Fukushima, uma mancha difícil de limpar

Enquanto os médicos continuam ignorando problemas sanitários e pesquisadores se negam a atribuir as anormalidades à radiação, o sistema médico japonês também não inspira confiança

Equipe investigadora da Agência Internacional de Energia Atômica visita a central nuclear de Fukushima Daiichi, em maio de 2011. (IAEA Imagebank)
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Enquanto os médicos continuam ignorando problemas sanitários e pesquisadores se negam a atribuir as anormalidades à radiação, o sistema médico japonês também não inspira confiança Por Kim-Jenna Jurriaans, da IPS/Envolverde O engenheiro industrial aposentado Yastel Yamada tem 73 anos. Este japonês, junto com outros 700 contemporâneos, está ansioso para trabalhar como voluntário na limpeza da central nuclear de Fukushima Daiichi, para livrar os mais jovens dos efeitos da radiação extrema. Essa usina, localizada no nordeste do Japão, foi danificada por um fortíssimo terremoto e posterior tsunami no dia 11 de março de 2011. Yamada e seu exército de samaritanos da radiação são de alguns dos, cada vez em maior número, grupos da sociedade civil em todo o Japão que adotam medidas para informar o público sobre os perigos da radiação, promovendo uma resposta governamental mais forte ao maior desastre nuclear ocorrido desde a explosão da central ucraniana de Chernobyl, em 1986. [caption id="attachment_20006" align="alignright" width="300"] Equipe investigadora da Agência Internacional de Energia Atômica visita a central nuclear de Fukushima Daiichi, em maio de 2011. (IAEA Imagebank)[/caption] “Quando desenvolvermos câncer, já estaremos mortos de qualquer forma”, disse Yamada à IPS, após uma viagem aos Estados Unidos para promover os esforços para que sua organização, chamada Corpo de Veteranos Qualificados para Fukushima, tenha acesso ao local, o que até agora é negado. Um dos objetivos de seu grupo é gerar pressão política internacional para forçar o governo japonês a assumir o desastre e dar participação a especialistas mundiais no processo de recuperação da usina que, segundo se estima, levará 20 anos de limpeza e 40 de controles. “Chernobyl foi maior, mas bem menos complicado”, afirmou. No entanto, até agora a responsabilidade sobre a central continua em mãos da privada Companhia de Eletricidade de Tóquio (Tepco), uma empresa com pouca perícia em matéria de limpeza, alertou Yamada. São cerca de 400 firmas que atualmente realizam tarefas de limpeza em Fukushima Daiichi, acrescentou o engenheiro, explicando que a elaborada e complexa estrutura das subcontratações se interpõe no caminho dos veteranos que querem trabalhar na usina. Yamada culpou o íntimo vínculo entre as autoridades japonesas e o setor empresarial pela negativa governamental de retirar o processo de limpeza da órbita da Tepco. O êxito ou fracasso dessa limpeza afetará as gerações futuras em todo o planeta. Os laços próximos com a indústria, a vacilante informação sobre segurança, as duvidosas contagens sobre a radiação e as contraditórias atualizações sobre a situação de Fukushima contribuem para aumentar a desconfiança quanto à vontade do governo japonês de proteger seus próprios cidadãos. Enquanto os médicos continuam ignorando problemas sanitários emergentes e altos pesquisadores se negam a atribuir as anormalidades à radiação, o sistema médico japonês também perdeu a confiança de um setor cada vez mais consciente da população japonesa. Este mês, a prefeitura de Fukushima apresentou as conclusões de sua última pesquisa sobre saúde, segundo as quais 42% dos 47 mil menores examinados têm nódulos ou quistos na glândula tireoide. Este número é muito superior ao 1,6% registrado em outro estudo desse tipo feito em 2001, em Nagasaki. Contudo, quando foi questionado sobre o vínculo com a exposição à radioatividade, Shinichi Suzuki, pesquisador da Universidade Médica de Fukushima que dirigiu a pesquisa, sugeriu ao canal alemão de televisão ZDF que as conclusões podem ser um reflexo da dieta das crianças japonesas, rica em mariscos. Suzuki mente ao povo japonês”, disse à IPS a pediatra Yurika Hashimoto, que tem 15 anos de experiência. “As pessoas já não acreditam mais”, acrescentou. A médica não escondeu sua desconfiança com boa parte da informação divulgada pelo governo e pelas altas esferas do sistema médico. Há pouco, para limitar sua própria exposição à radiação, mudou-se de Tóquio para Osaka. Diarreia, hemorragia nasal, infecções na pele e conjuntivite são alguns dos muitos sintomas que viu em seus pacientes, tanto dentro quanto fora da prefeitura de Fukushima, desde o desastre de março de 2011. Porém, quando os pacientes apresentam estes sintomas a outros médicos, frequentemente são ridicularizados ou ignorados, afirmou Hashimoto. Kazko Kawai, moradora em Shizuoka, que leva cinco horas para chegar a Fukushima, sentiu-se alheia à crise nuclear até que funcionários do governo local decidiram começar a queimar escombros contaminados que haviam inundado sua região, conforme contou à IPS durante uma visita a Nova York. Kawai entrou em contato com vários médicos internacionais para convidá-los a percorrer cinco cidades, em uma espécie de clínica ambulante e centro de informação para cidadãos comprometidos. “Em toda parte em que íamos, havia os mesmos sintomas”, disse Dörte Siedentopf, médica alemã aposentada que durante 20 anos trabalhou com crianças sobreviventes do desastre de Chernobyl, em uma entrevista filmada com Kawai. Nessa entrevista, Siedentopf, falando ao lado de seu colega norte-americano Jeffrey Peterson, professor do Departamento de Medicina Familiar da Universidade de Wisconsin, apresentou uma lista de conclusões que coincidem amplamente com as de Hashimoto. Embora seja muito cedo para dizer quais dos sintomas são causados pela radiação nuclear, estes demonstram a necessidade de realizar pesquisas epidemiológicas mais amplas, bem como de maior empatia por parte dos médicos que fornecem atendimento primário, indicou Peterson. “Não faz nenhum bem às pessoas dizer que não precisam se preocupar. Estas ansiedades e preocupações são muito reais”, ressaltou Peterson, acrescentando que os médicos japoneses têm a oportunidade única de definir verdadeiramente os efeitos da radiação de uma maneira que não era possível depois de Chernobyl, há 26 anos. Em comunicado divulgado no dia 26, o relator especial das Nações Unidas sobre direito à saúde, Anand Grover, que há pouco regressou de uma missão de 11 dias no Japão, pediu urgência ao governo desse país no sentido de controlar um setor mais amplo da população. Grover, cujo informe independente completo será apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em 2013, se reuniu com diferentes atores, entre eles governo, médicos, representantes da sociedade civil e moradores das áreas afetadas. O relator se mostrou preocupado pelo fato de os residentes implicados não terem influência “nas decisões que os afetam”, e enfatizou que essas pessoas deveriam participar dos processos de tomada de decisões, o que inclui “procedimentos de implantação, controle e responsabilização”. Por sua vez, os cidadãos céticos continuam se protegendo da melhor maneira possível, no que se tornou a nova normalidade desde março do ano passado. Diante da pergunta sobre como sua vida mudou desde o desastre, Kawai tira do bolso um dispositivo digital na forma de vara. “Mede os raios gama. Agora todos têm um”, explicou, com total naturalidade.