Futuro ameaçado?

Relatório do IPCC apontando o aquecimento global causado pela ação humana coloca o modelo de desenvolvimento capitalista em xeque

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Relatório do IPCC apontando o aquecimento global causado pela ação humana coloca o modelo de desenvolvimento capitalista em xeque Por Glauco Faria e Rafael Evangelista O quarto relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), divulgado em fevereiro deste ano, assustou boa parte do mundo. Além de apontar que as mudanças ocorridas no clima do planeta nos últimos cinqüenta anos são “muito provavelmente” – 90% de certeza, segundo o documento – advindas da ação humana, prevê também o aumento de 1,8ºC a 4ºC na temperatura terrestre até o fim do século. As conseqüências da elevação projetada seriam catastróficas. O possível derretimento de camadas polares, por exemplo, elevaria o nível dos oceanos em até 58 centímetros, fazendo algumas cidades litorâneas simplesmente desaparecerem. Tufões e secas causariam ainda mais danos ao planeta. A partir da divulgação das previsões do Painel e das andanças globais do paladino Al Gore, o tema aquecimento global passou a ser dominante na mídia. No Brasil, as altas temperaturas à época contribuíram para o assunto tornar-se algo corriqueiro. A questão foi tratada não somente nos telejornais, mas transbordou para os programas vespertinos, tomando o horário das tradicionais receitas culinárias. No entanto, as conclusões do relatório estão longe de ser consenso no meio acadêmico. Menos pela provável responsabilidade humana nas alterações do clima e mais pelas futuras mudanças e também por conta de seus efeitos. Uma eventual interpretação equivocada dos dados pode levar tanto a políticas públicas insuficientes, por um lado, como a projetos dispendiosos e desnecessários, por outro. O fato é que o documento, elaborado por mais de 500 cientistas e representantes governamentais de todo o planeta, revela a timidez das medidas acertadas no Protocolo de Quioto, que também se baseou em um relatório elaborado em 1995 pelo mesmo IPCC. Em vigor desde 2005, os países signatários do Protocolo aceitaram reduzir em 5,2% as emissões de gases de efeito estufa até o ano de 2012. “A importância do Protocolo é mais política do que efetiva para promover reduções de emissões. Trata-se do primeiro instrumento internacional a acordar metas obrigatórias de redução, mas essas metas, ainda que venham a ser integralmente cumpridas, não assegurarão redução efetiva, pois os Estados Unidos, responsáveis por cerca de 30% das emissões globais, excluíram-se do processo; e por que ainda não há metas obrigatórias para países em desenvolvimento?”, calcula o antropólogo Márcio Santilli, coordenador do Instituto Socioambiental. Além dos Estados Unidos, China e Índia também ficaram fora. Os três juntos descarregam 43,7% do total de emissões de carbono no mundo, enquanto os países que assinaram o tratado respondem por 29% delas. “As metas do Protocolo são modestas, nós sabemos, mas são importantes menos por uma razão quantitativa e mais como um aprendizado importante e que vai nos servir no futuro, na hora de se começar a negociar as reduções mais fortes”, aponta Carlos Nobre, coordenador-geral do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos. No entanto, há quem acredite na total ineficácia da linha adotada no acordo. “A redução estabelecida nele é anódina e hoje, ainda assim, só três países conseguiram cumpri-lo. Mesmo países como a França, por exemplo, que tinha como meta apenas estabilizar a emissão de poluentes sem precisar reduzir, não conseguiram”, defende o economista José Eli da Veiga (ver entrevista à página 12). Já Larry Lohmann, autor de Carbon Trading, em entrevista à página Com Ciência, é ainda mais assertivo. “É importante lembrar que os EUA estavam por trás do impulso de tornar o Protocolo de Quioto um documento pelo comércio de carbono. A Europa e o Sul estavam inicialmente céticos, e só mais tarde caíram na pressão norte-americana”, relembra. “Embora os Estados Unidos tenham, mais tarde, abandonado o Protocolo, várias empresas do país estavam, e continuam, a favor dele”, completa. Lohmann toca em um dos pontos fundamentais do Protocolo, a criação de mecanismos atrelados à lógica do mercado para combater o aquecimento global. O mercado de créditos de carbono, na prática, autoriza algumas empresas a continuar poluindo. “A Enron é um bom exemplo. Ela apoiava o Protocolo de Quioto porque queria ganhar dinheiro com o comércio de carbono – e enfureceu-se por George W. Bush não assinar o tratado”, explica Lohmann. “Corporações como a ExxonMobil [Esso], por outro lado, não gostavam do Protocolo pois não estavam preparadas para se beneficiar tanto do comércio de carbono e, inicialmente, não queriam, de nenhuma forma, admitir que as ações humanas estavam causando a mudança climática. Bush ligou-se ao grupo da Exxon. Mas mesmo que os Estados Unidos tivessem assinado Quioto ele ainda teria representado apenas o triunfo de uma facção das empresas norte-americanas sobre a outra.” Já Wagner Ribeiro, professor do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), é mais cauteloso em sua abordagem. “Também não gosto do fato de ser um mecanismo de mercado, não acredito que o mercado deva ser a instância reguladora da vida, mas o mecanismo de desenvolvimento limpo pode contribuir para a redução da emissão e representa uma alternativa para captação de recursos financeiros para os países que não necessitam reduzir ainda”, sustenta. Matriz energética Se são insuficientes as metas estabelecidas em Quioto, há quase consenso entre os cientistas de que, para frear o processo de aquecimento global, é necessária uma mudança da matriz energética, uma questão delicada para uma civilização que produziu a maior parte dos seus bens materiais com combustíveis fósseis. “Nossa forma de produção ainda é muito baseada no carbono e gera muito desperdício. Claramente a gente vai ter que migrar para uma energia ou sistemas alternativos mencionados sempre, como energia eólica, solar etc.; ou então energia nuclear – uma energia muito criticada no passado, pela quantidade de radiação nociva, mas estudos recentes mostram que essa energia mudou muito e hoje gera muito menos impacto”, analisa Adalberto Veríssimo, engenheiro agrônomo, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). “O grande drama é que essas mudanças tecnológicas de produção podem levar um século; a gente não tem um século pela frente. Não é um desafio trivial, é muito pouco provável que se consiga ficar num cenário de mudanças leves, porque teríamos de fazer mudanças muito radicais na forma de produção”, conclui. Pedro Dias, professor doutor do Departamento de Ciências Atmosféricas do Instituto de Astronomia e Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP (IAG-USP), concorda. “A energia nuclear tem outros problemas, mas a impressão que se tem hoje é que está havendo uma revisão. Até antigos combatentes da energia nuclear hoje argumentam que ela causa menos mal do que a energia fóssil. Então é algo que precisamos debater e conhecer muito melhor para ver se vale a pena investir, inclusive se é realmente necessário no caso do Brasil investir em energia nuclear”, questiona. Energias alternativas, como a solar e a eólica, já começam a ser desenvolvidas, mas ainda carecem de maior eficiência e produtividade para serem implementadas em larga escala. “Em relação à energia solar, o problema é o processo de construção desse equipamento, que é muito intensivo no uso de energia e tem emissões associadas à construção. Ela precisa ser vista com cuidado. Aí surge a grande oportunidade e o grande desafio para os nossos cientistas, engenheiros e técnicos, de como construir esses equipamentos de forma eficiente”, aponta Pedro Dias. A aposta de Dias é na energia eólica que, segundo ele, é um tipo de energia que aparentemente tem um custo mais razoável e é mais limpa do que quando se leva em conta o processo de construção dos equipamentos. “O rendimento da energia solar é da ordem de 12% a 15% [em relação ao rendimento das fontes tradicionais] e, com equipamentos menos comprometedores do ponto de vista da emissão de gases, essa eficiência cai para 6 a 7%. A eólica hoje em dia tem turbinas bem mais eficientes e o Brasil tem um tremendo potencial eólico”, argumenta. Dadas as dificuldades para que se viabilize uma mudança radical a curto prazo, outra linha entre os ambientalistas prega que a prioridade deve ser, em vez de substituir fontes de energia, controlar o consumo. “O padrão de consumo é insustentável. Não temos nenhuma saída fácil, rápida e menos dolorosa, porque são muitos os negócios baseados no uso do carbono, toda a indústria petrolífera, toda a indústria baseada nos combustíveis fósseis, vai resistir [a mudanças]”, aponta Veríssimo, do Imazon. Ricos e pobres A questão do aquecimento global acaba também opondo interesses de diversos países. Alguns reclamam, por exemplo, que, agora que os países ricos já atingiram um nível alto de desenvolvimento e consumo, querem privar às nações em desenvolvimento aquilo que fizeram no passado. “Quando a massa dos chineses tiver carro, espero que o motor não seja mais esse”, torce José Eli da Veiga. “É que, se for, realmente vai ser um desastre, mas nem por isso vou colocar as coisas em um plano de condená-los por querer isso”, completa. Já Márcio Santilli acredita que o planeta chegou a uma situação-limite em que a preocupação com o ambiente deva se estender a todos. “A crise ambiental – o escasseamento dos recursos naturais – e climática – o nível pornográfico das emissões globais – exigem e exigirão medidas e atitudes de todos os países para assegurar condições de sobrevivência para as futuras gerações. Ou seja, mesmo não tendo o mesmo grau de responsabilidade dos países industrializados em relação à origem da crise, não será possível contê-la sem a contribuição dos países em desenvolvimento.” Para outros especialistas, mecanismos como os mercados de crédito de carbono também aprofundam as diferenças entre ricos e pobres. “Além de ser injusto, tudo isso simplesmente encoraja os piores poluidores do Norte a protelar o afastamento estrutural dos combustíveis fósseis que a questão climática exige a longo prazo. Por que inovar se você pode, ano após ano, comprar direitos de poluição baratos de alguém?”, critica Larry Lohmann. Dentro desse cenário, muitos acreditam que o Brasil pode sair ganhando. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva estabeleceu uma proposta que pode ser discutida em dezembro a respeito da criação de um fundo voluntário para compensar os países tropicais que reduzirem a perda de carbono de suas florestas, ou seja, deixarem de derrubar árvores. O plano brasileiro ainda precisa ser aprovado pela Convenção-Quadro da ONU sobre Mudanças Climáticas na Indonésia. “Sou totalmente a favor do fundo, acho que temos argumentos para isso. Na Amazônia, por exemplo, nossa cobertura vegetal é um estoque de carbono, se ele for liberado o aquecimento vai se agravar muito. O Brasil tem um ônus em políticas públicas voltadas para o lugar que são custosas e esse ônus deve ser bancado pela comunidade internacional também, já que é beneficiária”, defende o deputado federal Sarney Filho (PV-MA), coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista. Mas o fato é que a proposta teria que contar com a anuência e boa vontade dos “doadores”, leia-se países ricos. Wagner Ribeiro acredita que a proposta é boa, embora “idealista”. “Vejo com bons olhos o fato de o Brasil tomar a dianteira nessa questão e ser protagonista no cenário internacional”, aponta. O professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE) da Universidade de São Paulo, José Goldemberg, afirma que remunerar a manutenção da “floresta em pé” por meio de um fundo voluntário depende de filantropia dos países ricos. Para ele, “melhor seria criar um mecanismo de mercado de modo que a manutenção das florestas gerasse créditos de carbono para os investidores dos países industrializados”. No Brasil, temas como sustentabilidade e preservação ambiental já dominam os discursos até de políticos conservadores que não tinham no seu ideário esse tipo de preocupação. Embora em boa parte das vezes isso seja somente um esforço de retórica, o fato é que a temática já começa a influir na formulação de políticas públicas. “O Congresso Nacional criou uma comissão destinada a cuidar das ações necessárias para evitar o aquecimento global. Inúmeras medidas estão tramitando na Câmara e no Senado para ampliar a adoção de energias renováveis”, conta o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP). Segundo Leonel Pereira, chefe de gabinete da Secretaria de Biodiversidade e Florestas, o Executivo Federal também tem desenvolvido ações na área. “Foi feita uma reestruturação forte e criada uma secretaria de mudanças climáticas para trabalhar com o problema, sua mitigação e adaptação a ele”, assegura. Mas, na prática, se comparado a outros países, pode-se dizer que o Brasil ainda engatinha em termos de políticas no setor. “Nos Estados Unidos e na Europa há incentivos fiscais para uma série de atividades – se você quiser aquecer sua casa com energia solar ou eólica ou coisa que o valha, há redução de impostos. Um automóvel eficiente paga um imposto mais baixo que um automóvel ineficiente. Falta esse tipo de coisa, incentivos fiscais que conduzam a própria sociedade a poupar, usar fontes de energia ambientalmente menos impactantes”, garante Pedro Dias. “Pensam-se sempre os incentivos fiscais em escalas industriais, e é preciso pensar na escala de nós, pobres mortais. Por exemplo, na Europa existe esse incentivo ao proprietário de uma residência. Se você demonstrar que tem lâmpadas econômicas, energia solar, você tem redução dos seus impostos. É preciso pensar as coisas em todas as escalas”, exemplifica. “Muito dessa redução passa por políticas públicas, como taxação por emissão, exigência de aumento da eficiência energética, diminuição do desaparecimento de florestas em todo o mundo”, esclarece Carlos Nobre. “É lógico que em certa medida a adesão a políticas que restrinjam ou tornem mais caras as atividades que geram emissões depende muito de mudança de comportamento das pessoas, mas os governos têm uma enorme responsabilidade e têm de criar as condições e estimular o desenvolvimento de novas tecnologias”, afirma. Colaborou Cristina Uchôa