Folha de S. Paulo: a perplexidade com a autonomia da sociedade perante a mídia hegemônica

A possibilidade de amplos setores da sociedade também constituírem suas próprias mídias incomoda a grande imprensa

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A possibilidade de amplos setores da sociedade também constituírem suas próprias mídias incomoda a grande imprensa Por Dennis de Oliveira No dia 31 de maio, o jornalista Fernando Rodrigues publicou reportagem no jornal Folha de S. Paulo sobre a estratégia de propaganda do governo federal. Capciosamente, esta reportagem foi publicada na mesma edição em que a pesquisa DataFolha constatava o aumento da aprovação popular do presidente para 69%, o maior índice desde setembro, antes da eclosão da crise econômica. Para efeitos de comparação, no mesmo período de mandato, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tinha 19% de aprovação. A reportagem indicava que o governo Lula aumentou o número de veículos de comunicação em que insere propaganda em 961% - eram 499 meios que recebiam propaganda oficial em 2003, hoje são 5.297 veículos. A estratégia de propaganda governamental, segundo a própria secretaria de comunicação do governo federal, foi a capilarização, isto é, reduzir a verba nos grandes veículos e direcioná-las a veículos menores e regionais. O montante de verba utilizado por Lula é quase idêntico ao do governo FHC, isto é, não houve aumento de verbas mas sim um redirecionamento das mesmas. É evidente que os grandes meios, Folha à frente chiaram. Para não ficar claro que o problema é receber menos dinheiro do governo, criaram teses. O colunista Fernando Barros e Silva, ex-editor da Folha, chamou a política de comunicação governamental de “Bolsa-mídia”. Afirma o colunista: “... o governo promove um arrastão e vai comprando a mídia de segundo e terceiro escalões como nunca antes neste país. (...) Enquanto na superfície Lula trata de fazer a sua guerra retórica contra a ?imprensa burguesa? que lhe dá azia, no subsolo do poder a engrenagem montada pelo ministro Franklin Martins se encarrega de alimentar a rede de chapa branca na base de verbas publicitárias. (...) Esta mídia de cabresto que se consolidou no segundo mandato ajuda a entender e a difundir a popularidade do presidente.” (FSP de 01/06/09, pág A-2). Menos raivoso, mas seguindo na mesma hipótese, Fernando Rodrigues comenta que o aumento da popularidade do presidente “é resultado de uma complexa estratégia de marketing. O governo brasileiro pré-PT sempre foi o maior anunciante do país. Agora, sob Lula, elevou essa condição ao paroxismo. Chega sozinho a 5.297 veículos de mídia impressa e eletrônica. O sabão em pó Omo ou políticos de oposição, por enquanto, não são páreo para Lula”. (FSP de 01/06/09, pág. A-2). O editorial do jornal do dia 2 de junho volta a tocar no assunto quando afirma que “quanto menor o órgão de imprensa e mais afastado dos mercados competitivos, tanto mais vulnerável à dependência de anúncios estatais”. (FSP de 02/06/09, pág. A-2). O editorial, entretanto, diz que “pulverizar ou concentrar o gasto constitui só uma estratégia” e que “o absurdo está na existência desta verba para autopromoção”. Até porque o editorial traz uma informação interessante, que o governo federal pouco tem aumentando os gastos com propaganda, enquanto que o governo Serra aumentou 44% a verba publicitária este ano e o prefeito municipal Gilberto Kassab, impressionantes 134%! A consternação dos jornalistas da Folha de S. Paulo tem razão de ser por vários motivos. Primeiro, a dificuldade de atingir Lula, apesar da saraivada de críticas que são publicadas nos grandes jornais. Apostou-se que a crise iria abalar o prestígio do presidente e isto não aconteceu. Segundo, que há uma evidente mudança no comportamento da opinião pública que não se organiza mais na base dos chamados “círculos concêntricos”, os chamados “formadores de opinião” estabelecem consensos que depois são reproduzidos automaticamente pelas massas. Há uma tendência de uma autonomização das chamadas camadas periféricas. Terceiro, que esta perda do monopólio da fala e do agendamento por parte destes grupos que avocaram para si a condição de formadores de opinião ou de “representantes da opinião pública” leva a posições que beira o preconceito mais explícito, sempre na ideia de que quem está fora do gueto dos formadores é corruptível ou de cabresto. A mídia regional é de cabresto porque está longe dos “mercados competitivos” (sic!). As populações destas regiões também são facilmente corrompidas e reproduzem automaticamente as opiniões da mídia regional corrompida. E os “puros” dos mercados competitivos (leiam-se a grande imprensa dos centros hegemônicos, em especial São Paulo) ficam a ver navios. Mais: a possibilidade de amplos setores da sociedade também constituírem suas próprias mídias incomoda. Novamente o nervoso Fernando Barros e Silva: “Talvez explique (a mídia de cabresto) no novo mundo virtual o governismo subalterno de certos blogs que o lulismo pariu por aí”. O que pretendem o colunista e muitos outros “jornalistas” incomodados? Que o monopólio da fala, do agendamento e da emissão de opiniões pertençam a eles. O incômodo é semelhante quando Martinho Lutero traduziu a bíblia do latim para o alemão, tirando o monopólio da leitura e interpretação do clero da Igreja Católica. Os textos da Folha de S. Paulo parecem uma “Contra-reforma”. Mas o mais grave de tudo isto é o primarismo das abordagens que limitam a análise da popularidade (ou não) de um político meramente pela propaganda, embora ela seja importante. Como se a sociedade fosse composta por cabeças ocas que reproduzem apenas aquelas mensagens que são veiculadas pela propaganda. Será que a popularidade do presidente não pode ser explicada porque efetivamente houve uma melhora no padrão de vida das classes mais subalternizadas? Os dados mostram a ascensão social das classes D e E, um aumento do consumo nestes segmentos sociais e o impacto de programas sociais nos lugares mais pobres. Propaganda pode vender imagens e sonhos mas não é suficiente para encher a barriga de quem tem fome. Dennis de Oliveira é jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, coordenador do Celacc (Centro de Estudos Latino Americanos de Cultura e Comunicação), membro do Neinb (Núcleo de Pesquisas e Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro) e vice-coordenador do Alterjor (Grupo de Pesquisa de Jornalismo Popular e Alternativo). E-mail: [email protected]