até o governo Lula é criticado no quesito democratização da comunicação. É verdade. Você veja que os grandes veículos entraram com ação para tirar do ar sites do El País, BBC e The Intercept. Olha a que ponto chegamos! Quererem tirar do ar veículos que são mais independentes, menos impregnados de ideologia conservadora. E ninguém discute isso. Não se viu notícia disso. Eu acho até que vi na Rede Brasil Atual, mesmo. Por onde eu saberia? O sr. se relaciona com as páginas de seus “clones” das redes sociais, como Prefeito Gato ou o Haddad Tranquilão? Eles dizem coisas que gostaria de dizer e não pode? Eu tenho identidade com o bom humor e eles são bem-humorados, mesmo sendo críticos às vezes. Isso compõe parte da minha personalidade. Eu sempre procuro manter o humor e a autoironia, então eles captam um traço da minha personalidade. Tem também o Prefeito Gourmet, mais crítico, abordando que o sr. fez uma gestão voltada para classe média e deixou a periferia de lado. É desconhecimento. Onde eu construí hospital, CEU, creche, corredor de ônibus, LEDs, Uniceu e praça com Wi-Fi? É tudo na periferia. Às vezes a pessoa acha que conhece São Paulo e repete o que o (comentarista Marco Antonio) Villa diz na Jovem Pan. Eu tenho pena de quem repete o Villa. Isso traz muitas consequências, intolerância e ódio. E demonização da política. Quem são os intelectuais orgânicos desse projeto conservador em curso? Subintelectuais, pessoas despreparadas. Pode haver uma evasão da população que está sendo atendida pelos De Braços Abertos com a proposta do Doria de cortar o auxílio? Não consigo entender o argumento de que um drogado rico pode receber salário e um pobre, não, porque ele compra droga. Não tem jornalista que consome droga? Não tem político que consome droga? Eles não recebem salário no final do mês? Por que alguém que cuida da zeladoria da cidade não pode receber salário? E estamos falando de R$ 15 por dia. Não é “bolsa”. É remuneração por trabalho. Algumas pessoas se dizem mais tristes com a sua derrota do que com o impeachment, por verem na sua administração um projeto inclusivo. O sr. também sente tristeza? Eu sabia dos riscos, quem viveu 2013 e 2016 não poderia estar otimista. Foi o período mais turbulento que eu vivi. Em uma cidade pequena, talvez, em quatro anos você consegue mostrar a que veio. No Ministério da Educação, por exemplo, se eu tivesse ficado só quatro anos (ficou de 2003 a 2012, sendo a partir de 2005 como ministro) não teria deixado o legado que deixei. Em São Paulo, precisaríamos de oito anos para completar o ciclo. Garanto que não íamos discutir velocidades das marginais em 2020, nem radar, nem Braços Abertos. Tudo estaria consolidado e assimilado. O que o sr. vai fazer a partir de 2 de janeiro? Me apresentar na USP, onde eu ganho meu pão. Estou participando dos debates, da discussão com os setores avançados da cidade. No que eu tenho mais interesse em investir agora? Na questão programática. É a mais importante. Antes de discutir quem sairá candidato a isso e aquilo, estou interessado em debruçar sobre a questão do projeto para o país. Não está no meu horizonte disputar uma eleição. Estamos em uma situação tão anormal que tem alguns pressupostos que precisam ser respondidos antes. A questão programática, a renovação do PT, a relação do PT com outras forças progressistas. Há tarefas para cumprir que, se a gente se desviar delas, a gente corre o risco de tomar o essencial pelo acessório. Estou despido de ambições pessoais, quero colaborar para recompor uma condição que permita ao Brasil retomar o processo que foi começado em 2003. Crescemos de forma importante, mas o processo foi abortado e temos de encontrar um caminho de resgatar aquele projeto de um novo Brasil, com oportunidades, com mais esperança. As pessoas ainda não se deram conta dos prejuízos que estão sendo causados. Começando 2017 na situação em que o país se encontra, dá para alguém ficar tranquilão? São dimensões diferentes do humor. Em qualquer circunstância, mesmo diante de coisas dramáticas, eu estarei com esse estado de espírito. Eu sou meio budista para lidar com as coisas. Tenho uma compreensão sobre história do Brasil, sei entender os nós institucionais em que estamos imersos. Lamento muito o que está acontecendo, estamos regredindo do ponto de vista institucional. Mas estamos aí para brigar, né? Com um aparato tão complexo em torno do impeachment – setores do Judiciário, imprensa, oligarquias políticas, interesses externos e uma parcela da população –, esse golpe é reversível? O que se revelou no Brasil é um déficit de republicanismo a toda prova. As instituições não estão funcionando de forma republicana. E os desdobramentos disso ainda não podem ser entendidos em toda sua magnitude, porque, quando você começa a colocar os alicerces da vida democrática em jogo, não se sabe onde isso vai parar. Há espaço para eleições diretas antes de 2018? Têm surgido teses sobre a realização de eleições diretas. E o próprio PSDB reconhece que a escolha indireta de um presidente talvez agrave a crise política, que está na raiz da crise econômica tão aguda quanto ficou. Nós só estamos passando por uma crise econômica tão aguda porque a crise política é um combustível permanente. É difícil prever agora os desdobramentos. No âmbito da Lava Jato ainda tem muita para acontecer. Não sei se as delações que envolvem PMDB e PSDB vão ser tratadas da mesma maneira, no mesmo rigor e até com as arbitrariedades que estão vindo a lume (quando a acusação é contra petistas). O primeiro semestre de 2017 vai ser decisivo nesse processo. As forças mais avançadas da sociedade devem se reorganizar em torno de um polo mais forte. Porque se nos fragmentarmos, não vamos ter chance de disputar o imaginário da sociedade, por melhor que seja o nosso projeto. O Lula trabalha muito a ideia de uma frente a partir do centro político. E alguns setores da esquerda avaliam que não é mais possível juntar um movimento de conciliação de classes. Hoje nós temos os extremos adensados e o centro político esvaziado. Eu acredito que, pelas características da população, nós vamos ter de manter um diálogo com as forças democráticas do país. O Brasil tem de estar nesse projeto. E há muita gente boa, com quem se precisa conversar para isso. Eu entendo que se coloque em questão a visão mais conciliadora, em função até de como o outro lado está tratando os temas nacionais, sem nenhum diálogo, tudo feito a toque de caixa, sem discussão com a sociedade, nem com partidos de oposição. Mas eu entendo que nós temos que adensar os setores democráticos, desafiar os riscos que estão colocado a partir do desmonte que está sendo feito do pacto Constitucional de 1988. Foto: Jailton Garcia/RBA