Guilherme Arantes: Entre o pop e a sutil transgressão

A obra do compositor o separava dos roqueiros dos anos 1980 e, surpreendentemente, hoje o aproxima dos rappers dos anos 1990 e 2000

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Esta matéria faz parte da edição 122 da Fórum, compre aqui. A obra do compositor o separava dos roqueiros dos anos 1980 e, surpreendentemente, hoje o aproxima dos rappers dos anos 1990 e 2000 Por Pedro Alexandre Sanches Mano Brown disse que Guilherme Arantes sempre foi muito querido no Capão Redondo. Quando os Racionais MC’s foram fazer um show na Bahia, o compositor paulistano pop de “Deixa chover”, que hoje mora lá, foi ao encontro deles para pedir autógrafo. Durante as gravações do novo CD de Guilherme, Condição humana, Brown trabalhava no estúdio ao lado com Hyldon e o trio Azymuth, nomes históricos do pop-soul da década de 1970. Guilherme, ídolo ultrapop dos anos 1980, acabou tocando um piano Fender ao lado das feras soul dos 1970 e do mais importante nome do hip-hop brasileiro dos 1990 em diante. “Aí estreitou a amizade. Peguei telefone, fui na produtora deles”, descreve Guilherme, falando por telefone de Brasília, onde tem shows marcados. “Lá me apresentaram o Dexter, disseram que ele gostava de mim também. Acabei indo no show dele e cantamos ‘Um dia, um adeus’ (1987).” Guilherme foi convidado de honra da apresentação do rapper Dexter, que comemorava dois anos em liberdade, após 13 anos de prisão. Guilherme se surpreende, mas compreende os laços. “É engraçado, Marcelo D2 falava no passado que o hip-hop era o pesadelo do pop. Na verdade, descobri que é meio o contrário, o pop é o sonho do rap. Eles gostam muito das minhas harmonias e melodias.” Embora possa soar improvável a ouvidos distraídos, essa afinidade oculta significados tão ricos quanto profundos. Guilherme menciona sua “Fio da navalha” (“no fio da navalha vive a fina flor da marginália/ a vida por um fio/ linha imaginária entre o crime e a lei”), que integrou a trilha sonora da novela global Partido alto, em 1984. “Hoje o pessoal do rap cultua essa música como clássica, porque tem um arranjo, aquela metaleira da Banda Black Rio. Os caras pagam o maior pau. Era transgressora, descrevia a periferia, falava que bandido e mocinho eram tudo farinha do mesmo saco”, interpreta. Guilherme se tornou ícone e atraiu antipatias por ser autor e intérprete favorito das trilhas da Globo. Estiveram nas novelas da emissora “Meu mundo e nada mais” e “Cuide-se bem” (1976), “Amanhã” (1977, música-tema da presidiária Júlia Matos, personagem de Sonia Braga em Dancin’ Days), “14 anos” (1978), “Deixa chover” (1981), “O melhor vai começar” (1982), “Grafitti” (1983), “Fazer neném” (1984), “Um dia um adeus” (1987), “Raça de heróis” (1989)... Nas reviravoltas da história, os mesmos rappers que costumam rejeitar a rede hegemônica em bloco certamente conheceram “Fio da navalha” por intermédio da tela da Globo. [caption id="attachment_27828" align="alignright" width="416"] “O que o Mano Brown falou pra mim é que eu era um outsider dessa patota Ipanema-Leblon. ‘Você era de fora’, ele disse” (Fotos: Pedro Matallo)[/caption] “Dei sorte, porque era muito televisivo”, reavalia Guilherme. “Era um rapaz bonito na Globo, mas tive problemas com a [gravadora] Som Livre quando estavam à procura de um ator-cantor. Todo mundo achava que eu devia trabalhar numa novela, existia esse sonho da televisão de ter atores-cantores. Mas eu era canastrão, não topei.” Ele não escamoteia a competição que se desenvolvia nos bastidores: “Quando chegou o Fábio Jr. para uma vaga que potencialmente devia ser para mim, fiquei enciumado”. A presença maciça na TV pagava e cobrava preços, inclusive em forma de jabaculê. “Hoje fico olhando aquele programa Globo de Ouro que reprisa no canal Viva. Tem um dia só da gravadora CBS, então, nesse dia, tem Angélica, Dominó, Rádio Táxi, Djavan, Guilherme Arantes, Baby Consuelo, Rosana, Dr. Silvana & Cia. No outro dia, é só RCA: Sandra de Sá, Trem da Alegria... Os programas eram negociados em bloco, o artista ficava vulnerável criticamente. Ele estava dentro de um pacote que podia ser duvidoso. A gente ficou sem credibilidade, ficou chato. Sei que torciam muito o nariz para mim.” Guilherme fala com desassombro das antipatias que gerava: “Minha voz já é ardida por natureza, tenho um tom ardido, e muita gente não gostava. Tive que ter essa crítica, por que as pessoas acham que a minha voz é insuportável?” Uma das explicações a que chega passa pela formulação de hegemonias. “Hoje critico o sertanejo, o pagode, mas é porque tudo que é muito hegemônico é chato. Eu também, quando me tornei hegemônico, em grande gravadora, fiquei chato.” Não só os rappers têm reavaliado o valor afetivo das hegemonias passadas. Outro nicho em que Guilherme passou a desfrutar de prestígio é o do chamado rock indie, notadamente o paulistano. Na (linda) nova canção “Onde estava você”, ele conta com um coro formado por nomes como Marcelo Jeneci, Mariana Aydar, Kassin, Tulipa Ruiz, Curumin, Tiê, Thiago Pethit, Adriano Cintra (ex-Cansei de Ser Sexy) e outros. É mais um caso em que, talvez, o sonho de ser pop em 2013 se encontra por linhas transversas com o poder pop de que Guilherme efetivamente desfrutava 30 anos atrás. “Eu gostava do povão, gosto do povão. Gosto da mulher-povão, do sentimento do povão, de estar no auditório. Achava do caralho ir no Bolinha, no Chacrinha. Depois, o rock dos anos 1980 veio a descobrir isso. Legião Urbana, Titãs, Paralamas do Sucesso, essa gente a princípio não queria ir no auditório. Quando descobriram que o povo gostava deles, passaram a ir e viraram grandes sucessos populares”, narra. O fio o leva de volta ao rap. “Mas o que o Mano Brown falou pra mim é que eu era um outsider dessa patota Ipanema-Leblon. ‘Você era de fora’, ele disse”. Ex-integrante do efêmero grupo roqueiro Moto Perpétuo (que deixou um solitário LP de 1974) e autor do rock “Coração paulista” (1980), Guilherme não hesita em dar conta da rivalidade que existiu entre ele e a geração roqueira que surgiu no seu encalço. “O rock era muito masculino, tinha uma linguagem de caserna. Eu morava no Posto 6, em Copacabana, e os soldados treinavam cantando música dos Paralamas, (cantarola), ‘entrei de gaiato no navio/ entrei, ôôôô’. Aí saí falando que Paralamas era rock de reco. Isso é chato, não se deve fazer”, ri. Em reação, Herbert Vianna chamou Guilherme de “brega”, e a pecha pegou. “Tudo que a geração deles queria era não ser brega. Eram preocupados com isso. Quando digo ‘não me importo em ser brega’, não é que não me importo. Não me importo em ser considerado brega. Tive um pouco de tudo que uma pessoa pode querer, música gravada por Elis Regina, Roberto Carlos, Caetano Veloso. Então, não me acho brega”, reflete. Elis Regina também não achava. Em 1980, ela gravou duas canções de Guilherme, “Aprendendo a jogar” e “Só Deus é quem sabe”. A primeira virou um sucesso popular. “De repente Elis chega para mim e fala: ‘Vamos juntos furar esse bloqueio da FM? Você não toca nem eu, vamos meter a cara, fazer um hit pra arrebentar na FM?’ Depois aconteceu o mesmo com Maria Bethânia, no FM adulto contemporâneo até hoje toca muito ‘Brincar de viver’ (do especial infantil global Plunct Plact Zuuum, de 1983), que a gente emplacou junto.” Com Elis a história foi mais séria. Guilherme conta que ela chegou a querê-lo para o lugar de César Camargo Mariano, como líder da banda, mas também como namorado. “Imagina quando Elis olha pra mim e fala ‘estou a im de você’. Eu desabei. Desabei, porque conhecia Elis de trás pra diante. Ela fazia parte da minha vida. Aquilo era inimaginável.” Ele não encarou o duplo desafio? “Mais ou menos. Eu era despreparado, um garoto de 27 anos, estava começando minha vida. Falei: ‘Você está sem noção. Imagina, eu sou só um pianista pop’.” Sucesso e abandono Coincidência ou consequência, depois que Elis passou por sua vida, Guilherme se “popificou” de vez e foi às massas. Brilhou no festival MPB Shell 81 da Rede Globo e levou o segundo lugar, com “Planeta água”. Cravou sucessos radiofônicos, um atrás do outro: “Lance legal” (1982), “Pedacinhos (Bye Bye So Long)” (1983), “Cheia de charme”, “Fã nº 1” e “Olhos vermelhos” (1985), “Coisas do Brasil” (1986), “Ouro” e “Um dia um adeus” (1987)... A experiência no MPB Shell 81 retrabalhava sua própria adolescência, passada frequentando, como espectador, programas da Record como O fino da bossa de Elis, a Jovem Guarda de Roberto, Erasmo Carlos e Wanderléa e os festivais da canção. “Eu estava no auditório do festival de ‘Roda viva’, ‘Alegria, alegria’ e ‘Domingo no parque’ (em 1967), tinha 13 anos. No filme sobre esse festival, quando passa por cima a plateia, eu olho aquilo e choro. Vi Chico Buarque surgir da plateia, ele de camisa de manga, super-desenxabido, com aquele violão, tocando ‘Pedro pedreiro’, ‘A Rita’ (1966). Puxa, isso foi uma experiência.” A lembrança o traz de volta ao presente. “Na internet tem tudo, fico fuçando nas madrugadas, e fui parar em Chico cantando ‘Basta um dia’. Aquilo humilhou, humilhou lá longe, sabe? Humilhou. Falei: ‘Puta, nós somos uns bostas’. Conheci Clara Nunes pessoalmente no primeiro ano de carreira. Nunca pensei que eu, de tiete, fosse virar colega.” Talvez Guilherme nem atente para o fato, mas 1976 foi o ano de “Basta um dia”, que Chico e Clara cantavam ao mesmo tempo em que ele próprio fazia ao piano as igualmente lindas (embora bem menos reconhecidas) “Meu mundo e nada mais” e “Cuide-se bem”. No panteão dos “heróis” da chamada MPB, Guilherme sempre foi, de fato, um outsider. Ele volta a descrever a amargura. “Me senti, no ano passado, abandonado. Por mim mesmo, pelo mundo, jogado no mato lá da Bahia. A letra de ‘Onde estava você’ surgiu quando começaram a surgir novos Guilherme Arantes na praça, todo mundo falando que Marcelo Jeneci ou Silva era o Guilherme Arantes da nova geração. Puxa vida, será que eu estou morto e ninguém me avisou?” Dramática, provavelmente ao gosto de um paulistano italianado, a letra clama: “Só o tempo em nós respondeu/ em que se transformou a amizade que uma vez existiu/ quem foi leal, quem ficou e o que se abandonou/ onde estava você quando mais eu precisei?” O sentido do abandono coincidiu com uma prosaica cirurgia de catarata. “Eu não estava enxergando nada. É uma metáfora, eu não estava enxergando nada também a respeito do mundo, de mim. Na operação, o cara me aplicou aquele propofol do Michael Jackson. É uma sensação estranhíssima você ver o cara operando seu olho, cortando seu olho. Me senti tão frágil, tão abandonado lá no meu interior, o fiozinho de luz da esperança, que, quando saí dessa enxergando, rapidamente reorganizei meu mundo. Eu tinha tudo pra fazer um discão bacana logo, não deixar pra depois.” E veio ao mundo Condição humana. Os ciúmes de Guilherme parecem essencialmente afetivos. Ele se emociona e chora quando evoca o encontro com Marcelo Jeneci. “Classifico ele quase como meu filho, não só musical, mas espiritual. O pai dele é muito parecido comigo, é um Gepeto que mexe em instrumentos. Que coisa. Um dia Jeneci abriu a sanfona, mostrou o circuito que o pai instala nas sanfonas e falou (a voz embarga): ‘É com isso que meu pai alimentou a família’. Meu Deus do céu.” A música de Jeneci, como a de Guilherme, ostenta um lance de cantar sobre água e elementos naturais, e de se emocionar, e de emocionar difusamente quem a ouve. “Esse clima chuvoso das minhas letras vem do Jorge Mautner, do livro Narciso em tarde cinza, que foi muito marcante pra mim. Jorge foi fundamental para mim, porque o primeiro emprego musical que tive foi na banda dele. Eu era da banda do Jorge Mautner no tempo do ‘Maracatu atômico’ (1974). Acho que Jeneci veio pra esse clima de uma forma proposital. Kassin me falou que todo mundo tinha fascínio por isso de eu falar desses elementos, neblina, chuvas. São estados da alma.” Seriam, pois não?, estados femininos da alma? “Eu me identificava muito com a alma feminina, com a visão feminina do mundo, que é de uma transgressão muito mais sutil e cortante”, afirma, traçando sem querer uma linha imaginária que o separava dos roqueiros dos anos 1980 e, surpreendentemente, o aproxima dos rappers dos anos 1990 e 2000. A mãe e as tias de Mano Brown amavam e amam Guilherme Arantes, do Capão Redondo para o mundo. E se fosse o lado emotivo derramado, supostamente feminino, o que rende a artistas como ele o atributo de “brega”? “Não tem muito lugar para sentimento no mundo masculino”, revisa Guilherme, pai de cinco filhos, aos 59 anos. “Para o homem cantar o sentimento, ele tem de estar ou com chapéu de boiadeiro, ou com brinquinho de pagode, ou numa banda de axé. Você entende que é pesado isso aí?”, pergunta. E captura, mais uma vez, a alma feminina de um de seus ídolos. “Chico Buarque é um mestre, e nunca foi chamado de brega. Seria uma heresia. Mas um Guilherme Arantes, num auditório, fica fácil de classificar dessa forma.” Sentimentos não param de se entrecruzar. Por intermédio de Marcelo Jeneci, o piano (feminino?) de Guilherme se reconcilia com a sanfona (masculina?) de Luiz Gonzaga e dos ascendentes nordestinos – se o pai de Marcelo é pernambucano, familiares paternos de Guilherme tinham um conservatório no Crato, no Ceará. Marcelo nasceu em Guaianases, na periferia paulistana; Guilherme, de sotaque até hoje fortemente italianado, é originário do bairro central da Bela Vista. Em meio a tanta informação suscitada pelos fios da memória, vai surgindo um outro laço, que perpassa emoções assumidas e enrustidas e termina por fincar uma estaca identitária frequentemente despercebida. Guilherme Arantes é a música popular paulistana em pessoa, como são historicamente Paulo Vanzolini e Adoniran Barbosa, Rita Lee e Arnaldo Baptista, Racionais MC’s e Marcelo Jeneci. Guilherme Arantes aceitaria a tarja de personificador dessa misteriosa música popular paulistana? “Ah, não sei. Não, acho que é o Paulo Vanzolini”, responde, dois dias antes da morte do autor de “Ronda” (1953) e “Volta por cima” (1963). “Vanzolini era biólogo do Instituto Biológico. Meu pai era médico, também tocava violão e era amigo do Vanzolini. Nasci em berço de ouro, sabe? Não posso reclamar.”  F
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