“Nós temos um genocídio de jovens negros no país”, diz Ariel de Castro Alves

Foi divulgado nesta sexta-feira relatório produzido pelo Fórum de Segurança Pública e Unicef onde é revelado que os jovens negros representam 80% das mortes violentas

Parentes de jovens mortos pela violência policial fazem manifestação em frente ao Tribunal de Justiça do Rio (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)
Escrito en BRASIL el

Segundo levantamento feito Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e divulgado nesta sexta-feira (22), um jovem negro com idade entre 15 e 19 anos, morto por arma de fogo, é o perfil de vítima mais comum entre as 34.918 mortes violentas de jovens no Brasil registrado nos últimos cinco anos. Do total das mortes registradas, os jovens negros representam 80%.

Além disso, o estudo revela que as mortes violentas se concentram principalmente na adolescência: 31 mil do total das vítimas têm entre 15 e 19 anos. Desse universo, 80% (25.592) são jovens negros.

A pesquisa também mostra que, conforme os meninos ficam mais velhos, aumenta a proporção de mortos pela polícia: 16% dos casos de mortes violentas são jovens negros com idade entre 10 e 19 anos.

O estado de São Paulo é o que registra a maioria desses casos por mortes violentas: Em 44,4% dos registros, os meninos de 10 a 19 anos morreram em decorrência de intervenção policial.

Em entrevista à Fórum, Ariel de Castro Alves, que é advogado, especialista em direitos humanos e segurança pública pela PUC- SP. Membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais. Ex Conselheiro do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) afirma que o racismo faz parte da "formação policial" e que a tendência desse quadro é de "agravamento".

Além disso, ele lembra que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) durante a sua campanha afirmou que “rasgaria o ECA e jogaria na latrina… de fato, ele está fazendo”, diz Ariel de Castro. Em nível estadual, Castro também critica a gestão do governador de São Paulo, João Doria, que também possui um discurso de incentivo à violência policial e afirma que, diante do quadro, a tendência é de “agravamento”.

“A tendência é de agravamento da violência e violações aos direitos das Crianças e do Adolescentes, em razão da crise social, econômica e humanitária atual. E dos desmontes promovidos pelo governo Bolsonaro na área social e de direitos humanos. Além dos cortes e contingenciamentos que o governo federal, estaduais e municipais estão fazendo nos orçamentos das áreas sociais e da infância e juventude”, critica Castro Alves.

Fórum - Ano após ano os números nos mostram que os jovens negros são a maioria das vítimas da violência. Nos anos 1970 o filósofo Abdias Nascimento afirmava que havia "um genocídio do negro no Brasil"… Isso ainda continua?

Ariel de Castro Alves - Sim, os números nos mostram que nós, de fato, temos um genocídio de adolescentes e jovens negros no país.

E certamente o estado de São Paulo é um dos estados com os maiores números de letalidade policial e essa letalidade tem sido estimulada pelo presidente Jair Bolsonaro que, junto com o então ministro (da Justiça) Sergio Moro apresentaram uma proposta de ilicitude em que incluía o medo, a surpresa, a emoção, a iminência de um conflito de armado como situações de legítima defesa, situações que excluíram a ilicitude das ações policiais, quer dizer, policiais poderiam reforçar a licença para matar, que já possuem hoje por parte das promotorias criminais e também das policias civis que deveriam investigá-los através das corregedorias, mas então eles teriam essa licença para matar reforçada e poderiam entrar em comunidade periféricas matando as pessoas e depois poderiam justificar que, promoveram chacinas, massacres e execuções porque estavam com medo ou em razão de surpresa e violenta emoção ou na iminência do conflito armado, porque achavam que as pessoas estavam armadas e atiraram antes nas pessoas.

Nós temos esse estímulo à violência policial por parte de muitos governadores, entre eles o governador (Wilson) Witzel, que foi cassado no Rio de Janeiro, e o próprio governador João Doria (PSDB-SP), que defendeu durante toda a sua campanha eleitoral que os policiais teriam autorização para matar, que ele contrataria os melhores advogados para defender os policiais que promovessem mortes durante ocorrências.

Tudo isso estimula e, na prática, as polícias e os agentes do Estado que deveriam garantir a proteção dos adolescentes conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), acabam sendo os principais algozes, os principais inimigos dos adolescentes e jovens no estão de São Paulo e no país, principalmente jovens pobres, negros que moram nas periferias, que acabam tendo mais medo dos policiais do que dos criminosos, dos traficantes.

Fórum – O número de jovens negros mortos pelas mãos da PM é alarmante. Para você, por que isso ocorre?

Ariel de Castro Alves - Existe um racismo institucionalizado nas polícias. Isso se mostra nas abordagens policiais, em que eles tratam de uma forma jovens brancos e de o outra jovens negros, mas também existe uma forte discriminação social. Aquele caso do empresário no Alphaville que humilhou, ofendeu e quis agredir os policiais e foi tratado com cortesia com educação, e os vários casos, como esse da mulher negra que agora foi denunciada pelo próprio Ministério Público, e como vários casos de jovens que são abordados, torturados nas periferias. Diariamente vemos ocorrências desse tipo: jovens assassinados nas abordagens. As ações dos policiais em bailes funks como o de Paraisópolis e como em outras situações com encontro de jovens das periferias onde os policiais já chegam torturando, atirando, agredindo.

Isso demonstra a diferença de abordagem policial em razão da discriminação racial e também da discriminação social e econômica e, infelizmente, eles são treinados para isso. O militarismo é o grande problema: são disciplinados, educados, formados nos quarteis de que estariam em uma guerra e os inimigos dessa guerra seriam os jovens negros, pobres e moradores das periferias.

Muitas vezes, nos treinamentos, usam como mira jovens negros, usam comunidades periféricas, simulações de locais como se fossem favelas para que nos stands de tiro.

O racismo está na formação dos policiais e também na impunidade dos casos em que as vítimas são jovens, são negros, são pobres e acabam ficando impunes tanto nos tribunais do júri, no júri popular, onde a maioria dos jurados são comerciantes, pessoas de classe média que acabam favorecendo e apoiando a violência policial, ou mesmo por parte dos promotores, magistrados, da Justiça militar que é corporativa.

Essa impunidade da violência policial, que acaba gerando que 90% dos casos nós tenhamos policiais impunes diante das violências e dos assassinatos que cometem, acaba estimulando essa violência.

E quando são casos em que envolvem pessoas da classe média, quando os policiais cometem violências contra essas pessoas, eles acabam punidos.

O racismo não está só institucionalizado nas polícias, ele está institucionalizado no judiciário, no Ministério Público, assim como a discriminação social.

Fórum – Quais caminhos acredita serem necessários para mudar tal cenário?

Ariel de Castro Alves - O caminho é a desmilitarização das polícias, e que a formação deles não sejam feitas apenas por instrutores, professores militares, por pessoas ligadas ligada à corporação, com essa mentalidade do racismo, da discriminação social, que essa formação tenha integração com a sociedade civil, com as entidades de Direitos Humanos, com associação de moradores, que eles conheçam os problemas sociais, as complexidades das questões sociais, que as questões sociais não devem ser tratadas como questão de polícia e que tenhamos um controle externo maior: corregedorias menos corporativas, com membros concursados para serem especificamente corregedores, por que muitos temem participar da corregedoria como um cargo de confiança do corregedor, que é designado pelo próprio comandante da PM e depois voltar para as tropas e ficar a mercê de quem ele tinha investigado quando ele estava na corregedoria, isso acontece tanto na Polícia Militar quanto na civil.

Reforçar as ouvidorias da polícia, que tenha mais estrutura para acompanhamento dos casos, porque na prática elas acabam recebendo a denúncia e depois não conseguem fazer o acompanhamento dos inquéritos dos processos, que na maioria das situações os acusados acabam impunes e também temos que exigir que o Ministério Público cumpra a sua função de controle externo das atividades policiais, de acompanhamento de inquéritos, de investigações, inclusive irem aos locais dos fatos. O MP muitas vezes se omite do controle externo das atividades policiais e muitas vezes se omite diante dos próprios casos de assassinato e violência policial.

Temos também a questão da prevenção. A violência contra crianças, jovens e adolescentes no país é também decorrente da falta de aplicação de legislação, da Constituição Federal que trata da prioridade absoluta e integral das crianças, adolescentes e jovens. Prioridade nas políticas públicas, nos programas sociais, nos orçamentos públicos.
Mas, o que nós temos visto é o desmonte da área social, principalmente dos programas voltados à infância e à juventude, descumprindo o estatuto da criança e do adolescente (ECA) e o estatuto da juventude. Desde o governo foi desativado o programa de erradicação do trabalho infantil; o Pró-Jovem que era um programa voltado ao primeiro emprego e a contratação de aprendizes e estagiários.

A atuação do Ministério dos Direitos Humanos (Damares Alves) também deixa a desejar. Esse sequer o relatório do Disque 100, que sempre foi divulgado em maio, acabou sendo divulgado e publicado. O governo federal tentou acabar com o Conselho Nacional da Criança e do Adolescente, e só não acabou porque as entidades entraram com ação no Supremo Tribunal Federal (STF). O governo federal desmontou várias comissões de enfrentamento ao abuso e exploração sexual, de enfrentamento ao trabalho infantil… na prática nós temos um desmonte das políticas públicas voltadas à infância e à juventude no país.

Bolsonaro na eleição presidencial prometeu rasgar o ECA e jogar na latrina, e na prática é isso que o governo dele tem feito.

A tendência é de agravamento da violência e violações aos direitos das Crianças e do Adolescentes, em razão da crise social, econômica e humanitária atual. E dos desmontes promovidos pelo governo Bolsonaro na área social e de direitos humanos. Além dos cortes e contingenciamentos que o governo federal, estaduais e municipais estão fazendo nos orçamentos das áreas sociais e da infância e juventude.