Gestão Alckmin ameaça comunidades, ciência e água de São Paulo

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Governador tucano aprova concessão de áreas florestais a grupos empresariais, quer carta branca para vender outras e expõe um estado em liquidação Por Cida de Oliveira, na Revista do Brasil A 18 quilômetros da capital paulista, três aldeias Guarani estão espremidas entre as rodovias Anhanguera e dos Bandeirantes e o Rodoanel Mário Covas. A menor área demarcada no país, com 657 hectares, é parte do que sobrou do avanço colonizador no século 16 no estado. Seus 583 habitantes, segundo a Fundação Nacional­ do Índio (Funai), são descendentes de grupos indígenas que já habitavam a área e todo o país há 14 mil anos. Uma trégua para os históricos conflitos parecia vir com a demarcação assinada em 29 de maio de 2015 pelo então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Um ano depois, em 7 de junho, a Assembleia Legislativa paulista aprovaria o Projeto de Lei (PL) 249/2013, vindo do Palácio dos Bandeirantes, de onde despacha o governador Geraldo Alckmin (PSDB). Sancionada pelo governador no último dia 29, a agora Lei 16.260/16 autoriza a concessão de 25 áreas florestais em várias regiões­ do estado a conglomerados empresariais, que por 30 anos poderão explorar seu potencial turístico e ecoturístico, bem como madeira e subprodutos florestais, como resinas. Houve apenas uma audiência pública no processo. [caption id="attachment_86908" align="aligncenter" width="729"]Foto: Rede Brasil Atual Foto: Rede Brasil Atual[/caption] Entre as áreas, está o Parque Estadual do Jaraguá, onde vivem os Guarani. "Lutamos para conseguir a demarcação da nossa terra e, quando conseguimos, vem esse projeto que não ouve nem respeita os povos tradicionais, nos trata como se a gente não existisse", protesta o líder guarani David­ Karai Popygua, o David Guarani, para quem o governo segue na contramão dos acordos ambientais internacionais assinados pelo Brasil. "Tinha que defender nossa mãe, a natureza. Alckmin deveria ser o pai de todos no estado, mas não é. Quer tirar o povo dos parques para pôr seus amigos. Leva um trem para casa e come a merenda sozinho. Deixa a água acabar e ganha um prêmio. E agora esse projeto. Vender a nossa grande mãe já é demais. Onde vai chegar?", desabafa David Guarani. Em 30 de setembro, o governador ingressou com mandado de segurança no Superior Tribunal de Justiça (STJ) contra a demarcação. Alega que a decisão enfraquece a consolidação da urbanização no entorno das áreas naturais protegidas e que prevê, para o Parque Estadual do Jaraguá uma unidade de preservação integral na qual não seria autorizada a ação humana. A nova lei mexe também com as comunidades tradicionais do Vale do Ribeira, que concentra cinco das 24 áreas cobiçadas. Na divisa entre São Paulo e Paraná está o Parque Estadual da Ilha do Cardoso, criado em 1962, que abriga um centro de estudos em meio ambiente. Há seis comunidades na ilha, uma delas indígena. "Não temos escola. É preciso sair da ilha para estudar, o que enfraquece a comunidade. Houve reforma de milhões voltada para o turismo. A gente, que vive lá, está abandonado. Não tem autorização nem pra construir um banheiro. As comunidades vão sofrer com a privatização, mas não temos voz nem apoio", desabafa Eduardo Roberto Pereira, da comunidade Itacuruçá. Coordenador de uma rede de economia solidária em Sete Barras, município que abriga parte do Parque Estadual Intervales,­ próximo ao Parque Estadual­ Carlos Botelho, o agricultor Gilberto Ohta conta que os moradores sempre ficaram de fora da discussão de projetos que os afetam diretamente, como a própria criação do Intervales, em 1995. "Abandonados pelo governo, esses parques estão preservados graças às comunidades locais. A privatização não vai salvar nenhuma dessas áreas porque as empresas só visam lucro. Nós é que somos os guardiões da floresta." As comunidades estão indignadas porque não recebem investimentos nem incentivos. "Precisamos discutir políticas de preservação com a comunidade dentro. Temos comunidades inteiras de ex-palmiteiros que passaram a fazer agricultura familiar. Não concordamos com a concessão porque nós podemos fazer a autogestão com economia solidária, numa nova perspectiva de sociedade. Não queremos acumular riqueza nem competir. Apenas preservar", afirma. Caverna do Diabo No município vizinho de Eldorado fica parte dos parques estaduais Intervales e da Caverna do Diabo. O morador Ivo Santos­ Rosa, presidente da Associação Remanescente de Quilombo Sapatu, teme que a privatização acirre conflitos. "Como não temos títulos de posse de nossas terras, somos constantemente ameaçados, invadem nossas casas. Companheiros já foram mortos. Além disso, não temos sequer licença para fazer roças de subsistência. Onde estão nossos direitos?", questiona. O líder comunitário lembra que as mais de 300 famílias que dependem do trabalho como monitor na Caverna do Diabo e entorno correm risco de perder sua principal fonte de sobrevivência. Na vizinha Iporanga, também há conflitos, e a população não tem apoio do estado. O morador da comunidade cabocla Claudionor Pedroso conta que são frequentes as invasões de domicílio. "Como fazer uma lei se existem conflitos?" De acordo com ele, o estado é ausente na oferta de serviços públicos, como energia elétrica, e no encaminhamento de demandas. "Já apresentamos projeto de RDS (Reserva de Desenvolvimento Sustentável), que contempla nossas necessidades ao mesmo tempo em que preserva a natureza. Somos nós que defendemos a natureza, que enfrentamos fazendeiros, mineradores, caçadores", diz Claudionor. A defensora pública Vanessa Alves Vieira, do Núcleo de Combate à Discriminação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, avalia a lei como um "total desrespeito" à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre povos indígenas e tribais, da qual o Brasil é signatário. Tal violação pode trazer sanções. "A convenção prevê a consulta prévia às comunidades de povos tradicionais em projetos que os afetem, o que não aconteceu." O texto da lei não trata da conciliação dos interesses da gestão privada com a integralidade da conservação do meio ambiente e nem detalha a concessão de serviços de turismo e a exploração comercial. "Haverá disputa dentre concessionárias e comunidades tradicionais", afirma Vanessa, lembrando que a exigência de caução e capital social elimina a possibilidade de participação das associações locais na licitação. A desconsideração desses aspectos, bem como o fato de o texto elencar um parque que não existe – o núcleo São Paulo da Serra do Mar–, está embasando ações de inconstitucionalidade que serão protocoladas no Supremo Tribunal Federal. Para o Conselho de Representantes dos Funcionários da Fundação Florestal­, entidade responsável pela gestão de 94 unidades em todo o território paulista, a privatização é finalidade do histórico sucateamento. Segundo os trabalhadores, não é de hoje que alertam a diretoria da Fundação com estudos sobre a falta de funcionários e a precariedade das condições de trabalho que tornam as unidades mais vulneráveis à degradação. As áreas estaduais hoje geridas pela fundação, que correspondem a 18% do território paulista, contam com um efetivo de 55 guarda-parques, que recebem salário de R$ 880, abaixo do mínimo paulista (R$ 1 mil). Os servidores questionam também a omissão do estado quanto à obrigação constitucional de garantir as condições adequadas para que as unidades de conservação cumpram seus objetivos ecológicos e sociais de conservação da sociobiodiversidade. E chamam atenção ainda para um ponto estratégico: 60% da água captada para abastecimento no estado depende, direta ou indiretamente, dessas áreas protegidas. Esse é um dos temores do promotor de Justiça Ivan Carneiro Castanheiro, do Grupo de Atuação Especial do Meio Ambiente (Gaema) PCJ-Piracicaba. Em junho, ele prorrogou por seis meses o inquérito civil instaurado há mais de um ano para apurar a constitucionalidade, a adequação técnica, os impactos ambientais sobre a biodiversidade nativa e as providências cabíveis em relação a editais de licitação e a contratos que vierem a ser assinados em concessão da Estação Ecológica de Itirapina, região de Piracicaba. Inserida na Área de Proteção Ambiental Corumbataí-Botucatu-Tejupá, Itirapina é estratégica também por ser um dos pontos de recarga do Aquífero Guarani. Alterações nessa região podem contaminar as águas subterrâneas. "Itirapina tem uma das últimas áreas bem conservadas de cerrado em terras paulistas, mas 37 de suas espécies animais estão ameaçadas de extinção. Além disso, a integridade da vegetação nativa está ameaçada por espécies exóticas, como o pinus, o que pode levar a desequilíbrios ecológicos", afirma Castanheiro. O cultivo de pinus pelo Instituto Florestal começou na década de 1960 pelo potencial madeireiro e pela resina fornecida, com diversas aplicações na indústria química. "Há na área talhões de madeira de pinus no ponto de corte que, segundo o próprio Instituto Florestal, valem R$ 30 milhões. Por que o estado não vende essa madeira e investe o dinheiro em ações ambientais previstas no plano de manejo?", questiona. Laboratórios à venda Outro plano de Alckmin é vender 79 imóveis do estado para fazer caixa. São 16 áreas sob gestão da Secretaria de Agricultura e Abastecimento, cinco da de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação, e sete pelo Departamento de Estradas de Rodagem (DER). Os demais têm uso diverso. Os imóveis foram avaliados pelo governo em R$ 1,43 bilhão. Em abril, o governador enviou à Assembleia o PL 328/16, em caráter de ­urgência. O projeto foi barrado no começo de junho pelo Tribunal de Justiça, ao conceder liminar em uma ação movida pelo deputado Carlos Neder (PT). Dos 16 imóveis da Agricultura e Abastecimento, a maioria está em áreas de preservação destinadas à pesquisa em agricultura orgânica, pecuária, recuperação de solos degradados e outros temas de interesse de agricultores familiares e de pequenos produtores – como Ivo, Claudionor, Eduardo e Gilberto –, das comunidades tradicionais do Vale do Ribeira e milhares de outros espalhados pelo estado. "Com esse projeto, o governo atinge não só os pesquisadores, que ficarão sem seus laboratórios, mas a população como um todo. Nesses centros de pesquisa são feitos estudos que beneficiam os pequenos produtores, a agricultura familiar, e em especial a população mais pobre, que não tem acesso a alimentos mais saudáveis e baratos", diz o dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Delwek Matheus. Filha e parceira de Delwek na coordenação do movimento, a agrônoma Fernanda Matheus conta que o MST mantém parcerias com muitas dessas estações experimentais próximas a assentamentos. Uma delas é em Itapeva, na região de Itapetininga, onde mais de 500 famílias estão assentadas em área vinculada ao Instituto Florestal. "Fazemos um trabalho conjunto com universidades e essas áreas experimentais, onde buscamos a produção sustentável de alimentos junto com a conservação da vegetação nativa", diz Fernanda. Desde 2013, MST, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e a Escola de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), de Piracicaba, trabalham na construção de uma proposta a ser apresentada ao governo estadual. A ideia é que parte dessas áreas, agora passível de venda, seja utilizada para assentamentos e produção agroecológica. "E agora o governo aprova essa lei", lamenta Delwek. No começo de junho, a Associação de Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC) encaminhou ofício à deputada Célia Leão (PSDB), presidenta da Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Assembleia, com manifestações contrárias ao PL, mais 5.065 assinaturas, colhidas até aquela data, além de ficha técnica e documentos sobre a importância das áreas de Piracicaba, Nova Odessa, Brotas, Jundiaí e Ribeirão Preto. A agrônoma Mônica Sartori, especializada em solos e nutrição de plantas e pesquisadora no Polo Regional de Desenvolvimento Tecnológico Centro Sul, em Piracicaba, afirma que a propriedade, de 120 hectares, sedia a Estação Experimental José Vizioli, fundada em 1928. Entre as pesquisas em andamento, adubos verdes, combate a pragas e doenças, recuperação do solo, de mata ciliar e cursos d’água degradados, voltadas a áreas de proteção permanente. "A fazenda é economicamente sustentável. Como nos últimos anos não temos recebido investimento, passamos a vender resíduos da cana usada em pesquisa para custear a manutenção e compra de máquinas agrícolas e o custeio dos escritórios", diz a pesquisadora. Fora a importância socioambiental, com a proteção de 40 hectares de áreas de preservação permanente. Entre elas, fauna e flora regional e o córrego Guamium, que ajuda a abastecer o rio Piracicaba, que leva água para 3 milhões de pessoas em 60 cidades do interior paulista. ambienteFoto de capa: Vera Massano/Alesp e Ciete Silvério/A2IMG