Governo Bolsonaro autoriza despejo de quase 800 famílias quilombolas no entorno da Base Aérea de Alcântara

Órgãos governamentais do estado do Maranhão, Ministério Público Federal e entidades da sociedade civil organizada emitiram notas em desacordo com a resolução 11/2020

Vista ae?rea Base de Alca?ntara (Foto: DivulgaçÃo)
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Mais de 30 comunidades quilombolas que vivem no entorno da Base Espacial de Alcântara, no Maranhão, serão despejadas em meio a pandemia de coronavírus. O ataque parte do governo federal, com a resolução 11/2020, publicada no Diário Oficial da União do último dia 27 de março e que versa sobre as deliberações do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro em sua sétima reunião plenária. A medida viabiliza a incorporação de 12 mil hectares à base, a expulsão de 792 famílias e a profanação de territórios sagrados.

O documento, bastante amplo, trata entre outros assuntos, sobre a prorrogação de prazos de Grupos de Trabalhos (GT’s), aprovação de relatórios e diretrizes acerca da orientação, ou plano de consulta às famílias quilombolas. Nele também foi aprovado o plano de comunicação voltado para as comunidades e quais as ações da alçada de cada ministério, frente “às políticas públicas destinadas às comunidades que habitam a área de interesse do Estado na consolidação do Centro Espacial de Alcântara”.

A resolução assinada pelo general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), também prevê que a base espacial avançará cerca de 12 mil hectares além da área já utilizada pelo Centro de Lançamento de Alcântara, o que na prática remove de seu habitat 792 famílias, de acordo com levantamento feito pelo Movimento por Atingidos pela Base Espacial (Mabe).

“Não são quaisquer 12 mil hectares, essa é justamente a região mais estratégica em termos de soberania alimentar porque é o litoral do município. Essas comunidades saindo da região e ficando sob controle dos Estados Unidos, nós vamos instalar um quadro grave de insegurança alimentar, além de dar como certa uma remoção que na prática deveria ser precedida de consulta prévia como dispõe a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) da qual o Brasil é signatário”, advertiu Danilo Serejo, assessor jurídico das comunidades e integrante do Mabe e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

Ao todo, oito ministérios - Defesa; Agricultura, Pecuária e Abastecimento; Educação; Cidadania, Saúde, Minas e Energia; Ciência, Tecnologia e Inovação e Turismo - possuem já definidas suas atribuições num futuro remanejamento das famílias. Como exemplo, ao Ministério da Defesa coube o trabalho de execução da mudança e, ao Incra, órgão vinculado ao Ministério da Agricultura, a missão de reassentá-las.

Já o Ministério do Turismo deverá promover, de acordo com a resolução, por meio do Institutos Palmares e do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a “recomposição de áreas e instalações compatíveis com as existentes nos espaços hoje habitados pelos quilombolas, para a prática de atos religiosos”. Para o descendente de comunidades tradicionais de matriz africana, ativista afro religioso e especialista em gestão do patrimônio cultural e imaterial Neto de Azile, a realização de tamanha atrocidade e violência provocará a destruição do sentido de pertencimento e identidade com consequências destrutivas nas dimensões culturais, religiosas e biológicas, sem precedentes.

“É de fato o extermínio dessas populações, onde não mais coexiste a divisão entre território e suas tradições. O território é sacralizado por um sacerdote ou sacerdotisa onde se recria a ancestralidade africana no mundo ocidental. O que acontece, neste caso, é um etnocídio concorrendo também para o genocídio dessas comunidades. Nenhum engenheiro poderá determinar que esse ou aquele lugar poderá substituir algo que é sagrado”, disse.

Para o secretário dos Direitos Humanos e Participação Popular do Maranhão, Francisco Gonçalves, a decisão foi açodada e não levou em consideração nem o término dos trabalhos do grupo designado para fazer os estudos necessários que o caso requer.

“A Sedihpop enviou Nota Técnica diretamente ao general Augusto Heleno, à Delegacia de Patrimônio da União (DPU), ao Ministério Público Federal (MPF), para conselhos, organismos e comissões ligadas aos Direitos Humanos, onde explicamos ponto a ponto as razões pelas quais a resolução precisa ser sumariamente anulada. Nem mesmo o fato de estarmos vivendo um momento de pandemia por conta do alastramento do coronavírus foi levado em consideração por parte do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro”, explicou Gonçalves.

Na Nota Técnica, a Sedihpop e a Secretaria Extraordinária da Igualdade Racial (SEIR), solicitam, além da anulação da resolução, que sejam disponibilizados, com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), o envio da íntegra de documentos de interesse público citados na resolução 11/2020 do Comitê.

“A resolução aprova documentos que sequer são de conhecimento da sociedade. Queremos saber o que contêm nos relatórios parciais dos Grupos de Trabalho, quais as diretrizes aprovadas destinadas a orientar a elaboração do Plano de Consultas às comunidades quilombolas e por fim, como, de que forma e o que contem esse tal plano de comunicação. A sociedade civil, em especial as comunidades atingidas pelas mudanças propostas na resolução, precisam ser tratadas com respeito e transparência quando o problema pode vir a ferir a dignidade humana de milhares de maranhenses”, destaca Gonçalves.

Já o secretário extraordinário de Igualdade Racial, Gerson Pinheiro, espera que o governo federal cumpra o que reza a Constituição. “A carta magna brasileira garante aos quilombolas a permanência em seus territórios, onde vivem e viveram seus ancestrais. A permanência com seus costumes e práticas religiosas e culturais, protegidas pelo Estado. Assim, o governo do Maranhão, através da SEIR, da Sedihpop e demais secretarias estaduais sempre irá trabalhar com o intuito de proteger e garantir o desenvolvimento sustentável dos territórios quilombolas”, destacou.

A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF) também enviou, na quarta-feira (1º), ao GSI, recomendação para que a União se abstenha da decisão de remover famílias quilombolas do território de Alcântara, principalmente neste momento de pandemia da covid-19.

No documento, assinado pelo procurador Hilton Araújo de Melo e pelos subprocuradores Antonio Carlos Bigonha e Mario Luiz Bonsaglia, a 6ªCCR destaca a importância do acompanhamento e monitoramento das ações e programas executados pelo governo federal para prevenir eventuais abusos e comportamentos em prejuízo ao interesse social, especialmente no atual momento. Pondera ainda que, diante do estado de calamidade nacional e dos impactos gerados na ordem social e econômica brasileira em razão da pandemia da covid-19, os mecanismos de controle e participação sociais ficam enfraquecidos, uma vez que todos os esforços estão voltados às preocupações mais essenciais com a saúde de todos.

 “Não se mostra pertinente a discussão ou o prosseguimento de quaisquer ações que dependam ou estejam necessariamente vinculadas a um processo de transparência ampla e escrutínio público”, diz trecho da manifestação da 6CCR/MPF. O documento pede ainda que seja disponibilizado na internet todo o conteúdo referente aos estudos e deliberações já produzidas pelo CDPEB, principalmente os documentos indicados na Resolução nº 11/2020. O ministro-chefe do GSI e coordenador do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro têm prazo de dez dias para responder

Associações, sindicatos rurais e movimentos quilombolas, indígenas e de defesa dos direitos humanos se juntaram ao Movimento de Atingidos pela Base Espacial. Quase 160 entidades já assinaram um abaixo-assinado e, através das redes sociais, o movimento colhe assinaturas para pressionar o governo federal a recuar do previsto na resolução.