Futuro incerto

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A um mês de completar três anos de reclusão, o presidente eleito da Autoridade Nacional Palestina (ANP) Yasser Arafat foi autorizado pelo governo israelense a deixar a Muqata, sede semi-destruída do or¬ga¬nis¬mo. O motivo foi o agravamento da condição de saúde do líder, até então, segundo os boletins oficiais, com uma forte gripe. 

Os rumores de que Arafat vinha doente, possivelmente até com câncer no sistema digestivo, não são recentes. Confinado em poucos metros, sem poder circular e passando por constantes momentos de tensão, sua saúde era frágil. Em abril deste ano, em uma viagem com a delegação de deputados brasileiros, o repórter esteve com Arafat por três vezes e pôde conhecer sua condição. 

Dois dos encontros foram realizados na sala de reuniões da Muqata, um com os deputados federais Jamil Murad, PCdoB/SP; Vanessa Grazziotin, PCdoB/AM; Nilson Mourão, PT/AC; e Leonardo Matos, PV/MG e outro para uma entrevista concedida a jornalistas brasileiros. A palidez chegava a impressionar. As mãos, mandíbula e lábio inferior trêmulos seriam a comprovação do Mal de Parkinson, parcialmente controlado desde o septuagésimo aniversário. Recebia a todos com a farda verde-oliva cheia de broches de entidades e países solidários e o inseparável queifi (espécie de turbante).
O corpo fragilizado buscava energia para receber estrangeiros e lhes apresentar números, dados e histórias. Arafat depositava nos observadores a esperança de transformações que viriam por meio da pressão da comunidade internacional. Com um sistema de segurança precário e desorganizado, Arafat não ia além do prédio ao lado, os únicos que permaneceram de pé depois do cerco de novembro de 2001, que determinou sua reclusão. 

Mas foi o primeiro encontro o mais marcante. Fortemente abalado, Arafat recebia, ao lado de membros do parlamento, em uma espécie de auditório na sede da ANP, as condolências pela morte de um adversário político de quem discordava radicalmente, o líder do Hamas, Abul Aziz Rantissi, morto por um míssil disparado de um helicóptero Apache israelense, na cidade de Gaza, em 14 de abril. 

Desde o final da década de 80, Arafat era referência para seu povo de que poderia buscar uma solução negociada e a convivência pacífica entre Palestina e Israel. A única outra referência clara são os grupos extremistas, como o Hamas, que pregam a resistência armada, defendida pelo próprio presidente da ANP antes de 1988. Naquele ano, em Madri, na Espanha, o líder da Organização pela Libertação da Palestina (OLP), que congrega diversas organizações de defesa da causa palestina, reconheceu a existência do Estado de Israel. 

O anúncio foi seguido por outros países, árabes ou não. Nem antes, nem depois, outra liderança com o peso dele encampou a bandeira da paz, assumindo todo o ônus trazido por longos períodos de negociação. Até 1993, foram estabelecidas as bases de um processo de paz com dois territórios idealizados a partir das fronteiras de 1967, sem tocar em questões mais delicadas, como o destino dos refugiados palestinos e assentamentos israelenses em território ocupado, que seriam deixadas para um momento posterior. 

Mas quando o processo de paz parecia emplacar, o então premier israelense, Ytzhak Rabin, foi assassinado por um extremista judeu, em 1995. Arafat referia-se a Rabin, com quem ganhou o Prêmio Nobel da Paz um ano antes, como irmão ou parceiro. De ambos os lados, o extremismo aflorava, o que ajudou a derrubar as negociações com o também trabalhista Shimon Perez, seguido do retrocesso sofrido com a chegada do Likud (partido do atual premier Ariel Sharon) ao poder. 

Com todo o processo, a figura de Arafat foi se desgastando. Tanto entre israelenses e norte-americanos quanto entre os palestinos. Seu compromisso com a via negociada continuava claro, mas a disposição de Israel e dos Estados Unidos é que foi posta em xeque pelo povo palestino, conhecido como o mais politizado do mundo árabe.
Somado às acusações de ser centralizador e corrupto, o principal defensor da saída negociada viu parte de sua credibilidade se esvair finalmente com o fracasso do acordo de Camp David, em 2000, quando levou as negociações até o fim, por pressão do então presidente norte-americano Bill Clinton, apesar de a proposta ser ruim, na visão dos palestinos – não se baseava nas fronteiras de 1967, não envolvia a parte oriental de Jerusalém e concebia um Estado dividido em três blocos separados, obrigando a passagem de uma parte a outra pelo controle do país vizinho. 

Do outro lado, o início dos conflitos da Segunda Intifada e o fracasso das negociações levaram os governos dos Estados Unidos e Israel a exigir, em março de 2003, outro negociador. Qualquer um, menos Arafat. Um primeiro-ministro com poderes para conduzir o Mapa do Caminho, plano de paz de George W. Bush. Mohamad Abbas (mais conhecido como Abu Mazzen) foi o escolhido, por gozar de boa reputação entre os interlocutores. No entanto, a confiança não foi suficiente para garantir respaldo popular às negociações, pois os palestinos se sentiram traídos pela manutenção das ações do exército israelense. O que os extremistas árabes consideravam como um cessar-fogo não teve a mesma avaliação no governo de Israel. As conseqüências foram ainda piores para o plano, com o abandono do cargo. Ahmed Qurei, que o substituiu, sofreu desgaste semelhante, chegando até a entregar carta de demissão, não aceita, em julho deste ano. 

Ambos, no entanto, estão longe de representar renovação no quadro de lideranças. Eram da cúpula de Arafat e estão entre os favoritos para administrar a OLP, e os territórios propriamente ditos. Saed Erekat, ministro das negociações, e Nabil Shaat, das relações exteriores, são outros que correm por fora na bolsa de apostas internacional. 

Sem Arafat, como desejavam os governos dos EUA e de Israel, o poder político na Palestina fica ainda mais fragmentado. E sob risco de colapso, já que as lideranças mais populares tendem a ser as mais radicais. Além do Hamas, Jihad Islâmica e Brigada dos Mártires de Al-Aqsa, líderes da Al-Fatah, partido político de Arafat, como ¬Marwan Barghouti – mantido preso por acusações políticas – também têm sua cota de apoio. São setores cujas posições são bem claras para palestinos, ainda que boa parte deles não os apóie, mas estão totalmente fora da discussão pela sucessão na ANP, por defenderem a resistência armada à ocupação. 

O desafio é recuperar o apoio popular à retomada das negociações, mas isso depende mais do outro lado. Para que o debate da sucessão não seja irrelevante, como avalia a pacifista israelense Manuela Dviri, uma das lideranças que confeccionaram a Carta de Genebra, em 2003, “o primeiro passo para as negociações bilaterais deve ser dado por Sharon”. Ela, que ingressou no movimento depois de ter um filho, membro da inteligência do exército, assassinado por fundamentalistas no Líbano, em 1998, acredita que as ações tomadas hoje ignoram qualquer acordo com o outro lado. Na desocupação da Faixa de Gaza, cujas indenizações já estão sendo liberadas, os assentamentos estão sendo destruídos, com poucas exceções. Nenhum tipo de conversação sobre como reaproveitar a estrutura foi colocado. 

Ao mesmo tempo, o conservador Sharon aprovou seu plano em Gaza com votos trabalhistas no Knesset (parlamento). Mais: chegou a admitir em seus discursos que Israel ocupa outro país, reconhecendo que os territórios palestinos não fazem parte do Estado, algo inédito para a direita. Apesar de adotar uma postura unilateralista, de não fazer parte de um processo de paz e de “legitimar” – diante dos EUA – os assentamentos na Cisjordânia, ele mostra que a parcela da população contrária ao projeto e a qualquer hipótese de consolidação de um Estado Palestino (cerca de 25%) são ainda uma minoria. Barulhenta, mas que não pode conduzir os rumos do país sozinha. E também é preciso atrair votos de outros setores. 

Ao mesmo tempo, Sharon precisará provar que a responsabilidade da paralisia do processo de paz era de Arafat. Se essa aproximação for feita com compromissos efetivos, pode até trazer bons resultados. Mas se o tom soar oportunista, é difícil imaginar que a sociedade palestina e as próprias lideranças da OLP reajam bem. Especialmente os grupos extremistas, que podem se aproveitar de um eventual vácuo político para ganhar mais espaço“, apesar de terem se comprometido com a Qorei e ANP a não promover uma onda de atentados.